quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O novo casamento

Em quase todas as questões somos empurrados para a bipolaridade de opiniões, antagonismo, dualismo, um processo redutor e manipulador que forma maniqueísmos e abafa o debate livre. A propósito do casamento gay, o vulgar cidadão é forçado a mostrar-se liberal ou conservador, mas, subliminarmente, é na verdade forçado a não ter posição sobre mais nada, e há muito a questionar sobre o casamento.

Dispõe o artigo 1577 do Código Civil que “casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”. A alteração que se pretende introduzir copia a já vigente em Espanha e consiste apenas na eliminação da expressão “de sexo diferente”. Ressuma à evidência que, com tal alteração, não se permite apenas o casamento gay, mas todas as uniões entre duas pessoas, independentemente da orientação sexual, inclusive de qualquer intenção sexual ou de qualquer exclusividade da relação sexual.

Actualmente, é permitido o casamento de duas pessoas de sexo diferente ainda que não pretendam ter relações sexuais, ou mesmo que as pretendam manter com outros (o dever de fidelidade tem natureza interna e não pode ser sindicado por estranhos, sendo completamente irrelevante o adultério se ambos os cônjuges nisso consentirem). A alteração proposta amplia o leque de opções.

Dois velhotes num lar, tendo um direito a pensão de reforma e outro não, podem ser tentados a casar para que um deles passe a beneficiar da pensão de viuvez. Hoje, estes casamentos são frequentes entre homem e mulher; amanhã, podem ser celebrados entre duas mulheres ou entre dois homens. De igual modo, o casamento pode ser celebrado para obter ganhos no IRS (compensação de rendimentos e benefícios), na nacionalidade (aquisição e residência), no trabalho (direito a faltas para cuidar da família), na habitação (descontos nos encargos, candidatura a casa social, transmissão por morte, etc.), nas sucessões (o cônjuge é herdeiro em concurso com os filhos). Também pode ser celebrado apenas para partilhar a casa, formar uma economia comum entre dois amigos ou amigas, ou, já hoje, entre uma amiga e um amigo.

Evidentemente, tais situações podem ser constituídas para defraudar a lei (redes casamenteiras para naturalizar estrangeiros, burlas para prejudicar a legítima nas heranças ou para obter ganhos ilícitos da segurança social, etc.). Daí que os Estados tenham vindo a implementar esquemas de fiscalização e controlo do casamento, actividade que implica necessariamente a devassa da vida interna do casal. É esta a grande novidade da alteração à lei do casamento: a generalização da fiscalização da vida privada à casa de cada casal, muito à semelhança do que cada vez mais acontece na fiscalização dos cuidados com os filhos, com os idosos, com as mulheres, com a doença, etc.

O Estado venceu a última barreira da privacidade: a família. O controlo deixou de ser exercido apenas sobre o pai ou sobre a mãe, para se estender à própria existência do casal em si mesmo. É por isso que o casamento gay apenas tem sido adoptado pelos Estados que têm já em vigor sistemas legais de fiscalização e de sanção da fraude no casamento. Teme-se todavia que tais sistemas se aperfeiçoem e invadam mais completamente a vida de cada um.


Não vale contra argumentar com a normalidade (é precisamente aquela senhora que nunca dizia a palavra merda que mais corre o risco de ser processada por injúria: chama a atenção). O facto de te achares tão normal, ao ponto de não perceberes a diferença, assusta quem é capaz de reflectir. Os primeiros visados vão ser precisamente os gays, pelo menos os que não forem suficientemente independentes dos circunstancialismos sociais.

Os grandes prejudicados no imediato serão todos os que vivem em união de facto, instituto que tenderá a perder reconhecimento social face ao casamento. A união de facto é definida pela lei como a comunhão de vida "em condições análogas à dos cônjuges" e são essas condições que estão em transmutação, sujeitas a reconhecimento caso a caso. Será mais vantajoso o casamento, que aliás permite hoje uma desvinculação bem mais fácil e rápida do que a união de facto, que, nos conflitos, pode transformar-se num inferno judicial.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Para acabar de vez com o átomo

Foi estudando o pensamento dos primeiros filósofos gregos, os seus saltos imaginativos, que Nietzsche pôde entender e explicar o seu erro fundamental, ainda antes dos físicos quânticos: o átomo, enquanto partícula essencial da matéria, não existe. Uma vez tomado como tema científico, não pára de se decompor em partículas ainda mais ínfimas. Os mesmos gregos primordiais, pais da humanidade, acreditavam no uno celestial. A astronomia não deixou de perseguir essa via, da abóbada modal ou dimensional dos seres terrenos ao espaço etéreo do infinito. Paira hoje na encruzilhada dos seus mitos entre supernovas e planetas mistério, estrelas vivas e mortas, numa interminável série de corpúsculos inconjugáveis. Mas o uno persiste, entendido como perfeição, como entidade reguladora superior, que escapa à compreensão humana. O infinito é ainda ponto de partida, quando deveria ser ponto de chegada. Não se trata de um fracasso da ciência, que é sobretudo uma negação da filosofia, ou seja, uma negação da verdade. Dito de outro modo, a ciência recusa a imaginação, apesar das descobertas de Koch e de tantos outros serem devidas a nada mais que isso. A ciência depende da ignorância, está-lhe intimamente ligada, pertence-lhe, quer vencê-la. O labor do cientista nasce da ignorância e vive dela, ou não poderia sustentar-se sem ela. Também por isso vivemos numa sociedade orientada para o trabalho, que tem expressão mor na escola, essa instituição parasitária que explora a ignorância para a capturar e domesticar na vegetabilidade dos empregos, na empregabilidade, na dependência moral, na subserviência ao Estado, o pai da modernidade. Um professor, porque captura ignorância e despende imaginação dos seus alunos, é um crápula, do ponto de vista intelectual. Nem vale pô-los a versejar num jardim límbico, ainda assim crapuliza. O uno é uma tirania. A ignorância não se combate, suplanta-se, salta-se, imagina-se. Às urtigas, a escola e os profecas, em especial os bons (ah! A virtude do mau professor, aquele cheio de tiques de ódio e incompetência, esse sim, o que verdadeiramente nos ensina o lugar a que pertencemos: estrato tal na sociedade B! O seu filhote precisa de trabalhar mais! O crápula! O seu querido filho é muito bom aluno! O crápula! Mostra-me o teu, palerma, coxo). E se o evidente exagero das considerações anteriores sobre a escola escandaliza o teu sentimento científico, vai lá buscar os manuais do teu filho e verifica quantos erros lá estão transcritos e são diariamente impostos, contrários às novas descobertas ou invenções da ciência, para o que precisas de ter algum conhecimento adicional e, depois, precisas de bater com a mão na testa: baboseiras sobre a globalização e sobre a pátria, a ideia de progresso ainda tão nova como quando morreu em 1914, as placas terrestres terminadas e preservadas na eternidade das lavas, o aquecimento do planeta reduzido à fumarada das fábricas obsoletas, a reciclagem do plástico poupadinha, a genética una, fundamental, o fim último, terminal longínquo dos vindouros!
É sobre genética, que este artigo versa, precisamente. Novamente a ideia do uno, o erro primordial dos gregos que tomaram o pensamento nas mãos para se elevarem ao celeste. A genética, agora nas mãos sujas e grotescas de um laboratório farmacêutico ou de investigação pública, o que vale o mesmo, embora com resultados faseados diferentes. Os próprios crentes desvalorizam os fracos resultados da genética, que ainda falta a tarefa medonha de catalogar as proteínas, perdão, de catalogar a interacção das proteínas umas com as outras, em todas as hipóteses possíveis. Perdão, o tanas. A tarefa é impossível! São quatrilhões de hipóteses, e as conjugações que se descobrirem operatórias serão mero acaso, como o da penicilina. Pô-los a trabalhar a ver se calha alguma coisa de jeito, é uma coisa. Bem diferente é fazer-nos crer que podem chegar à totalidade do sistema entre moléculas e proteínas. Pura e simplesmente a genética é uma paragem no tempo. Assenta na crença de uma ordem básica das espécies, na evolução burriana que Darwin imitou do utilitarismo, no progresso da ciência que andaria mais depressa que os acasos geracionais. O gene corresponde a uma crença tão errada quanto o átomo. O esforço da investigação vai conduzir a resultados parciais fantásticos e de seguida descamba. Parte dos resultados positivos vai produzir efeitos colaterais monstruosos a longo termo. Todos sabem disso. O incrédulo tem a prova acabada desse medo nas comissões de ética que cerceiam a investigação. Esses grupos de sacerdotes, padres e cientistas e falsos pensadores, que não têm puto de vergonha na cara para se apresentarem a eles próprios como insignes mestres. A velhada nunca teve vergonha! Escamoteiam a verdade: não controlam a ética, controlam a ciência; dizem que a tarefa dos investigadores é científica, quando é política; fazem esquecer que se investiga o que é financiado e não o que é apontado como investigável pelos cientistas. Meu caros, a genética é o maior logro dos nossos tempos. Os seres multiplicam-se aleatoriamente, as células também. O organismo não existe, é uma crença tirada da organização do Estado. O único órgão que existe é o que toca música. Toda a panóplia de catalogação dos elementos do corpo decalca a organização da sociedade, primeiro nesta e depois saltou para a ciência: órgão/organização; função/funcionalismo; estrutura/estruturalismo; normal/anormal; estabilidade/crise (há lá ideia mais parva que a de crise?). E na ciência: estática, dinâmica, inércia, entropia! Baboseiras. Tanta asneira que nem deram nome ao sexo da mulher! Os pulhas! Que saborosos são os termos antiguinhos e populares, mas proibidos. Não estamos perante um avanço da ciência. É o aparelho do Estado que se alastra como um vírus marciano, da organização mundial de saúde à fao e à unesco, essas máquinas de subjugação das consciências, que põem à venda os corpos na praça incomensurável do sentimento mundano.
A reivindicação de uma medicina que regresse à atenção do ser, multidisciplinar e aberta ao desconhecido, representa a maior luta da humanidade nos tempos de hoje. É preciso abrir caminho para a afirmação do homem sobre os degraus do hospital moderno, que é a instituição mais segregacionista que alguma vez pôde ser imaginada. Nem a prisão ou o manicómio do século XIX, que Foucault decompôs para explicar o nosso tempo, atingiu tal patamar de diferenciação social e humana. A genética abre-se, qual crisálida venenosa, perante a sociedade do futuro. Redireccionar a investigação para o campo dos cientistas. Coarctar a intervenção do Estado e das grandes multinacionais. Extinguir o poder dos éticos, a classe dos subsidiados. Dar finalmente asas à criatividade, à imaginação. Eis os rumos que se impõem. Todos são sãos, independentemente das suas características pessoais. Todos os defeitos individuais são articulações do poder do Estado. Remeter o Estado ao orçamento de Estado, eis a tarefa.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A Quercus e a ecologia da miséria

Não são precisas estatísticas de maior para tomar o pulso à disparidade de rendimentos em Portugal: basta acompanhar a série “Minuto Verde” no noticiário da manhã da RTP1. Em dias alternados, ora um sujeito gordo promove métodos de poupança de energia no aquecimento de vivendas de luxo ou sistemas de limpeza de piscinas privadas com recurso a algas e outros naturalismos, ora uma mulher escanzelada aconselha o uso de fraldas de pano, em vez das “poluentes” fraldas descartáveis e desce ao pormenor de, com idêntica finalidade, aconselhar as mães que amamentam a reutilizar os panos dos mamilos. Não se esquecem, um e outra, de realçar a “poupança” que se consegue obter com aqueles conselhos, com uma ingenuidade de antanho que faz acreditar que a senhora da vivenda poupa na conta da luz e na conta dos mamilos, ou que a mãe pobre tem piscina e gasta em fraldas. Há-de havê-las, são da Quercus, associação ambientalista que tem a responsabilidade daquele programa.
O higienismo, ainda que disfarçado de economia doméstica ou de protecção da natureza, é dirigido separadamente a ricos e pobres, trazendo ao de cima a cruel partição dos rendimentos. A vivenda, que destruiu os solos naturais, muitas vezes com aptidão agrícola, que tolhe as linhas de água, que se apropria da paisagem, a piscina, que delapida o recurso fundamental do século XXI, ambas construídas com materiais altamente poluentes, cuja produção afecta a natureza (cimenteiras, inertes, minas) passam por ser “amigas do ambiente” se tiverem painéis solares subsidiados pelo Governo ou uma área aumentada para respaldo das ervas, com o consequente reconhecimento do benemérito proprietário. Por seu turno, o bebé é um cagão poluente mais perigoso que os milhares de artigos de supermercados envolvidos em caixas, caixinhas e plásticos, as mais das vezes inúteis (mas úteis para reciclar, essa baboseira da política de hoje, que promove a conversão do desperdício em matéria-prima através de uma indústria pesadíssima e hiper-subsidiada, com avultados custos de transporte e de processamento, que o pobre e o rico pagam em igualdade (veja a factura da água)) e a coitada da amamentadeira nem um panito do mamilo pode desperdiçar, ainda que não ganhe um subsídio por isso. Falta-lhes dizer que a maior poupança ambiental é não ter filhos, deixar a vivenda devoluta e a piscina vazia.
A Quercus espelha a grosseria serôdia da ideologia que domina o país. Não é admissível a propaganda dum ambientalismo que vai contra, nos seus fundamentos e na sua execução, a qualidade de vida da comunidade e que desrespeita as pessoas, perante a discrepância de rendimentos que exibe, num miserabilismo perigoso, muito salazarento.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O poder da imprensa

O recente debate na RTP1 entre jornalistas que se acusavam mutuamente, invocando critérios deontológicos, da publicação ou não publicação de notícias encomendadas por fonte anónima (Diário de Notícias, que publicou o e-mail sobre a suspeitada vigilância do PS a Belém, Expresso, que não a publicou, e Público, que publicou e não publicou), tem resposta plena no aforismo 447 de “Humano Demasiado Humano”, que Nietzsche publicou em 1886:


O poder da imprensa consiste no facto de cada indivíduo, que se encontra ao seu serviço, apenas se sentir muito pouco comprometido e vinculado. Habitualmente, ele exprime a sua opinião, mas, um dia, também não a diz, para ser útil ao seu partido ou à política do seu país ou, por fim, a si próprio. Tais pequenos delitos de desonestidade, ou, talvez, simplesmente de um desonesto sigilo, não parecem graves para o indivíduo, contudo, as suas consequências são extraordinárias, porque esses pequenos delitos são cometidos por muitos, ao mesmo tempo. Cada um destes diz para consigo: «Por tão ínfimos serviços, vivo melhor, posso encontrar a minha subsistência; com a falta dessas pequenas atenções, torno-me impossível.» Porque, moralmente, parece quase indiferente escrever mais uma linha, ainda por cima talvez sem assinatura, ou não a escrever. Uma pessoa, que tenha dinheiro e influência, pode transformar qualquer opinião em opinião pública. Quem, nessas circunstâncias, sabe que a maior parte dos homens são fracos, quando se trata de ninharias, e quer alcançar os seus próprios fins por meio delas, é sempre um homem perigoso.


Moral da história: o diabo que escolha quem é mais perigoso, a fonte anónima que manobra a notícia ou o jornalista, que a publica ou não publica.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O que é o capitalismo

O capitalismo é um sistema que se resume numa frase: o dinheiro não chega. Há milhares de filmes com este tema: um casal apaixona-se e desavém-se porque lhe falta o essencial para o bem-estar (casa, trabalho, bens de consumo, viagens, liberdade). Ou então, anda feliz até encontrar uns tipos com falta de dinheiro que lhe fazem a vida negra. Os tribunais não versam sobre outra coisa: contas de telefone, perdas de património, chapadões caseiros e sacos azuis. Os ricos sofrem desalmadamente de carência financeira. Basta ver uma telenovela, com a família poderosa enrolada num problema sem solução. O supra sumo do capitalismo manifesta-se exemplarmente nos indigentes. Os que nada têm beneficiam de um programa de auxílio que os alimenta, no limiar de subsistência. Milhões de pessoas acantonadas em bairros sociais ou, bem pior, em campos de “refugiados” tomam a sopa e são seleccionados com pinças marcianas pelo sistema (um artola adopta uma criança, um cantor promove um single, um pau grande vai para a cidade, um meliante trafica, etc.). Os mais fortes vão para o exército ou para a polícia; os dóceis fazem trabalho comunitário, as mães criam, os pais fumam, a ONU queixa-se. Não há dinheiro. Os desempregados precisam que 23 buldozers destruam uma frente marítima ou um subúrbio para instalar um hotel ou um hipermercado. Cria-se emprego. Ganham acima do mínimo no primeiro ano. Um tipo inteligente selecciona o investimento graúdo, de acordo com o grau de destruição da natureza. Se criar suficiente emprego, o investidor pode ser subsidiado e tem carta amarela para eliminar os ratos das redondezas. As grandes empresas assim instaladas depressa descobrem: o dinheiro não chega. Ameaçam fechar e fecham. Subsidia-se a divisão do terreno para criar emprego. Nesta altura o governo é outro e tem uma política belíssima de renovação do emprego. A todos os desempregados, pensionistas e pobres a quem o dinheiro obviamente não chega, é prometido um futuro garantidamente flutuante, sobre um tapete de dinheiro insuficiente. As meninas da escola competem entre si em silêncio. São as únicas que sabem como podem escapar à dependência. A nota dá-lhes acesso a uma carreira, em posição vitalícia. Por isso marram e marram. Parecia a felicidade. Afinal, um dia, a nota não dá emprego. Tentam foder, mas não dá dinheiro. Vão para recepcionistas do congresso, fazem um estágio gratuito na UNESCO, conhecem dezenas de pirulas colocados na alta administração e nas empresas. Casam bem, têm três filhos de uma vez. Ah! Que bom. Um dia descobrem que o dinheiro não chega. O pirulas perde o emprego ou arranja outra. A grada função que têm desempenhado não retribui o bastante para suportar a escola privada do menino. Três outros pirulas andam só a papar, sem prometer nada. Um desespero. Por fim o preto, de ténis de marca americana. Ela perde a cabeça e entrega-se. Perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe. Disfarça. Os pirulas desaparecem, um para Angola onde arranjou um contrato que o vai tirar de agruras, outro para a terra, a gerir as heranças dos pais, dos avós e dos tios, absolutamente desenrascado mas murcho, o terceiro com uma estrangeira pobre que ama desalmadamente. O preto arranjou uma velha rica e dezasseis amigos do bairro social. É então que ela começa a fazer reiki, a gerir o tempo de trabalho com sisudez e a desconsiderar as colegas do serviço, aquelas tronças hipócritas, dito que remoçam de si para si umas para as outras. O administrador do condomínio pede obras no prédio. Cancela a viagem a Cabo Verde. Bolas, o dinheiro não chega. Olhando para toda a tua vida, nem as fodas escapam: o dinheiro esteve sempre presente enquanto problema. Até o Donald Trump, quando topou aquela miúda super gira, perdeu toneladas de massa. Não se pode tirar o olho do negócio. O rico precisa de tempo para conservar o dinheiro, que o mesmo é dizer, aumentar o pecúlio. O aumento dos ganhos é sempre relativo. Vem uma crise e o valor desce para metade. Fala-se com o Governo, subsidia-se as eleições, faz-se uma auto-estrada, aperta-se o cinto, obriga-se os outros a apertar o cinto, aumenta-se os preços, vende-se menos, compra-se menos, enfim, um sufoco. Vai-se para Veneza de paquete, a descansar. Veneza está pelas horas da morte. Caríssima. Até aquele empregadote dos quartos achou pouco a nota que a velha lhe deu. Não sei onde isto vai parar, para já. A pele envelhece, vou para a ginástica, aquela aula que frequentava, tão gira, já não se faz. Agora o sistema é outro, mais caro. Procuro cremes anti-rugas, os melhores claro. Há um com algas naturais de coral da ilha mais pura do Pacífico que custa quase o mesmo que um Fiat Panda. Ai, quem me dera tê-lo. Assim se vai o dinheiro. Não, preciso defender-me. Os empregados este ano não têm aumento. Besteira! Aumento-os, se trabalharem mais. Assim como assim, o dinheiro não chega. O empregado adestrado à cadeira progride pelo ascensor acima e volta para casa às 18h. A mulher chega depois, que vai buscar os filhos à escola. No final do dia, sentados frente ao televisor, disfarçam um beijo. O tipo diz, tou farto de ver ricos com problemas! E vai para o computador ver gajas esporradas, sem pretensão de tusa, mas de sono. A mulher suspira com uma visita à aldeia dos pais. Quem me dera a reforma, que aqui já não estava. Recebe o telefonema do filho que está no primeiro ano do primeiro emprego: o dinheiro não chega. Telefona para a Cofidis, para quem o dinheiro chega sempre e depressa. Pela manhã diz ao marido, como quem não quer a coisa, O João precisa de dinheiro, pensei na Cofidis. E ouve apenas, temos de pensar nisso. Os dias passam. A mulher opera sozinha com o telefone e desenrasca o filho. Um dia a conta bancária sofre um baque. O tipo, irado, barafusta: eu não tolero isto. E sai porta fora. Três meses depois estão divorciados. Duplicam a despesa, duas casas, dois carros, contas de telefone, água, luz, gás, namoros, jantares, etc. Felizmente o pai dele morre. Muda-se para a casa vazia, diminui a despesa. Dá-se conta que já não rende na cama, deixou de fumar, faz dieta, sobram-lhe uns trocos, e ajuda os filhos, em particular o João, agora a constituir família, com muitas dificuldades de dinheiro, que o emprego na Caixa é bom, mas não dá para tudo.
Nesta história já temos, pelo menos, três velhos. Velho é aquele que vive à conta do Estado sem trabalhar, mas com direito próprio a pensão. Com os descontos que fizeram, chega perfeitamente para as despesas. Viajam na INATEL. Vão aos bailes da associação. Apoiam muito o presidente da Câmara, sujeito atencioso. Um belo dia, um tropeça, outro sofre dum inchaço na barriga, outro tem um AVC. O dinheiro não chega. No hospital não prestam assistência suficiente. Sabem de uma clínica, caríssima em Barcelona que os põe como novos. Mas chegar lá! Tristes vidas, sempre a precisar de dinheiro e sem o ter. Donald Trump, pelo contrário, queixa-se dos cuidados em conservá-lo. Não pode passear no parque, com medo dos sequestros. Não pode falar à vontade sobre o Governo, com medo das represálias nos negócios. A mulher, lindíssima, não tem tempo para ele, mas montou um sistema de vigilância, a ver se o caça com outra. Passa o dia a dar ordens por telefone. Cada ordem é um Karma negativo na próxima vida. Logo agora que começou a acreditar nas reencarnações. Substitui o sistema de chefia directa, por administradores delegados bem pagos, que apenas reportam os resultados financeiros. No último ano perdeu metade da fortuna. Envelheceu, ou morreu ou vai morrer, caga bem ou com dificuldade, um bacano. Se dividir o dinheiro pelos conhecidos, cada um compra um Fiat Panda. Que diabo! O dinheiro não chega para um Rolls Royce. O dinheiro é um trauma. O sistema capitalista é isso mesmo, um dispêndio imenso de dinheiro, de energia, de natureza e de paisagem ecológica, uma morte anunciada. Se eu mandasse, acabava com o dinheiro.

terça-feira, 14 de julho de 2009

A Lista Negra

Há qualquer coisa de panasca na lista negra. O esquecimento é um dom, como Nietzsche ensinou. A força que se exerce enquanto tal é por si mesma destituída de memória. O alinhavo é circunstancial. Já o registo calculado dos sucessos é operativo. A lista negra difere da relação de factos pelo fim personalizado que visa atingir. A taxação dos indivíduos, seja pelo item familiar ou de jardim-escola, seja pelo quadro socio-político ou pelos acasos em que intervêm, descontextualiza e desestoriza. Dirias que seria mera consequência de uma tentativa de carreirismo. Mas enganas-te. A lista negra exige um coca-bichinho: um espírito recuado, fingido, oportunista, uma picha curtíssima, um ressabiado a saborear uma lenta vingança muito ocasional. E que, no entanto, cresce. Um golo de belo vinho entornado sobre uma mesa de requinte que se vai espalhando e infiltrando, ajavardando a madeira. A lista negra é uma doença. É um socialitismo tosco que se alambaza de um Estado dormente, mas envolvente como um lençol quente e húmido. O panasca da lista negra é um deficiente por falha de capacidade de renovação vital. Em vez de esquecer os sucessos, guarda-os; em vez de se recompor, recobra; em vez de se afirmar pelo que faz, afirma-se pelo que faz aos outros. Para ele não há história, há mesa de mistura e manetes estacionárias. É identificável pelos lábios inexpressivos, pelo olhar sempre indirecto, pela dobra do rosto quando confrontado, pela busca da posição de poder, ainda que agachado. E que, no entanto, cresce. Cada vez são mais. A lista negra alarga-se sob as suas mãos finas, quase secretas, onânicas. Dirias que também as há azuis, brancas, vermelhas e etc. Mas enganas-te. Todas as listas são negras. O panasca da lista negra é destituído da sensibilidade das cores, que também é a sensibilidade do amor (seria possível o amor sem o esquecimento?). Os indivíduos são registados a preto (preto memória, sem tinta) e apenas diferem entre si pela ordem das colunas e pelos itens castratórios. Tu, não tenhas ilusões, estás na lista negra, pelo menos numa. Olhos perscrutadores, prodígios da creche (ah, esse ressaibo inigualável dos tempos da creche que recalcitra perpetuamente os panascas da lista negra!), observam tudo e todos e catalogam, vigiam, aplicam e castigam. É a tarefa dos panascas da lista negra. São tantos e tão poderosos que apenas podemos esquecê-los. Esse, o dom que nos foi concedido. Como pardais, tenhamos porém presente a memória da perseguição: triste destino o dos pardais que o ignoram. A lista negra é uma arma de caça. Tem os seus guardas, os seus esbirros, os seus algozes, e os panascas pardacentos que, muito demoradamente, a elaboram. Carreira: palavra a abolir. De ora avante dir-se-á apenas caminho. Carreirismo passa a caminhismo. Não tropeçamos. Nunca apontes o pé que te rasteira. Olha em frente, segue, diminuído embora, não balbucies. Já estavas na lista negra, continuas pardal.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Como se reescreve a história


O episódio não merece a denúncia de Marc Ferro, na senda das desmistificações históricas que empreende, mas, na sua quase insignificância, é ilustrativo da composição oficial dos feitos dos políticos portugueses, do esquecimento dos factos à propaganda. Conta-se em breves palavras.


Na primeira eleição presidencial, de 1976, organiza-se um grande comício de Ramalho Eanes na Praça de Touros de Évora. Grupos de jovens esquerdistas apoiantes do candidato Otelo Saraiva de Carvalho, já habituados a tentar impedir as manifestações dos partidos de direita, concentram-se frente à entrada do recinto para vaiarem os adversários e, sobretudo, Eanes. Dezenas de seguranças privados com armas à cintura, que às vezes empunham, e alguns polícias criam uma zona de protecção em toda a envolvente, remetendo os manifestantes e os curiosos para o passeio junto ao jardim público. Num ambiente mexicanizado, alguns inocentes são estupidamente agredidos pela polícia (um homem que avisa um polícia de que um civil está armado; outro que pergunta pelo filho), enquanto pequenos grupos de manifestantes ganham fôlego para gritar. Terminado o comício, que teve grande participação, um carro abandona a Praça com Ramalho Eanes acenando através da abertura do tejadilho do banco traseiro, escoltado por seguranças a pé. Um coro de vaias e raras pedras repercutem-se na sua direcção. Eanes, herói da Guiné, eleva-se e chega a pôr-se de pé sobre o carro desafiando as pedras que, por sorte, não o atingem. Os seguranças desatam aos tiros, talvez meia dúzia de disparos. Os protestos suspendem-se e o carro parte. Um homem que, como tantos outros, assistia por curiosidade aos acontecimentos é atingido no abdómen e vem a falecer.


Aqueles factos foram presenciados por mim, também um curioso assistente, encontrando-me no tabuleiro central frente à Praça de Touros, junto a uma árvore e a um polícia, enquanto a vítima mortal estaria sentada no lado oposto, alguns metros adiante, sobre o muro do jardim. Ainda o vi ferido. Um forte pesar caiu sobre as gentes nos dias seguintes. Os disparos foram feitos na horizontal contra um magote de gente. Alguns acreditaram que seriam identificados os autores. A acção corajosa de Eanes, ostensiva, temerária e inconsequente foi a causa primeira. Não me apercebi de acções provocatórias de infiltrados ou de ajudas físicas a Eanes, como não recordo que os grupos esquerdistas tivessem apurado algum indício pertinente nesse sentido.

Com os fortes apoios políticos que reunia e a sólida campanha que desenvolveu, Ramalho Eanes ganhou a eleição, apesar do incidente, aliás abafado pelo ruído Matoso da campanha eleitoral. Consulte-se agora o Volume 8º da História de Portugal com direcção de José Mattoso, pp. 132-133, da autoria do Doutor José Medeiros Ferreira: “E será durante a campanha para as eleições presidenciais, no verão de 1976, que o então candidato general Ramalho Eanes ... se ergue sozinho numa viatura em andamento em pleno Alentejo para erradicar o medo que se viveria naquelas paragens... O gesto do futuro presidente da República destinava-se a ilustrar que, com ele, as leis se aplicariam em todo o país.” Da saída do comício, onde estivera rodeado de apoiantes, protegido pela segurança privada, frente a grupúsculos de jovens, passamos para o atravessamento do Alentejo inteiro, enquanto zona de opressão social e ofuscamento democrático!


Legitimada por tão errada interpretação dos factos – errada, mas não inocente – , e assente num diz que diz que ainda se encontra na net. A própria página da presidência da República (http://www.presidencia.pt/?idc=13&idi=24&action=7) assevera: Ramalho Eanes, “na tentativa de esbater divisões tão radicalizadas - ver os confrontos a tiro, de que resultou um morto, aquando da sua deslocação em campanha a Évora (18.6.1976) - afirma querer ser o "Presidente de todos os portugueses", mote que tem sido retomado pelos sucessores”. Os disparos dos seguranças do candidato passam a “confrontos a tiro”, emulação dos conflitos sociais que o Presidente resolveu. Na verdade, ter-se-á tratado apenas de uma reacção defensiva dos protectores pessoais de Eanes, perante o gesto inusitado e impulsivo que tomou, tão ao seu jeito. Se estivesse previamente delineada, deveria ter sido suspensa, para não causar maior animosidade social e para evitar, até, riscos físicos graves a Eanes.


Uma pequena mistificação, pouco importante, é verdade, mas que nos obriga a ponderar devidamente os textos de história e a autoridade dos historiadores. A história oficial serve.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Raça e racismo em Portugal: Três momentos

Claude Lévi-Strauss, no brilhante ensaiosinho “Race et Histoire”, de 1952, demonstrou que, mais do que formada por diversas raças, a humanidade é formada por diferentes culturas, em evolução e transformação constante: “duas culturas elaboradas por homens pertencentes à mesma raça podem diferir mais que duas culturas de grupos raciais distantes” (p.11). E acrescenta: “A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e perante nós” (p. 85), diversidade essa que deve ser preservada, compreendida e promovida, num espaço de liberdade e tolerância. A segregação racial, a ideia de que o outro é estranho, a rejeição dos “selvagens” pertence propriamente e caracteriza o relacionamento das tribos primitivas entre si. “O bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie” (p. 22). A ideia de humanidade surge posteriormente.


No magistral “Capitalismo e Esquizofrenia”, Gilles Deleuze e Félix Guattari explicam que “O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca procedeu por exclusão, nem atribuição de alguém designado enquanto Outro” (II p. 232). “Não há exterior, não há gente de fora. Só há gente que devia ser como nós, e cujo crime é não o ser ... O racismo nunca detecta as partículas do outro, propaga as ondas do mesmo até à extinção do que não se deixa identificar” (II p. 233). Equacionando a dificuldade de obstar a que o tema da raça se transforme em racismo, em fascismo, em micro-fascismo ou mero folclore, apontam o critério pelo qual se manifesta o fenómeno: “A tribo-raça só existe ao nível de uma raça oprimida, e em nome de uma opressão a que se submete: só há raça inferior, minoritária, não há raça dominante, uma raça não se define pela sua pureza, mas, pelo contrário, pela impureza que um sistema de dominação lhe atribui. Bastardo e sangue misturado são os verdadeiros nomes da raça” (II p. 482).


Já em 1935 Edmund Husserl, pugnando embora por uma “humanidade europeia”, ensinava que “não há nenhuma zoologia dos povos” (p. 125) e rematava: “Todos os bem-queridos discursos sobre o espírito da comunidade, a vontade do povo, sobre ideais, sobre objectivos políticos das nações e coisas semelhantes, são romantismo e mitologia, provindos da transposição analógica de conceitos que só têm um sentido próprio na esfera pessoal individual (p. 146, in Europa: Crise e Renovação).


Quer-nos parecer que os ensinamentos daqueles grandes pensadores se enquadram neste país pequenino que partiu pelos mares em missão tribal. Povo feito de uma miríade de povos que se miscigenou e se fez ao mundo, querendo metê-lo dentro de si próprio. A identidade de Portugal é a sua multiplicidade, desdobrada pelas várias culturas que sufragou e transformou. Pouco ou nada conservamos hoje dos guerreiros que navegaram até à Índia, genética ou culturalmente. Faz-nos tanto mal o marialvismo serôdio dos nacionalistas do fim do século XIX, como o bafo de erudição que alguns estudiosos do saudosismo português vão continuando a projectar sobre a cultura (pensamos em especial nos mais cultos e estrangeirados, como Eduardo Lourenço). Não podemos orgulharmo-nos da Inquisição, como não podemos esconder os horrores da escravatura, da repressão religiosa ou do colonialismo. Aperfeiçoámo-nos ou, singelamente, pertencemos a uma cultura diferente, e em mudança. A história tem de ser revisitada, com os olhos do mundo, tomando as fontes universais.


O relacionamento dos portugueses com os povos africanos conhece três fases bem demarcadas: 1) a pré-colonial, caracterizada por contactos de comércio com povos nativos, inclusive por relações diplomáticas formais com os soberanos mais influentes, enquanto se estabeleceram colónias de portugueses em pontos fulcrais, sem ocupação da totalidade do território; 2) a fase colonial, caracterizada pelo domínio territorial militar sobre os nativos, com incursões violentas para destruição das estruturas tradicionais de poder, não obstante tivessem permanecido, nalgumas regiões, relações pré-coloniais; e 3) finalmente a fase da descolonização, com a retirada militar, o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos africanos e a assunção de um princípio geral de igualdade e de não discriminação por efeito da raça ou da origem étnica.
A primeira fase vai do início da expansão marítima até ao “mapa cor-de-rosa”; a segunda até ao 25 de Abril; a terceira até ao regresso dos “retornados”. Três episódios significativos ilustram cada uma daquelas fases, embora sejam tão envergonhadamente abordados pela historiografia portuguesa, que mais parece que não ultrapassámos ainda a fase da descolonização.


D. João II explorou pessoalmente o comércio com a Guiné, mormente fomentando a troca de ouro da Mina por conchas das Canárias (Maria Emília Madeira Santos, Os Africanos e o Mar, in Revista do Centro de estudos Africanos, São Paulo, 1997). Também o tráfico de escravos representava um aceso comércio entre os povos africanos e os mercadores portugueses. Os wolofs, povo que dominava uma vasta região que abrangia a Guiné, eram dos principais fornecedores de escravos, sequestrados das tribos vizinhas, de ouro e de outras riquezas. Tinham uma forte organização política, hierarquizada e assente numa monarquia. Em 1488, na sequência de dissidências e lutas internas, um príncipe wolof, Buumi Jeleen, apesar de derrotado, tenta formar uma aliança com D. João II para combater os adversários (Vd. Cabo Verde, Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo, diversos autores). Vem então a Portugal com uma comitiva de 30 pessoas. É recebido com pompa e circunstância por D. João II, que lhe promete apoio. A 3 de Novembro de 1488 é baptizado, condição essencial para ser reconhecido como igual e indispensável para celebrar qualquer acordo. É armado cavaleiro e toma o nome de João Bemoim, príncipe dos jalofos, termo pelo qual os portugueses nomeavam os wolofs. Regressa a África com a impossível missão de evangelizar os wolofs, há muito convertidos ao muçulmanismo. Quando se iniciava a construção da fortaleza da foz do Senegal, por motivos não apurados, foi morto à punhalada pelo comandante português Pêro Vaz da Cunha (L. Adão da Fonseca, D. João II, pp. 134 e ss.). Temos pois um momento marcante da fase pré-colonial, que encaixa no conceito supra expendido de racismo europeu: a exigência de baptismo como condição de pertença à humanidade.


O segundo momento é bem conhecido, embora habitualmente narrado em tom de fervor patriótico, que não impede a profusão de erros. Em 1884 Mdungazwe, num ambiente de guerra civil, conquista o trono do império de Gaza, Moçambique, do povo nguni, que os portugueses denominam de vátuas. Toma então o nome de Ngungunhane, Gungunhana em português. Na sequência da política de partilha de África pelas grandes potências europeias, estabelecida na Conferência de Berlim de 1884-1885, Portugal tenta obter reconhecimento internacional para uma colónia gigantesca que ligava Moçambique a Angola. Neste quadro, promove inúmeras relações diplomáticas de protecção e vassalagem com os povos e reinos locais. A oposição de Inglaterra, que culminou no ultimato de 1890, forçou Portugal a quedar-se com os actuais territórios de Moçambique e de Angola, gerando uma onda de indignação nacionalista entre os portugueses. O território de Gaza fervilhava de incidentes militares, com incursões dos boers e de tribos desavindas. Gungunhana oferecia forte resistência aos portugueses, que, à força de metralha, conseguem derrotar os guerreiros ngunis em Coolela, a 7 de Novembro de 1895, e destroem Mandlakasi, capital do império de Gaza. Gungunhana retira-se para Chaimite, aldeia sagrada dos ngunis. Seguindo a política de pacificação, “o Governo deu por finda a expedição” e nomeou Mouzinho de Albuquerque Governador de Gaza. Porém, Mouzinho insubordinou-se e, reunindo uma força com alguns milhares de homens (cerca de 53 portugueses, alguns boers e muitos indígenas), ataca Chaimite e aprisiona Gungunhana. O feito inflama o patriotismo. Cerca de dois meses depois, a 13 de Março de 1896, Gungunhana e a família são ignominiosamente expostos numa jaula através das ruas de Lisboa, perante o gáudio medieval da população. Mouzinho não consegue autorização para os fuzilar, que Portugal havia abolido a pena de morte. Presos no forte de Monsanto, os homens acabam desterrados para a Ilha Terceira, separados das mulheres que são, por sua vez, desterradas para S. Tomé e Angola. Num gesto semelhante ao praticado com João Bemoim, Gungunhana é baptizado e é-lhe dado o nome de Reynaldo Frederico. Morre 10 anos depois.


A região de Gaza continuou a resistir militarmente à ocupação portuguesa, pelo menos até 1910. Mas, o patriotismo oco e cruel daquele momento é sustentado por longos anos, louvando-se Mouzinho de Albuquerque como um herói. O Estado Novo elege-o como símbolo do colonialismo e comemora o “dia de Mouzinho”, a partir de 1935. Em 1985, numa cerimónia oficial, algumas ossadas são atribuídas a Gungunhana e enviadas para Moçambique, onde se realiza uma cerimónia fúnebre (Fontes: Rui Ramos, in História de Portugal, Direcção de José Mattoso, VI, em especial p. 322; Wikipedia, em inglês e português, Gungunhana; Carlos Pinto Santos, in http://www.vidaslusofonas.pt/ngungunhane.htm; etc.).


Como se sabe, o terceiro momento ainda não está concluído. Não se aguarda apenas a integração plena dos africanos que vivem em Portugal ou o reconhecimento daqueles que serviram o exército português, questões que talvez se devam mais à pobreza em geral que a uma política orientada. É todo um discurso patriótico assente na guerra de África que, quando em vez, brota com autoridade. É o discurso oficial do estado que sobreleva os feitos coloniais remotos de Afonso de Albuquerque e outros, enquanto remete para um delicado limbo os feitos de Mouzinho de Albuquerque. É a exaltação de um heroísmo militar, afinal dependente da fraqueza do inimigo, que se projecta no discurso político oficial. Neste aspecto também o 25 de Abril fracassou e não parece conter já qualquer chispa de luz que permita apontar um caminho. Fomos libertados da guerra, mas não dos seus fantasmas. Não será com o 10 de Junho e com a tardia exortação daqueles que saíram da pátria para ganhar o pão que se suplantará esta falha (no sentido geológico do termo, diáclase). Camões não está aí.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Para uma biografia de D. João II

A história dos sujeitos é uma história da acção contingente. Mas será redundante reduzir a intervenção dos grandes protagonistas às relações pessoais com que se debateram para conquistar ou para assegurar posições de poder. O verdadeiro acontecimento que aí se expõe imediatamente é a abertura do sujeito às forças que se opõem no vasto quadro de uma sociedade em transformação: a luta pelo poder, o esmagamento dos rivais, os tratados de compromisso, o lançamento das grandes obras, as medidas de entesouramento e de investimento, tudo centrado num núcleo reduzido e elitista dirigido pelo rei, podem expor com maior claridade do que se supõe um jogo de forças muito mais amplo e muito mais poderoso que se trava nessa dada sociedade. O rei poderoso, quando vence um príncipe inimigo, fecha um plano de luta sobre si próprio e, como um íman, atrai para si as forças que, por serem forças, querem guerrear de modo independente. Matar um rival é um fechamento e um chamamento, não daquela crise de rivalidade, que até poderia ser solucionada de muitos outros modos, mas dos corpos estranhos, imagéticos e energéticos, que cruzam a sociedade e desafiam qualquer poder. Uma biografia do rei, com os seus adversários directos, as suas viagens, as vitórias e derrotas, as idiossincrasias pessoais, namoros e filiações, é uma história que não quer ver a história que ele conduziu. Para se compreender melhor este ponto é necessário questionar de que modo podemos atribuir ao soberano o sucesso de um feito historicamente relevante, por exemplo o dobramento do Bojador. Os navegadores, os simples marinheiros, os construtores, os mapeadores, os negociantes, os temerários podem eles ser reconduzidos à autoridade de um único homem? Claro que podem, desde que reconheçamos que poderiam por ele ter sido impedidos de realizar o feito (como D. João II cortou as vasas a Cristóvão Colombo e a Fernão de Magalhães). Já não parece plausível que reduzamos Bartolomeu Dias a mero fautor do rei.Os grandes movimentos das cidades (Lisboa, Porto, Aveiro, Viana do Castelo, Coimbra) conduziram o rei a Évora. Os sonhadores que partiam dos campos em busca de lugar nas naus em direcção ao desconhecido não estavam sob as ordens de um soberano. As forças que brotavam e cirandavam pelo reino criando exuberâncias na pedra das igrejas, no que veio a ser conhecido por manuelino, dificilmente poderiam ser contidas, embora se tivesse tentado aprisioná-las pela importação de um modismo italiano tardio, na transição do renascentismo para o maneirismo. O rei erigia o estado. O estado representa o redireccionamento daquelas forças, a desterritorialização, passando de acção livre a acção para o rei. Tal desiderato foi conseguido por uma gravidade e encenação permanentes. O palanque na praça central onde um familiar do rei é executado com requintes cerimoniosos e cruéis faz parte dessa mise-en-scène, do rei tecendo o estado e sendo por ele tecido, mesmo entretecido. Temos então o segundo momento da pesquisa biográfica: o modo como o rei condutor é aprisionado na teia que crê tecer, a absoluta necessidade da acção de que não pode fugir, os acontecimentos que exigem estritas medidas predeterminadas (diríamos hoje, pelo princípio da legalidade), preparadas para situações gerais mas não para aquela em concreto. O poder conduz o rei a ser rei de um modo irredutível, previsível e absolutamente terminal.O estado estrutura-se independentemente do seu titular. A cobrança de impostos rotinada e inquestionada é o seu grande ideário. Mais a cobrança das coimas ou melhor a montagem da grande máquina policial controladora de todos os movimentos. Tudo paga imposto, tudo carece de licença, todo o desvio é reprimido, isto é, taxado. O biógrafo refere-se a fontes de receita e com isto revela a sua ingenuidade – ou mesmo malevolência, se igualmente desqualifica a repressão atroz sobre as pessoas. A historicidade que vulgarmente se atribui à repressão esconde uma incapacidade de ver e revela uma concordância ideológica. O rei é inultrapassavelmente aquele homem jacente; o que o biógrafo na verdade ressalta é o seu apego ao estado. Para a máquina estatal é indiferente a lei que se aplica, sempre conjuntural, mas é-lhe imanente o domínio sobre o processo repressivo: o imposto, a coima, a pena, o crédito, a máquina desterritorializadora.Desde as grandes obras de J. Veríssimo Serrão e de H. Baquero Moreno, D. João II não tem merecido suficiente investigação historiográfica. As biografias de Luís Adão da Fonseca e de Manuela Mendonça, esta menos interessante, não conseguem tomar rumo dentro da historiografia contemporânea. Uma vida trágica, austera, um braço forte e firme sobre todas as intempéries, uma luta constante para construção de um trono, fraqueja perante o mecanismo, subliminar ainda, de um estado em processo implantação. Verdadeiramente, a coroa de glória deste estado central é Alcácer-Quibir com o derradeiro dilaceramento dos últimos heróis camonianos. Esta história continua por fazer.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Fuzeta: das chotas aos bilros

Em história ou sociologia, a investigação deve ter como ponto de partida a identificação dos sinais das culturas, técnicas, etnias e relações intersociais presentes numa dada localidade, bem como a compreensão dos mecanismos de transmissão dos conhecimentos entre grupos e de geração em geração, a hierarquia das funções e posições de poder, as próprias vivências das comunidades. Numa aldeia espera-se encontrar alguma homogeneidade cultural, reduzida divisão do trabalho, dependência de escassas fontes de subsistência. Espera-se crescente complexidade na medida do aumento da dimensão dos povoamentos. Porém, importa ter presente que, sobretudo nas comunidades antigas, a dimensão pode não ser critério bastante. Num mesmo lugar podem encontrar-se pequenos grupos culturalmente distintos, dominando saberes e técnicas diferentes, e assim partilhando os mesmos espaços de modo não concorrencial.

É (foi) o caso da Fuzeta. Pequena aldeia de pescadores, não merece menção nas fontes históricas senão a partir do século XVIII. Sobre a antiguidade da Fuzeta leia-se o artigo anterior deste blogue “contribuição para o estudo do burguel”. A presença de uma população piscatória é evidente. Desde as corografias do século XIX, repete-se que o lugar evoluiu da ocupação em cabanas para a construção em alvenaria. Todavia, esta visão afigura-se simplificadora.

A Fuzeta tem uma localização privilegiada sobre um maciço calcáreo altaneiro frente a uma barra da Ria Formosa, entretanto deslocada. As potencialidades económicas são muito diversificadas. Desde logo as actividades ligadas à agricultura, em especial a produção de frutos secos e de vinho para exportação, contando com escoamento pelo porto de mar, que atingiu o expoente no final do século XIX, mas que é referenciada (figueiral) no foral de Faro. De valia exportadora semelhante, a produção de sal parece antiquíssima, pelos vestígios de contenção dos terrenos da ria, jogando entre a conquista de terras agrícolas e o aproveitamento salineiro. Tiveram forte expressão as actividades recolectoras dos produtos naturais da ria, algas, peixes e mariscos. A pesca local, na ria e na proximidade da costa, justificou o assentamento de pequenos grupos de pescadores. As armações de atum, dependentes de grandes concessões públicas a grandes proprietários ou, no século XIX, a empresas específicas, arregimentavam grandes grupos de trabalhadores na época das campanhas. Distinta daquelas eram a pesca de alto mar e a actividade de transporte marítimo.

Cada actividade empregava diferentes populações, com carácter sazonal. Para a apanha de frutos, de algas, arraial de atum e outras actividades recolectoras eram necessários trabalhadores indiferenciados, especialmente mulheres e crianças. Para as salinas, reservavam-se os empregos com especial cuidado para famílias tradicionalmente ligadas àquela actividade, os marnotos, por receio de que as técnicas de exploração fossem transmitidas a estrangeiros, protegendo-se assim uma das principais riquezas do reino. A pesca de alto mar exige competências que não se coadunam com uma população ligada à pesca ribeirinha. A seca de peixe, produção de peixe fumado ou em conserva, que atingiu o auge com a difusão da “arte nova” de apanha costeira da sardinha exigiam pessoal especializado. Por outro lado, a intensa pirataria, que apenas abrandou a partir de 1830 quando os franceses conquistaram a Argélia, as epidemias recorrentes, em especial de cólera (estão registadas as devastações de 1833 e 1855-1856, mas a cólera reincidiu até meados do século XX), os sismos, as guerras, sobretudo as invasões francesas, e os grandes fluxos migratórios, para Espanha ou América, fizeram partir ou trouxeram renovadas levas de gentes. Pequenos grupos refugiaram-se também aqui, vindos pelo Mediterrâneo, mantendo as suas tradições, aproveitando-se da natureza aberta, abundante e carente de mão-de-obra.

As políticas de povoamento, de incremento das pescas e da actividade marítima sustentaram concessões para salinas, armações de atum, mas também de companhias de pesca e de conserva. Nesse âmbito, diversas populações piscatórias foram aliciadas a instalar-se na Fuzeta, vindas de zonas pesqueiras da costa Norte, estando documentadas migrações do distrito de Aveiro. Eram pescadores que dominavam as artes de velejar e das redes, formando companhas organizadas. O conjunto daquelas actividades era igualmente controlado pelos poderes públicos. Os pescadores estavam sujeitos ao “compromisso marítimo”.

Não é possível seguir a evolução destas populações, senão, como se referiu, desde o século XVIII. Antes da fundação da paróquia, um simples lugar não merecia referência nas fontes e muito menos mereciam relevo as pobres gentes locais. No século XX, encontramos distintos grupos populacionais. Os pescadores das companhas de alto mar, dos caíques e das traineiras, que velejavam de Larache a Lisboa e pescavam bacalhau na Terra Nova, formavam o núcleo principal, habitando nas casas de açoteia do núcleo urbano. Os pescadores pobres, que moravam nas zonas ribeirinhas ou em cabanas no areal ou na ilha, parecem distintos daqueloutros, empregando-se na pesca local e usando artes arcaicas. Os proprietários rurais e, nas franjas da povoação, camponeses sem terra formavam um grupo pouco numeroso, mas com expressão enquanto empregadores sazonais. A população ligada aos poderes públicos, aos serviços ou com bens de raiz formavam o topo da hierarquia da Fuzeta. Estes grupos distinguiam-se pelo sotaque, pelos modos de vestir e de conviver e tinham, todos eles, a sua própria estratificação em função dos rendimentos. Sofriam da segregação social, dos terrestres sobre os marítimos e camponeses, dos marítimos das traineiras sobre os das artes arcaicas e montanheiros. Destes sobre os meramente recolectores.

Tal como nos principais núcleos piscatórios de Portugal (Matosinhos, Nazaré, Sesimbra, Portimão), após o 25 de Abril a maioria da população votou no Partido Socialista, alteou as casas, ocupou os terrenos vagos com construções, desrespeitou a traça urbana tradicional, mudou várias vezes de mobília e conservou a sua qualidade de trabalhadores honrados, sem preocupações de ascensão social. É curiosa a comparação entre aqueles núcleos urbanos, como é sugestivo o distinto comportamento da gente rural, os montanheiros, que preferiram votar PSD, aumentar o património, ascender à política.

Um singelo traço une as populações piscatórias referidas: a tradição dos bilros, complexa arte de tecer rendas de seda, que percorre os lugares ribeirinhos desde La Corunha, na Galiza, até precisamente à Fuzeta – e que se disseminou por terras do Brasil. Praticada por mulheres para acréscimo de rendimento doméstico ou para delícia do lar, por vezes conjugada com a criação do bicho-da-seda pelas crianças da casa, como mandou ensinar o Marquês de Pombal, revela a persistência de uma cultura uniforme ou com a mesma origem. Se ajuntarmos as práticas tradicionais da pesca, que levava os pescadores da Fuzeta para os mares da Terra Nova, bem como os de Ílhavo, recrutados de entre as famílias com tradição da pesca de alto mar, podemos concluir que se trata de uma mesma cultura.

Distintos destes pescadores eram aqueles que viviam em cabanas de colmo (na ilha dá-se o estorno, gramínea empregue na construção das cabanas, mas não em quantidade suficiente para satisfazer a procura, pelo que eram empregues outras variedades; por isso, parece preferível dizer cabanas de colmo). Cabanas deste tipo eram alçadas por todo o território rural, com ligeiras modificações, habitualmente utilizadas por populações sazonais ou pobres. Todavia, na Ria Formosa, os moradores destas cabanas eram, no geral, pescadores de artes de pesca arcaicas, como a merjona. Não conviviam com os pescadores do bacalhau ou da arte da caçada e foram muito dificilmente assimilados após o 25 de Abril, podendo dizer-se que eram socialmente discriminados. Empregavam um sotaque mais lento e pausado, com prolongamento da última sílaba, enquanto o sotaque dos restantes pescadores era acelerado e tendia a cortar a penúltima ou última sílaba. Na fuzeta a população em cabanas terá tido fraca expressão, quando comparada com as proporções em Santa Luzia e em Cabanas de Tavira, mas tratar-se-ia do mesmo povo e da mesma cultura, apresentando idênticos traços.

Na Fuzeta, as gentes das cabanas eram epitetadas de “chotas”, termo que suscitou larga interrogação, embora esteja em desuso. Após alguma pesquisa e constatando que a palavra chota apresenta 7 denotações diferentes, em vários países, afigura-se-nos que a palavra deriva de “chotte”, termo francês para choupana, e que, pelo uso popular em tom depreciativo, derivou para chota. Passou também a designar as pessoas das cabanas, em vez destas propriamente ditas.

Talvez não seja já suficientemente abalizável um estudo que aborde os diferentes sotaques que se empregavam na região: apenas na Fuzeta, 3, que somados aos de Moncarapacho, Olhão, Tavira, Cachopo faziam uma miríade de falas que representavam culturas e povos distintos. O grande feito da democratização após Abril de 1974 consistiu na progressiva integração destas gentes, com abolição das discriminações sociais: anteriormente, um pescador não podia entrar na associação recreativa dos terrestres, um montanheiro não podia casar com a filha de um pescador, um pobre não tinha acesso aos cafés. A cultura tradicional de cada grupo permanecia na memória colectiva através destes sinais plenos de arcaísmos e de raízes, ora quase perdidos.

O grande sismo


Cresce o pressentimento de que a reconstrução urbana das cidades aguarda os efeitos de um próximo grande sismo. A geologia, mal amada pela política e pelos éticos, tem estado, desde as suas origens oitocentistas, relegada para um domínio de oclusão e de sombra. As descobertas que produz tornam-se públicas com décadas de atraso, mas não são desconhecidas da alta esfera dos decisores. Foi assim com a teoria da deslocação das placas continentais, que esteve proibida durante quarenta anos. É hoje assim com as tecnologias que detectam o risco sísmico, também falsamente escamoteadas. Não se fazem ensaios geológicos sérios e profundos, apesar de disponíveis, mas sabe-se que poderá estar próxima a eventualidade de um tremor de terra de escala destruidora. Turquia, Itália, provavelmente Portugal. É neste quadro que alguns técnicos ligados ao aparelho político gracejam perante a urgente necessidade de recuperar os centros urbanos e alguns subúrbios das nossas maiores povoações, que apresentam um calamitoso estado de conservação. É ainda naquele contexto que os bombeiros e a polícia fazem exercícios absolutamente ridículos, denominados de protecção civil.


Uma nova ordem política poderá ser lançada em caso de efeitos sísmicos catastróficos. Não temos a pujança dos grandes países, que encontram em si próprios os recursos para fazer frente às calamidades. Nota-se aliás uma política consistente, persistente e conjugada de construção de edifícios públicos seguros ao redor dos maiores núcleos urbanos. Pavilhões desportivos e escolas para realojamento da população afectada, teatros para quartel-general das forças de intervenção, hospitais com capacidade de salvamento, universidades para realojamento das classes superiores, redes circulares de estradas que ligam aqueles equipamentos, etc. O estado prepara-se para resistir aos efeitos de um eventual terramoto.


Entretanto, a maioria da população vive em edifícios incapazes de resistir a um sismo superior a 6 graus na escala de Ritcher. Não se espere que seja possível a responsabilização dos construtores: os eventuais crimes estarão prescritos e os que não o estiverem não terão responsáveis com meios para suportar as indemnizações. Assim o permite a actual lei. Todavia, essencial seria que se tomassem medidas para salvaguardar as populações. E são essas medidas que faltam, estranhamente. Na actual crise, uma política de verificação e correcção de defeitos poderia contribuir para melhorar a actividade de algumas empresas e manter empregos.


Em vez de se perder tanto tempo a discutir a conjuntura, interroguemo-nos sobre um cenário de ruptura que deite por terra não só as casas, como o regime democrático.

Pensamentos do Minesweeper

1. O progresso do conhecimento individual é decrescente
2. A capacidade de investigação auto-limita-se pelo sucesso
3. Reflectir antes de agir melhora o resultado
4. A reflexão depende de um estado de espírito adequado
5. A reflexão cansa
6. O cansaço provoca o erro
7. O estado não reflexivo vicia
8. Quanto mais difícil é a aprendizagem, mais satisfaz o que se sabe
9. A ignorância joga à sorte
10. A ignorância desconhece o erro
11. A acção irreflectida é sempre errada
12. Sorte é o resultado favorável da acção irreflectida; azar, o desfavorável
13. A sorte é transitória
14. A sorte provoca a audácia e esta o insucesso
15. A premonição avisa da falta de método
16. Não é possível validar a premonição antes da ocorrência do facto premonitado
17. O método tende a adaptar-se às premonições
18. O método informal socorre-se do número três
19. O desconhecimento da matemática impõe o método
20. O método transforma a ignorância em incerteza e o azar em risco
21. A multiplicação é um milagre
22. A descoberta é ocasional e surpreende
23. O fracasso é instigado pela intuição da derrota
24. Os erros formados no processo de aprendizagem não se corrigem pelo trabalho nem pela experiência
25. Não se aprende com os erros
26. A experiência dos erros impõe a reaprendizagem
27. A rotina e a aplicação repetida nascem dos erros da aprendizagem
28. Não se aprende pelo trabalho
29. O trabalho prejudica a aprendizagem

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Três vivas ao Dr. Gama Barros!

I
Não que precise deles ou que releve de algum modo o apoio moral, cumpre-se apenas um dever de cidadania em defesa dos primados básicos da convivência em sociedade. Três vivas ao emérito acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que mandou fazer a elementar justiça a uma criança sujeita ao perigo de ocupação privada (ocupação no sentido contido nos arts 1318 e seguintes do Código Civil). Para saber do direito que se aplica ao caso da menor Alexandra, que foi reconduzida à família e à Rússia natal, aconselha-se a leitura do esmerado e erudito acórdão, na versão original e não nos apartes inventivos que um jornalismo de ralé tem vindo a propagar (http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3f15b684ad7384368025744a004f8834?OpenDocument&Highlight=0,864%2F08-2). Toda a linguagem do acórdão é técnica, apuradamente jurídica e incisiva. Só quem não abriu o dicionário pode atacar o acórdão pelo emprego do adjectivo “serôdia” que qualifica a falsa maternidade da ama. E ama, perdoe-me o ilustre juiz que comenta sentenças na televisão, é o termo técnico do caso, não família de acolhimento, pois esta apenas contextualiza aquela.

Como sabem todos aqueles que já tomaram o gosto ou o fel da crueldade do estado e da sociedade mundana, nada mais temos que o sangue que nos corre nas veias. Tudo o mais pode ser despojado, ainda assim continuamos a ser. Retirado porém o vínculo paterno/materno, perdida a nacionalidade, imposto artificialmente um novo nome e um novo passado, feito um corte radical com aqueles que são nossos, estamos então no mais profundo abandono. As primeiras vítimas desta desqualificação, desterritorialização e amordaçamento espiritual são os pobres.

Alguns interesses estranhíssimos pretendem lançar sobre os pobres uma nova incapacidade civil: a do direito à família, à filiação, à convivência fraternal. A primeira vítima é a criança de tenra idade, único bem de valor que os pobres podem trazer à sociedade de hoje; seguem-se-lhe os pais, os avós, os irmãos, que perdem o elo consanguíneo. Num mundo em que tudo está submetido à lei da oferta e procura, esgatanham-se alguns pela apropriação dos filhos dos indigentes. Todavia, um dever fundamental do estado de bem-estar social é o de proteger os desvalidos. Este dever claudica quando uma criança é retirada à sua família e entregue a uma empresa de criação de crianças (algumas privadas, como o Refúgio Aboim Ascensão), com os seus interesses mesquinhos de holofote e de empregabilidade sustentada pela indigência a que visam acudir. Claudica também quando uma pessoa se arvora titular de direitos de paternidade sobre uma criança, contra a vontade dos seus pais naturais e sem prévia sentença devidamente fundamentada emitida pelo estado (porque será essa pessoa melhor adoptante que qualquer outro? E quantas há disponíveis para acudir à menor? Centenas!).

Lembram-se da sentença de Salomão? Lembram-se da última notícia sobre um processo judicial em que se discutia a propriedade de uma gato abandonado que havia sido tomado por uma “família de acolhimento”? Lembram-se do último crime de homicídio violento cometido por um jovem sobre os pais adoptivos quando descobriu, por fim, que havia sido raptado da família natural? Lembram-se da última vez que mudaram de opinião? Façam um favor ao direito e aos valores fundamentais da ética: não dêem opinião fácil.

Confrontado com a corrente contra-informativa que de há alguns anos manobra a opinião pública sobre o direito de família e a protecção de menores, sujeito às consequências maléficas de um grupo de pressão organizado e poderoso, que chega aos mais altos poderes do estado, um homem teve a coragem de aplicar o direito, todo o direito internacional (leiam a convenção dos direitos da criança). E fê-lo por dever de ofício, por absoluta abnegação, por respeito aos seus poderes de independência. Este juiz merece três vivas. Salvé Dr. Gama Barros!

Leitor: antes de invocares o amor e a compaixão, responde: o que é o ressentimento? Antes de tomares partido no caso de uma criança, interroga-te: haverá sombras que desconheço?

II
Um dos maiores fracassos do nosso tempo, da tecnologia e da abundância, é o da perpetuação e até o agravamento da dicotomia entre ricos e pobres. Alguns vivem na indigência; outros, alienados pelo niilismo, tendo esgravatado lucros nas travessas, tentam projectar essa baba de micro-riquismo sobre uma criança alheia, que crêem moldável por meio de caprichos. O liberalismo não se limitou a extinguir a ignominiosa “roda”, pressupôs também uma sociedade tecnicizada em que todos os cidadãos seriam tratados por igual e em que o Estado assumia a responsabilidade da protecção do nascimento no seio da família. O moderno impulso do instituto jurídico da adopção resulta do falhanço daquele ideal de sociedade e do seu último assomo, o Estado de bem-estar social. Não vale a pena escamotear-se a triste realidade das clientelas e das influências que cirandam a política e os mecanismos da adopção, com o seu hierarquizado cortejo de dignitários morais e as suas veladas portas de sésamo. O que importa compreender é que forças se movem com tais interesses, que crenças se deixam moldar e por que têm vindo a obter tão forte adesão as campanhas de propaganda em seu favor.

Ressurge um evidente atavismo entre as massas populares, que repristina a roda e a política de adopção e sustento dos expostos (assim se designavam as crianças abandonadas até à I República). A criança abandonada passava de imediato à disposição dos poderes públicos e, se identificada, a mãe era punida e perdia a maternidade. Continua…

quarta-feira, 27 de maio de 2009

O princípio da porta aberta

Denomina-se impropriamente "princípio da porta aberta", por exemplo, a política de abertura da União Europeia à admissão de novos estados membros (que está em oposição com o princípio do aprofundamento da democraticidade interna e autonomia supranacional da União) ou, na administração pública, a faculdade de opção por um sistema operativo informático (Windows, Linux, etc.). Diz-se impropriamente pois, no primeiro caso, trata-se de uma política de expansão ou alargamento e, no segundo caso, da proibição do monopólio.

O conceito emprega-se propriamente para designar um dos elementos estruturais do cooperativismo reformista que consiste na permanente disponibilidade das cooperativas para admitirem novos membros, sem qualquer discriminação à entrada ou à posterior disposição dos bens, actividades e interesses. É também conhecido como princípio da adesão voluntária e livre.

Tal modelo de cooperativa, controlado por uma união internacional de cooperativas e recebido directamente pela nossa constituição (quer dizer que é proibida a constituição de cooperativas que não obedeçam aos 9 princípios que sistematizam aquele modelo) opera, em primeira linha, a separação entre a propriedade dos bens de produção e os cooperadores, que apenas desfrutam deles na medida do seu trabalho ou contribuição, perdendo a qualidade de cooperadores quando deixam de poder contribuir. O princípio da porta aberta, conjugado com os da entreajuda e gestão democrática, opera, em segunda linha, a desconstrução do direito do cooperador à titularidade da posição e dos benefícios que tenha conseguido granjear, obrigado que está a compartilhar com os demais, incluindo os novos membros, os meios de produção e os respectivos ganhos.

Assim o cooperador, que está despojado da propriedade, pode também ser despojado dos direitos que tem vindo a adquirir e, por fim, pode mesmo perder o vínculo à cooperativa. Clama-se que se trata de um direito de ordem superior, que escapa à voracidade capitalista e contribui para a plena realização pessoal dos cooperativistas, os quais, quando não satisfeitos com os ganhos, devem encontrar consolo nas acções fraternas. No entanto, a propriedade dos bens pertence à cooperativa, tomada como pessoa jurídica, que actua no mercado em igualdade de armas com as empresas capitalistas, até que, pelo reiterado sucesso do cooperativismo e constante amplitude do sector, acabará supostamente por dominar todo o mercado e satisfazer o ideal do homem produtor não especulativo.

Apesar da forte propaganda a que foi sujeita, durante mais de um século e do apoio do estado, o cooperativismo não tem passado da rampa de lançamento, enquanto as cooperativas dificilmente superam o envelhecimento dos seus membros. O princípio da porta aberta tem sido contornado de diversos modos: limitação territorial da admissão, especialização, separação entre a qualidade de cooperador e a de trabalhador, este protegido pelas leis de trabalho, pura e simples negligência, etc. As cooperativas que têm perdurado são precisamente as constituídas no Estado Novo, sob controlo do poder político, dedicadas à transformação e comercialização de produtos agrícolas, em especial as vinícolas (Cooperativa de Reguengos, do Redondo, etc.). Aqui o carácter pessoal dos cooperadores é desprezível, interessa sim que possuam vinha na área demarcada, que por si limite o número de membros.

Um dos temas deste blogue, precisamente porque estudamos o estado, será o cooperativismo, nos diversos modelos. Importa apurar como se dá a contradição de as cooperativas de gestão não democrática e que não obedecem ao princípio da porta aberta subsistirem, enquanto as que se abrem aos valores de António Sérgio tendem a afundar-se.

No que releva para esta série de artigos sobre a porta aberta é a tendência do estado para impor um princípio geral de porta fechada, reservando a porta aberta para sectores muito segmentados em que sobrepõe medidas de fiscalização e controlo. Na verdade, quando o estado diz porta aberta quer dizer porta fechada (na publicidade e no spam, fechada à privacidade; na União Europeia, fechada à democratização interna, nas cooperativas, fechada ao enriquecimento pessoal dos cooperadores). Encontramos assim uma linha geral, segura, sustentada do estado contra a cultura que lhe pode fazer frente - tal como indicámos no artigo "a política da porta fechada".

Sectores de porta aberta

Sobre alguns sectores da vida privada, o estado mantém políticas de porta aberta. Na publicidade domiciliária, por correio, distribuição livre, telefone ou e-mail, a regra geral e supletiva é a da porta aberta. O consumidor tem de adoptar medidas activas, previstas na lei, para tentar evitar a intromissão. Ainda assim tais opções podem não ser respeitadas pelos distribuidores, sem que o estado disponha de meios coactivos que actuem em tempo útil. A caixa de correio atulhada com publicidade pode deixar de receber uma notificação importante, a que o estado confere plena eficácia. Será ingenuidade interpretar-se tal fenómeno como consequente da ponderação de interesses dos publicitários face aos particulares. O que releva, pelo contrário, é o jogo da publicidade, movimento global do mercado ( e não em exclusivo das empresas que a promovem), assoberbamento e obnubilação da informação, criação de canais de contacto expedito, subordinação do particular securitário ao controlo do estado.

Neste quadro, impõe-se compreender as motivações dos estados no seu conjunto quando manifestam resistência à adopção de medidas para proibir o spam, os cavalos de Tróia e os sites intrusivos (proibir ou limitar, seriar). Todas as comunicações, pela net, por telefone, estão sujeitas a registo, que pode ser consultado por ordem de um juiz ou por simples vontade de um operador de telecomunicações. Parece ocorrer uma contradição entre uma e outra medida. Mais uma vez se impõe a política da porta fechada na dupla vertente: protege-te, invado-te.

A política da porta fechada

Empregamos aqui o termo política como processo de aculturação conduzido de modo organizado por uma entidade exterior sobre uma comunidade cultural subjacente. Aculturação denota aqui dominação, subordinação, com vista a modificação de uma cultura. Ao resultado de tal política chamamos simplesmente dobra, estrato quebrado sobre si próprio.

Sobre as duas culturas referidas no artigo anterior incide uma acção concertada do estado. A cultura da porta aberta é reprimida numa dupla vertente: fechamento exterior para evitar a invasão externa (furto, devassa, intromissão autoritária); fechamento interior para obstar à desobediência interna (fuga, relacionamento não consentido, devassa). A cada uma destas vertentes corresponde uma sanção, aplicável em caso de violação da regra seguritária da porta fechada. A invasão externa tem por desiderato, as mais das vezes, a impunidade do invasor ou a pena irrisória. A desobediência interna encontra a plena aceitação social, tratando-se de adultos, ou a perda do familiar em fuga, tratando-se de menores. Aquela por meio do relato e difusão pública da visão que o desobediente alimenta sobre os ex-coabitantes, estas por meio da aplicação de medidas de protecção pública.

O estado impõe um especial dever de cuidado, traduzido numa política de porta fechada. As regras anquilosadas do Código Penal (arrombamento, lugar fechado, segredo guardado, privacidade protegida) têm de verificar-se para que o intruso encontre plena punição (nos julgamentos gasta-se mais tempo a apurar se a porta estava aferrolhada e de que modo, se as pessoas estavam tapadas, se os objectos escondidos, do que a apurar a intenção do invasor e o efeito que produziu), correndo-se mesmo o risco da impunidade por falta de encerramento adequado. Por outro lado, as crianças devem estar presas de modo tal que não possam escapulir-se por distracção dos pais, que, num exemplo recente, dormiam (nesta eventualidade, a criança pode ser detida por tempo indeterminado e sujeita a medidas coactivas ordenadas pelos tribunais, podendo mesmo ser condenada à perda da família, do nome e dos laços naturalísticos, com apropriação subsequente por terceiros, sob pretexto da lei de protecção de menores).

Cada indivíduo compreende com facilidade que deve fechar-se, fechar os seus. O estado não o protege, se não adopta medidas de segurança. Porém, a cultura da porta fechada não resiste ao estado. As acções de perseguição, fiscalização e apreensão não têm barreiras privadas. A penhora de bens, a busca domiciliária, a escuta electrónica, a detenção são sempre possíveis e, quando acontecem, são sempre plausíveis. Note-se que, salvo nos casos de espionagem (frequentes em demasia), as restantes medidas dependem de um ordem judicial ou de um pressuposto judicial. A plausibilidade ou adequação à lei é pois ostensiva, ocorrendo uma presunção de legalidade que a eventual constatação de falta de fundamento, ocorrendo no futuro, não pode já eliminar.

O estado modifica e subjuga o comportamento dos cidadãos, levando-os a fechar-se, enquanto abre e amplia os seus poderes de intrusão por via legal. Uma ou outra destas vertentes não será necessária; a imposição de ambas em simultâneo revela um dos aspectos fundamentais da acção do estado: obediência à lei que ele próprio cria e impõe, ou seja, desrespeito pela cultura de base, subordinação ideológica dos indivíduos. Veremos como se processa.

Porta Aberta vs Porta Fechada

Duas culturas: uma, dos grandes espaços planos (mare liberum, desertos, estepes) onde se movimentam comunidades nómadas, semi-nómadas, guerreiras; outra, dos espaços estriados (mare clausum, povoados serranos) onde se alicerçam forças territorializadoras de presores. Esta, pode ser representada pelo castelo medieval; aquela, pelo burgo dos arrabaldes. Ambas coabitam sob o mesmo domínio do estado, essa entidade superior que merece profundo estudo. Ambas se deixam impregnar pelo mecanismo capitalista de distribuição da riqueza e de organização das povoações. E ambas resistem, a seu modo, à inovação. Os muros do castelo estendem-se em círculos sobre o arrabalde, até que, pela grandeza, se tornam desnecessários. O muro do castelo hoje é a linha imaginária que define o território de cada estado ou o limite de cada cidade.

Duas comunidades: uma, de portas e janelas voltadas para a rua, para o quintal, para o horizonte, que dorme de porta aberta e conta com os vizinhos em cada momento; outra, enclausurada, com torres de vigia, pátio privado, ferrolhos. Esta, disputando rivalidades com os vizinhos, desconfiada e às vezes traiçoeira; aquela, comunitarista, defendendo-se em bloco reactivamente. Ambas sujeitas a dobra, pelo duplo laço do estado e da máquina económica.

Duas políticas de repressão do furto: uma, absolutamente intolerante em relação aos atentados ao espaço privado da casa ou aos bens pessoais, infligindo penas de afastamento da comunidade, de degredo, consagrando o respeito pelo alheio como fundamento da vida em comum; outra, punindo os infractores em função do valor do furto, fazendo-os retribuir o prejuízo patrimonial mas consentindo na sua ressocialização. Esta, a política da cultura do presor em relação ao castelo murado do vizinho, pois, quanto a ele próprio, não abdica da vingança privada. Aquela, a política do clã, em que a vingança se confunde com a justiça pública.

Parece curioso constatar-se como o estado reforça o seu poder e se propaga até o interior de cada família, de cada indivíduo, jogando com os valores de cada uma daquelas culturas. Diz à primeira: convive com o que furta, mas protege-te; diz à segunda, protegemos-te, mas abdica da justiça privada. Nas mais ricas vilas turísticas da Europa, a noite cai como no subúrbio pobre da grande cidade. Trancam-se as portas, liga-se a vídeo-vigilância, não se circula na rua, o furto e a violência podem acontecer a qualquer momento. Os agentes dos crimes aguardam que se perca a esperança na sua ressocialização. Os tribunais penais regulam os fluxos da criminalidade em voz passiva.

O Código Penal é a mais forte expressão da política do estado sobre aquelas duas culturas e suas gentes - até inventou o "furto formigueiro". E diz: fecha a porta, protege-te, teme o teu vizinho, desconfia, não circules à noite. A noite, finalmente com fantasmas!

Impõe-se perguntar: que perdes quando temes? Que ganha o estado com o teu temor?

Os clientes do BPP na nova ordem política

Cena que se retém: os clientes do BPP em manifestação junto à sede do banco, empunhando cartazes e brandindo palavras de ordem. Homens da classe média alta que perderam não apenas os créditos elevados que confiaram ao banco, mas que perderam também – e é este o aspecto que interessa reter – o acesso condigno a informações, a instalações, ao diálogo, enfim, a todos os elementos que caracterizam a expectável gestão bancária dos clientes. A cena apresenta condições semelhantes, aliás, à dos trabalhadores de uma empresa em lay-off ilegal.

Crê-se que tal acontecimento anuncia uma nova ordem política e social. Os indivíduos, ainda que em grupo e independentemente da classe social a que pertencem, estão a perder capacidade de influência, perante um poder tecnocrático que actua num plano maquínico, desdobrado por diversos aparelhos (imbricação privado/público, estado desconcentrado (BP, CMVM, governo, tribunais, polícia, comunicação social), que reelabora e reinterpreta as leis tomando-as como fim último da sua própria actuação. Trata-se de uma administrativização da actividade privada e dos interesses dos particulares, que despoja os indivíduos do direito de participação e que consegue mesmo constituir uma entidade credor/cliente como titular de crédito distinta da pessoa concreta, do cidadão. Uma administração anunciada por Kafka no genial “O Castelo”.

Este novo modo de funcionamento da política – tecnocracia autista que se auto-justifica pela utilização propagandística dos meios de comunicação social – não pode ser reconduzido à responsabilidade deste ou daquele partido, deste ou daquele governo, pois detecta-se já em muitos estados democráticos da Europa, na própria União Europeia, e nas mais diversas áreas de actuação (finanças, ensino, protecção de menores, regulação das actividades profissionais, funcionalização de profissões independentes (juízes, jornalistas, deputados), medidas de saúde pública, declaração de guerra, etc.). Nos mais diversos sectores se nota este desprendimento entre indivíduo/cidadão e sujeito de deveres/titular de direitos, com perda de intervenção dos interessados. A resolução dos problemas é tomada numa perspectiva macro, que remete para a política, ou seja, para os órgãos de soberania e para os técnicos que os enformam.

O caso do BPP é paradigmático pois, sendo um banco privado sob intervenção pública, o litígio não pode ser resolvido de modo útil pelos tribunais civis (um dos direitos constitucionais fundamentais (art. 20) está aqui prejudicado) e, não prestando os actuais gestores informações relevantes, os clientes ficam relegados à expectativa da decisão política: o agrimensor de Kafka à espera de resposta da administração do castelo, isto é, o Código de Procedimento Administrativo metido num saco.

Parece então que está ocorrendo uma alteração do modo de funcionamento da máquina do estado.

domingo, 24 de maio de 2009

Fuzeta: das chotas aos bilros

Em história ou sociologia, a investigação deve ter como ponto de partida a identificação dos sinais das culturas, técnicas, etnias e relações intersociais presentes numa dada localidade, bem como a compreensão dos mecanismos de transmissão dos conhecimentos entre grupos e de geração em geração, a hierarquia das funções e posições de poder, as próprias vivências das comunidades. Numa aldeia espera-se encontrar alguma homogeneidade cultural, reduzida divisão do trabalho, dependência de escassas fontes de subsistência. Espera-se crescente complexidade na medida do aumento da dimensão dos povoamentos. Porém, importa ter presente que, sobretudo nas comunidades antigas, a dimensão pode não ser critério suficiente. Num mesmo lugar podem encontrar-se pequenos grupos culturalmente distintos, dominando saberes e técnicas diferentes, e assim partilhando os mesmos espaços de modo não concorrencial.
É (foi) o caso da Fuzeta. Pequena aldeia de pescadores, não merece menção nas fontes históricas senão a partir do século XVIII. Sobre a antiguidade da Fuzeta leia-se o artigo anterior deste blogue “contribuição para o estudo do burguel”. A presença de uma população piscatória é evidente. Desde as corografias do século XIX, repete-se que o lugar evoluiu da ocupação em cabanas para a construção em alvenaria. Todavia, esta visão afigura-se simplificadora.
A Fuzeta tem uma localização privilegiada, num ponto altaneiro junto a uma barra da Ria Formosa. As potencialidades económicas são muito diversificadas. Desde logo as actividades ligadas à agricultura, em especial a produção de frutos secos e de vinho para exportação, contando com escoamento pelo porto de mar, que atingiu o expoente no final do século XIX, mas que é referenciada no foral de Faro. De valia exportadora semelhante, a produção de sal parece antiquíssima, pelos vestígios de contenção dos terrenos da ria, jogando entre a conquista de terras agrícolas e o aproveitamento salineiro. Tiveram forte expressão as actividades recolectoras dos produtos naturais da ria, algas, peixes e mariscos. A pesca local, na ria e na proximidade da costa, justificou o assentamento de pequenos grupos de pescadores. As armações de atum, sujeitas a grandes concessões públicas a grandes proprietários ou, no século XIX, a empresas específicas, arregimentavam grandes grupos de trabalhadores na época das campanhas. Distinta daquelas eram a pesca de alto mar e a actividade de transporte por mar.
Cada actividade empregava diferentes populações, com carácter sazonal. Para a apanha de frutos, de algas, arraial de atum e outras actividades recolectoras eram necessários trabalhadores indiferenciados, especialmente mulheres e crianças. Para as salinas, reservavam-se com especial cuidado os empregos para famílias tradicionalmente ligadas àquela actividade, os marnotos, por receio de que as técnicas de exploração fossem transmitidas a estrangeiros, protegendo-se assim uma das principais riquezas do reino. A pesca de alto mar exige competências que não se coadunam com uma população ligada à pesca ribeirinha. A seca de peixe, produção de peixe fumado ou em conserva, que atingiu o auge com a difusão da “arte nova” da apanha costeira da sardinha exigiam pessoal especializado. Por outro lado, a intensa pirataria, que apenas abrandou a partir de 1830 quando os franceses conquistaram a Argélia, as epidemias recorrentes em especial de cólera (estão registadas as devastações de 1833 e 1855-1856), os sismos, as guerras, sobretudo as invasões francesas, e os grandes fluxos migratórios, para Espanha ou América, fizeram partir ou trouxeram renovadas levas de gentes. Pequenos grupos refugiaram-se também aqui, vindos pelo Mediterrâneo, mantendo as suas tradições, aproveitando-se da natureza aberta, abundante e carente de mão-de-obra.
As políticas de povoamento, de incremento das pescas e da actividade marítima sustentaram concessões para salinas, armações de atum, mas também de companhias de pesca e de conserva. Nesse âmbito, diversas populações piscatórias foram aliciadas a instalar-se na Fuzeta, vindas de zonas pesqueiras da costa Norte. Eram pescadores que dominavam as artes de velejar e das redes, formando companhas organizadas. O conjunto daquelas actividades era igualmente controlado pelos poderes públicos. Os pescadores estavam sujeitos ao “compromisso marítimo”.
Não é possível seguir a evolução destas populações, senão como se referiu desde o século XVIII. Antes da fundação da paróquia, um simples lugar não merecia referência nas fontes e muito menos mereciam relevo as pobres gentes locais. No século XX, encontramos distintos grupos populacionais. Os pescadores das companhas de alto mar, dos caíques e das traineiras, que velejavam de Larache a Lisboa e pescavam bacalhau na Terra Nova, formavam o núcleo principal, habitando nas casas de açoteia do núcleo urbano. Os pescadores pobres, que moravam nas zonas ribeirinhas ou em cabanas no areal ou na ilha, parecem distintos daqueloutros, empregando-se na pesca local e usando artes arcaicas. Os proprietários rurais e, nas franjas da povoação, camponeses sem terra formavam um grupo pouco numeroso, mas com expressão enquanto empregadores sazonais. A população ligada aos poderes públicos, aos serviços ou com bens de raiz formavam o topo da hierarquia da Fuzeta. Estes grupos distinguiam-se pelo sotaque, pelos modos de vestir e de conviver e tinham, todos eles, a sua própria estratificação em função dos rendimentos. Sofriam da segregação social, dos terrestres sobre os marítimos e camponeses, dos marítimos das traineiras sobre os das artes arcaicas. Destes sobre os meramente recolectores.

Para a História da Repressão em Portugal

Antigamente atribuíam-se aos mouros as ruínas que perduravam. Sobretudo a partir do século XVIII, buscou-se uma origem romana ou lusitana para as cidades e vilas mais importantes. Naqueles povoados em que não se descortinava arqueologia de monta, a história bastava-se com uma explicação com base em factos recentes, uma carta senhorial ou real, a prosperidade pelo trabalho, um feito heróico, etc. Sabe-se hoje que o território foi ocupado desde tempos imemoriais de modos muito mais complexos. As migrações foram mais frequentes e em maior escala do que se supunha. Portugal foi formado desse modo, desde as cruzadas e o direito de conquista dos vencedores, e cresceu com gentes de todo o mundo, por fluxos vindos da Europa e do mediterrâneo, depois da Ásia, África e América.

O discurso da história dificilmente atende aos diversos povos de distintas nações e culturas que coabitaram nos mesmos espaços, submetidos a um grupo dominante e a uma hierarquia rígida. Este erro nasce desde logo da falsa representação de 3 classes sociais nas sociedades anteriores ao liberalismo: nobreza, clero e povo. O grupo que pode merecer algum tratamento homogéneo é o da nobreza, embora ainda assim deva ser tratado distintamente pelo seu poder económico, influência política e ascendência social. O clero vastíssimo e hierarquizado do antigo regime, integrando desde membros da nobreza aos excluídos e até aos estrangeiros apenas pode ser considerado uma classe pelos privilégios específicos que recebia do poder. Em vez de clero, deve dizer-se igreja, enquanto instituição de substrato pessoal e carácter supranacional. Já a noção de povo não pode ser tomada no sentido actual. Importa destrinçar entre a burguesia das cidades, os proprietários rurais e a massa de população desprovida de capacidade económica e política. E daqueles, no seu conjunto, é necessário distinguir os grupos sociais minoritários que não eram reconhecidos como iguais, os descendentes dos muçulmanos, dos judeus, dos ciganos, dos estrangeiros de diversas proveniências, de ricos comerciantes a escravos forros. Em relação aos judeus, preservou-se a expressão “gente da nação”, muito usada após a restauração da independência. Importa porém reconhecer que a mesma designação foi empregue para designar o conjunto dos ciganos ou dos muçulmanos, pelo menos até o século XVI.

A monarquia absoluta que começa a construir-se no final da idade média vai deixando de tolerar a autonomia dos grupos minoritários, mas também as cidades se vão tornando unanimistas, sobrepondo os valores de classe à autonomia cultural ou religiosa. Após a expulsão dos judeus e muçulmanos no reinado de D. Manuel I, com a conversão forçada, a repressão sistemática, brutal e prolongada ao longo de séculos daquelas culturas, mas também com a perseguição generalizada de todas as formas de manifestação cultural desconforme com a ortodoxia dominante, sustentou-se uma ideologia de conformidade de todo o povo a um único padrão social e étnico, por natureza submetido ao poder real. A ideia de nação foi progressivamente reservada para nomear todos os súbditos, isto é, todos os naturais do reino. Portugueses, lusitanos, ou franceses, francos. O fenómeno ocorre em todos os estados europeus. Salvo raras excepções, os judeus, os ciganos, os africanos, os que professavam credos não oficiais e muitos dos nacionais de outros estados tiveram no entanto tratamento desigual e foram alvo de medidas repressivas, por vezes drásticas.

A repressão exerce-se de modos distintos sobre a mesma minoria, em função da condição social, influência política ou permanência dos valores de grupo. Há uma dupla marginalização que afecta os mais pobres. Mesmo os cristãos descendentes de naturais do reino não estavam isentos de escapar à escravidão das galés ou dos trabalhos forçados se caíssem na miséria. Nas épocas de fome ou de doença, tão frequentes elas foram, formavam-se bandos de indigentes verdadeiramente sem eira nem beira. Não podiam entrar nas vilas e eram perseguidos nos campos. Uma espécie de párias na sua própria nação. Por diversos motivos, haviam perdido a qualidade de moradores, essencial para serem reconhecidos como vizinhos nas povoações da naturalidade, ou derivavam de escravos forros, sub-minorias empobrecidas, estrangeiros fugidos a perseguições, etc.

Enquanto os vizinhos se organizavam localmente, dificultando o acesso dos estranhos, o estado foi tomando políticas de controlo da vagabundagem. O arroteamento de terras incultas, em especial entre o Sado e o Mira, empregou gerações de pobres. A colonização de terras africanas ou do Brasil levou milhares de camponeses, de pequenos delinquentes, de párias. Foi mantida uma polícia de costumes para controlo das populações. Desses plúrimos fenómenos migratórios nasceu um pessoal de controlo, precariamente ligado ao aparelho do estado, com a incumbência de submeter as gentes desenquadradas ou depauperadas aos interesses dominantes. Podemos designá-los como ralé: empregados como mera força repressiva ocasional, trauliteiros, sem distinção de classe ou de etnia, muitas vezes mal queridos, tinham como único valor a disponibilidade para uma função que os homens de bem não aceitavam.

É bem discutível a existência de uma política racista. Provavelmente, a discriminação assentava apenas na condição miserável, na falta de vinculação a um lugar, na falta de educação elevada ou na resistência grupal. Não podemos por isso identificá-los meramente como judeus, mouros, negros, ciganos, indianos, turcos, etc. Em todas estas comunidades se encontravam elementos com influência social, granjeando poder económico. E de todas elas se reconhecem gentes pobres, sem direito à expressão cultural e sem assentamento nas vilas e cidades. Não espanta que escravos forros tivessem sido protegidos por alguma nobreza, que tivessem recebido doações e heranças, enricando, e em duas ou três gerações entrado pelo casamento na classe dominante. Goeses ligados ao comércio ou judeus ricos conseguiram também a nobilitação ou altas posições na sociedade. Até algumas famílias da etnia cigana atingiram tal patamar. A sociedade portuguesa é feita da mistura de todas as gentes, vindas de territórios tão díspares como a actual Ucrânia, a Grécia, a Índia ou a América. Ingleses, italianos, galegos, argelinos, sírios, enfim, uma inumerável prole mundial deu corpo à população portuguesa. Haverá ainda famílias de raiz lusitana, anteriores à invasão dos godos? Cremos que não. A miscigenação atingiu todas as camadas sociais, da alta nobreza ao povo da aldeia mais recôndita. Marranos nas Beiras e Trás-os-Montes, galegos no Alentejo e toda a raça de gentes nos portos de mar e cidades do litoral.

Interessa porém anotar três aspectos distintos que confluem para uma ideologia dominante. A constituição de um discurso da raça pela burguesia do século XIX, que teve a mais alta expressão na luta republicana contra a monarquia, onde a mescla de comerciantes e agricultores enriquecidos assentou alicerces para lançar os seus filhos na conquista do aparelho de estado. A exclusão social dos pobres de todas as etnias e até das antigas famílias do reino, relegados para os confins do território, etiquetados por gerações como gente inferior. A crescente formação de uma ralé de perseguidores e repressores, que teve o auge na criação da GNR em 1910 e que continuou pela constituição de corpos de eliminação de adversários políticos até o Estado Novo. Aqueles três aspectos representam um mesmo movimento de formação do estado contemporâneo.A história actual ainda se basta com a procura de acções repressivas do fascismo português. Talvez porque é feita pela geração de letrados que descende daquela burguesia de alpaca, legitimada pelo bacharelato. Repetem-se os erros que contaminaram Raul Brandão e outros eruditos quando procuraram o algarvio ou o alentejano, como um tipo social uniforme. Não podemos continuar à procura do povo, quando sentimos nas veias os contrastes das nossas próprias vivências. A repressão social não se identifica com os regimes políticos, sucede-lhes. A massa indistinta de homens e mulheres sem poiso nem sustento, obrigados a buscar alimento pela escravização no trabalho agrícola, das ceifas no Alentejo à alfarroba no Algarve, das galés ao exército, merecem uma história. A história de Portugal.

Empregamos o termo repressão para traduzir o efeito directo, violento, que atingia os desfavorecidos. Preferimo-lo em vez de exclusão, pois na verdade o estado não renunciou à sua influência sobre aquelas franjas minoritárias, nem prescindiu da sua força de trabalho ou capacidade militar. Não houve medidas de expulsão em massa, nem a formação de guetos (ghetto, palavra italiana que corresponde à judiaria medieval portuguesa), antes políticas de integração económica e policial). Também preferimos dizer repressão em vez de discriminação, pois esta palavra não respeita as pretensões de auto-diferenciação das próprias comunidades minoritárias, que seguiam credos religiosos, costumes e modos de vida distintos dos da maioria. Uma sociedade não repressiva deve tolerar os grupos que lhe são diferentes e que, por isso, noutra acepção do termo, se discriminam dela. Por último, prescindimos do adjectivo social para caracterizar a acção repressiva, além de redundante (por se tratarem de comunidades ou grupos alargados), retira carácter político às pretensões de autonomia dos grupos minoritários, quando ela é, em certos casos, flagrante. As opções comunitárias dos judeus, dos ciganos ou da comunidade de pescadores de Monte Gordo face à política de realojamento do Marquês de Pombal têm manifesta natureza política e social. Quando se diz que foram sujeitos a repressão, quer-se dizer que não puderam defender as suas pretensões dentro da ordem social vigente, nem foram protegidos pelo poder. Os qualificativos social ou político nada de útil acrescentam. Não há verdadeira repressão política sem a consequente repressão social e apenas a reconhecemos se previamente admitirmos a autonomia dos grupos minoritários.