domingo, 17 de maio de 2009

Contribuição para o estudo do Burguel






O termo burguel surge sob diferentes formas (burgel, bruguel, berguel) na tradição popular do sotavento algarvio, com duplo sentido: faz referência a um sítio no interior de povoações; e reporta gente de baixa condição social. É assim em S. Brás de Alportel, Luz de Tavira e Fuzeta. Ocorre também, como topónimo, em pequenas localidades portuárias da Catalunha. Burgel foi um povoado de Espanha, hoje mera ruína. Todavia, o significado e origem do termo não parecem suficientemente explicados.


O Elucidário de Sousa Viterbo anota “burgel, burgez e burguez” como “o que mora no burgo” e “burgo” como “ajuntamento de casas nas raias ou fronteiras onde residiam efectivas as guardas militares romanas”. No “Dicionário Portátil”, Viterbo define burgo como pequeno arrabalde de uma povoação maior". Todavia, tão denunciados estão os eventuais erros do autor, constituem tais anotações ponto de partida pouco seguro. Leite de Vasconcelos aceita a forma burgel como sinónimo de burguês e admite que burgés e burguês designem de igual modo o morador do burgo, embora por raízes diferentes.


Assume particular interesse constatar que o termo burguel persistiu na tradição oral das gentes dos lugares, sem que tivesse merecido a atenção dos cronistas ou dos estudiosos. As vicissitudes da história não foram bastantes para deixar cair a palavra no esquecimento e, não obstante, não aparece registada nas corografias, nas monografias, nem na maioria dos ensaios etnográficos.


Recentemente, o município de São Brás do Alportel atribuiu a designação de “Pátio do Burguel” a um pequeno recanto da rua Aníbal Rosa da Silva, que sai do centro histórico da vila no sentido Nascente. Porém, esta via foi conhecida antigamente, segundo Estanco Louro, como Rua do Burguel. Nas suas imediações nada parece merecer relevo. O centro histórico sim. Considerando que o centro foi atravessado pela calçada romana e que conta com vários edifícios históricos, suspeita-se que a palavra burguel se refira precisamente ao casario antigo ou a algum aquartelamento. Nesta hipótese, como em tantas outras localidades e em tantos casos, a Rua do Burguel deve significar “rua que vai para o burguel”, sendo burguel um pequeno núcleo antigo. Aqui os moradores da Rua do Burguel foram vistos como gente pobre, sem maneiras, e a própria rua como zona suja, contrastando com o centro histórico. Parece, no entanto, que essa mancha cobria também uma parte do centro histórico.


A Luz de Tavira denomina rua do Burguel a um atalho que liga a EN 125 a algumas hortas. Sabe-se que a igreja manuelina foi construída no que era então um vasto rossio. A povoação deveria aproximar-se mais do centro da aldeia, que já deveria alongar-se pela estrada. Suspeita-se que o burguel coincide com um quintal e ruína murados que ladeiam aquela rua pelo Poente. O local merece alguma arqueologia. Não se dispõem de dados que permitam identificar o burguel com as gentes locais.


Na Fuzeta, burguel não designa uma via ou praça, mas uma zona da povoação, precisamente a mais antiga. Não entrou na toponímia moderna e conserva forte presença na cultura popular. Luís Fraga da Silva assinala que a Fuzeta foi um porto de mar da época romana. Os vestígios desse porto podem adivinhar-se mais das escassas imagens que se conservam do que da actual vila, tão martirizada que está pela construção irregrada. Todavia, é ainda possível propor a classificação e mesmo a aquisição de alguns edifícios (antiga escola primária e casas anexas no largo junto ao quartel da guarda fiscal; 2 casas da cerca que ainda mantêm a traça original (ver fotos)), bem como das calçadas e materiais públicos em pedra. Justifica-se a prospecção arqueológica. Tratava-se de um porto de mar, não de mera pescaria, tinha um forte no ponto cimeiro e aquartelamentos a Poente e a Nascente, entrando as embarcações num recinto protegido. No livro das fortalezas do Algarve, conserva-se um desenho que se pode sobrepor em planta às estruturas ainda conhecidas.


Constata-se que é totalmente errada a ideia de que a Fuzeta foi um primitivo lugar de cabanas. A povoação cresceu em esquadria do porto para Norte, em direcção à igreja reedificada no século XIX, e para Nascente, conquistando terreno à ria. As cabanas, na ilha ou nos arrabaldes, eram exclusivas dos não moradores, aqueles pescadores pobres que, vivendo embora nas imediações, não eram reconhecidos como vizinhos. Alguns foram realojados no Bairro dos Pescadores, construído no rossio Poente. No burguel e na proximidade, viviam gentes discriminadas dos restantes moradores da povoação, tal como em São Brás de Alportel. Os do burguel são “burgueleiros”. O modo como se dá tal generalização ou ocupação do local carece de estudo, como também se impõe a pesquisa sobre o urbanismo, a evolução da malha urbana, notoriamente sujeita a planeamento.


Deve notar-se que cada época transporta um esquema ideológico. Desde o final do século XIX, pretende-se forçar uma ideia de povo homogéneo, autóctone, com as suas bravuras e idiossincracias locais. Mesmo sem querer, grandes pensadores, como o geógrafo e erudito Orlando Ribeiro, foram levados a observar uma única originalidade em cada lugar. Por exemplo, as açoteias de Olhão e Fuzeta. Note-se porém que, ao contrário do que Orlando Ribeiro pôde apurar, o urbanismo de Olhão antigo é diferente do da Fuzeta, que não conta com vielas tortuosas, nem com duplo mirante nas açoteias, aqui cobertas parcialmente por pequenos telhados de quatro águas . As casas retratadas nas fotos acima são únicas e mereceram destaque na história da arquitectura portuguesa.

Está hoje documentado que Olhão foi um porto da época mourisca e que conservou a população muçulmana até à expulsão. Porventura uma parte dos habitantes de Olhão e Fuzeta foram descendentes, já mestiçados, desses longínquos povoadores. Em São Brás do Alportel, ocorreu idêntico processo. Estará o termo burguel relacionado com a antiga ocupação do burgo por antigas populações moçárabes?



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