domingo, 19 de outubro de 2008

Necessidade de Camões

Cada geração merece a sua própria tradução, edição ou ensaio crítico dos grandes clássicos. As mutações da língua, sempre subversiva, a evolução dos conceitos e o desbloqueamento das construções dogmáticas da geração anterior fazem envelhecer as obras publicadas, ao ponto de parecerem relíquias incompreensíveis. Não obstante há obras que perduram, continuando a difundir luz e clareza, século após século, sempre prontas a deixar-se desfrutar como novidade. Os Lusíadas, portentoso cântico, conserva essa força representativa, misteriosa e desveladora, da grande poesia, da poesia que pertence verdadeiramente à arte, no sentido que Heidegger atribuiu a Hölderlin. Camões, o poeta filósofo, captou o caminho que nos estava traçado, enquanto profeticamente deixou os seus heróis a gozar as delícias da Ilha dos Amores.

Grande parte do que nos foi ensinado (e ainda hoje é propalado) sobre os Lusíadas não encontra correspondência no poema. António José Saraiva, um dos espíritos argutos e profundamente cultos da geração passada, pôde esclarecer alguns desses equívocos no ensaio “Luís de Camões, Estudo e Antologia” (Bertrand, 3ª ed., 1980). Nos Lusíadas, “falta um pano de fundo, um ser colectivo” (p. 155), “o povo não tem papel algum nos acontecimentos, tudo é obra dos guerreiros” (p. 141), e o “Velho do Restelo é o próprio Camões”, “um humanista que desdenha a «aura popular»” (p. 128), “o seu pensamento vai todo para os cavaleiros” (p. 144); embora contenha “expressões claras da ideia territorial de pátria e da noção moderna de Estado”, “o rei é concebido como suserano de vassalos, chefe de cavaleiros”, “ e a ideia de pátria como algo independente dos homens, algo de impessoal” (p. 149).

Ferido embora pelo tempo, pelas datadas aporias sobre as contradições dos Lusíadas, pela puerilidade quase incapacitante de entender o desejo e ainda pelos rasgos tímidos de descolagem do status quo de então, o labor interpretativo de Saraiva, apenas interrompido pela morte, revela-se assombroso. Em vez de um Estado, eis que um grupo étnico, de cavaleiros, guerreiros, tomam para si a tarefa de conquistar o Oriente, suscitando, sem o saberem, a ira de Baco e a protecção de Vénus. A acção não é conduzida pela “bruta crueza” daqueles guerreiros, mas pelos deuses, que realmente determinam o desfecho da epopeia, elevando os heróis à semi-divindade através do amor.

Saraiva descobre nos Lusíadas um panteísmo (p. 162), “a confiança na capacidade humana para dominar a natureza ... e, virtualmente, de Deus como imanência” (p. 165), valores humanistas concordes com Giordano Bruno e outros. A “guerra no Oriente é a continuação da cruzada peninsular” (p. 123) e Camões exorta D. Sebastião a empreender a guerra na África do Norte, prometendo-lhe “a grandeza de um Alexandre ... cantado por um Homero, que será ele próprio, Camões” (p. 144). Neste plano, não há contradição com a acção dos deuses.

Seguindo agora Gilles Deleuze (com Félix Guatari, em Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio e Alvim, 2007), os guerreiros movem-se num espaço linear, esconjuram e impedem a formação do Estado (p. 454), mantêm-se nómadas, alheios a construções de um "senso comum" e à organização do Estado (p. 478). “Com a máquina de guerra e na existência nómada, o número deixa de ser numerado para tornar-se Cifra e é por isso que constitui o «espírito de corpo» e que inventa o segredo e as consequências do segredo (estratégia, espionagem, astúcia, emboscada, diplomacia, etc.)” (p. 498) e “se a aritmetização do corpo social tem por correlato a formação de um corpo especial distinto, ele próprio aritmético, pode compor-se esse corpo ... com uma linhagem ou uma tribo de privilegiados cujo domínio toma desde logo um novo sentido (caso Moisés, com os Levitas)” (p. 501).

Ao menos suspeita-se aqui de uma abertura para uma interpretação radical dos Lusíadas. Siga-se Saraiva: Os guerreiros são figuras apagadas, “o Gama de Camões nem figura chega a ser” (p. 152), os seus companheiros não existem (p. 152) e os heróis da história de Portugal “reduzem-se a puras abstracções” (p. 156). "É todo um sistema de caixas chinesas de peças oratórias" (p. 157), sendo "provável que Camões atribuisse um sentido oculto às fábulas mitológicas" (p. 162).

São o número, constituem a máquina de guerra, o plano imanente, que recusa deixar-se desterritorializar pelos órgãos do poder do Estado. Com eles os artistas, Camões, e os construtores itinerantes das igrejas do manuelino refulgente são os nómadas que não se deixam apanhar na rede repressora, do modelo único do verdadeiro, do justo ou do direito (vide Deleuze, pp. 468, 480).

A linhagem dos guerreiros perpetua-se na guerra. A derrota de D. Sebastião representará o fim. Muitos morrerão, muitos ficarão prisioneiros em África, abandonados por Portugal, vilmente esquecidos, como Camilo contou dolorosamente em "O Senhor do Paço de Ninães". Termina aqui um tempo de fulgor. O Estado, que vinha estendendo seus preceitos desde finais de quatrocentos, conseguiu vencer as tribos dispersas, expulsou os judeus, os mouros, os livre pensadores, os guerreiros, os artífices do gótico flamejante. A Idade Moderna venceu.

Camões, no seu sonho humanista, com a sua crença num devir conquistado pela força humana, torna-se mais uma vez absolutamente necessário. É preciso descobrir na história esse ponto premonitório onde nos perdemos enquanto seres livres, para ingressarmos nos quadros do Estado tentacular, que absorve, redige e estatui todo o pensamento.