domingo, 24 de maio de 2009

Fuzeta: das chotas aos bilros

Em história ou sociologia, a investigação deve ter como ponto de partida a identificação dos sinais das culturas, técnicas, etnias e relações intersociais presentes numa dada localidade, bem como a compreensão dos mecanismos de transmissão dos conhecimentos entre grupos e de geração em geração, a hierarquia das funções e posições de poder, as próprias vivências das comunidades. Numa aldeia espera-se encontrar alguma homogeneidade cultural, reduzida divisão do trabalho, dependência de escassas fontes de subsistência. Espera-se crescente complexidade na medida do aumento da dimensão dos povoamentos. Porém, importa ter presente que, sobretudo nas comunidades antigas, a dimensão pode não ser critério suficiente. Num mesmo lugar podem encontrar-se pequenos grupos culturalmente distintos, dominando saberes e técnicas diferentes, e assim partilhando os mesmos espaços de modo não concorrencial.
É (foi) o caso da Fuzeta. Pequena aldeia de pescadores, não merece menção nas fontes históricas senão a partir do século XVIII. Sobre a antiguidade da Fuzeta leia-se o artigo anterior deste blogue “contribuição para o estudo do burguel”. A presença de uma população piscatória é evidente. Desde as corografias do século XIX, repete-se que o lugar evoluiu da ocupação em cabanas para a construção em alvenaria. Todavia, esta visão afigura-se simplificadora.
A Fuzeta tem uma localização privilegiada, num ponto altaneiro junto a uma barra da Ria Formosa. As potencialidades económicas são muito diversificadas. Desde logo as actividades ligadas à agricultura, em especial a produção de frutos secos e de vinho para exportação, contando com escoamento pelo porto de mar, que atingiu o expoente no final do século XIX, mas que é referenciada no foral de Faro. De valia exportadora semelhante, a produção de sal parece antiquíssima, pelos vestígios de contenção dos terrenos da ria, jogando entre a conquista de terras agrícolas e o aproveitamento salineiro. Tiveram forte expressão as actividades recolectoras dos produtos naturais da ria, algas, peixes e mariscos. A pesca local, na ria e na proximidade da costa, justificou o assentamento de pequenos grupos de pescadores. As armações de atum, sujeitas a grandes concessões públicas a grandes proprietários ou, no século XIX, a empresas específicas, arregimentavam grandes grupos de trabalhadores na época das campanhas. Distinta daquelas eram a pesca de alto mar e a actividade de transporte por mar.
Cada actividade empregava diferentes populações, com carácter sazonal. Para a apanha de frutos, de algas, arraial de atum e outras actividades recolectoras eram necessários trabalhadores indiferenciados, especialmente mulheres e crianças. Para as salinas, reservavam-se com especial cuidado os empregos para famílias tradicionalmente ligadas àquela actividade, os marnotos, por receio de que as técnicas de exploração fossem transmitidas a estrangeiros, protegendo-se assim uma das principais riquezas do reino. A pesca de alto mar exige competências que não se coadunam com uma população ligada à pesca ribeirinha. A seca de peixe, produção de peixe fumado ou em conserva, que atingiu o auge com a difusão da “arte nova” da apanha costeira da sardinha exigiam pessoal especializado. Por outro lado, a intensa pirataria, que apenas abrandou a partir de 1830 quando os franceses conquistaram a Argélia, as epidemias recorrentes em especial de cólera (estão registadas as devastações de 1833 e 1855-1856), os sismos, as guerras, sobretudo as invasões francesas, e os grandes fluxos migratórios, para Espanha ou América, fizeram partir ou trouxeram renovadas levas de gentes. Pequenos grupos refugiaram-se também aqui, vindos pelo Mediterrâneo, mantendo as suas tradições, aproveitando-se da natureza aberta, abundante e carente de mão-de-obra.
As políticas de povoamento, de incremento das pescas e da actividade marítima sustentaram concessões para salinas, armações de atum, mas também de companhias de pesca e de conserva. Nesse âmbito, diversas populações piscatórias foram aliciadas a instalar-se na Fuzeta, vindas de zonas pesqueiras da costa Norte. Eram pescadores que dominavam as artes de velejar e das redes, formando companhas organizadas. O conjunto daquelas actividades era igualmente controlado pelos poderes públicos. Os pescadores estavam sujeitos ao “compromisso marítimo”.
Não é possível seguir a evolução destas populações, senão como se referiu desde o século XVIII. Antes da fundação da paróquia, um simples lugar não merecia referência nas fontes e muito menos mereciam relevo as pobres gentes locais. No século XX, encontramos distintos grupos populacionais. Os pescadores das companhas de alto mar, dos caíques e das traineiras, que velejavam de Larache a Lisboa e pescavam bacalhau na Terra Nova, formavam o núcleo principal, habitando nas casas de açoteia do núcleo urbano. Os pescadores pobres, que moravam nas zonas ribeirinhas ou em cabanas no areal ou na ilha, parecem distintos daqueloutros, empregando-se na pesca local e usando artes arcaicas. Os proprietários rurais e, nas franjas da povoação, camponeses sem terra formavam um grupo pouco numeroso, mas com expressão enquanto empregadores sazonais. A população ligada aos poderes públicos, aos serviços ou com bens de raiz formavam o topo da hierarquia da Fuzeta. Estes grupos distinguiam-se pelo sotaque, pelos modos de vestir e de conviver e tinham, todos eles, a sua própria estratificação em função dos rendimentos. Sofriam da segregação social, dos terrestres sobre os marítimos e camponeses, dos marítimos das traineiras sobre os das artes arcaicas. Destes sobre os meramente recolectores.

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