I
Não que precise deles ou que releve de algum modo o apoio moral, cumpre-se apenas um dever de cidadania em defesa dos primados básicos da convivência em sociedade. Três vivas ao emérito acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que mandou fazer a elementar justiça a uma criança sujeita ao perigo de ocupação privada (ocupação no sentido contido nos arts 1318 e seguintes do Código Civil). Para saber do direito que se aplica ao caso da menor Alexandra, que foi reconduzida à família e à Rússia natal, aconselha-se a leitura do esmerado e erudito acórdão, na versão original e não nos apartes inventivos que um jornalismo de ralé tem vindo a propagar (http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3f15b684ad7384368025744a004f8834?OpenDocument&Highlight=0,864%2F08-2). Toda a linguagem do acórdão é técnica, apuradamente jurídica e incisiva. Só quem não abriu o dicionário pode atacar o acórdão pelo emprego do adjectivo “serôdia” que qualifica a falsa maternidade da ama. E ama, perdoe-me o ilustre juiz que comenta sentenças na televisão, é o termo técnico do caso, não família de acolhimento, pois esta apenas contextualiza aquela.
Como sabem todos aqueles que já tomaram o gosto ou o fel da crueldade do estado e da sociedade mundana, nada mais temos que o sangue que nos corre nas veias. Tudo o mais pode ser despojado, ainda assim continuamos a ser. Retirado porém o vínculo paterno/materno, perdida a nacionalidade, imposto artificialmente um novo nome e um novo passado, feito um corte radical com aqueles que são nossos, estamos então no mais profundo abandono. As primeiras vítimas desta desqualificação, desterritorialização e amordaçamento espiritual são os pobres.
Alguns interesses estranhíssimos pretendem lançar sobre os pobres uma nova incapacidade civil: a do direito à família, à filiação, à convivência fraternal. A primeira vítima é a criança de tenra idade, único bem de valor que os pobres podem trazer à sociedade de hoje; seguem-se-lhe os pais, os avós, os irmãos, que perdem o elo consanguíneo. Num mundo em que tudo está submetido à lei da oferta e procura, esgatanham-se alguns pela apropriação dos filhos dos indigentes. Todavia, um dever fundamental do estado de bem-estar social é o de proteger os desvalidos. Este dever claudica quando uma criança é retirada à sua família e entregue a uma empresa de criação de crianças (algumas privadas, como o Refúgio Aboim Ascensão), com os seus interesses mesquinhos de holofote e de empregabilidade sustentada pela indigência a que visam acudir. Claudica também quando uma pessoa se arvora titular de direitos de paternidade sobre uma criança, contra a vontade dos seus pais naturais e sem prévia sentença devidamente fundamentada emitida pelo estado (porque será essa pessoa melhor adoptante que qualquer outro? E quantas há disponíveis para acudir à menor? Centenas!).
Lembram-se da sentença de Salomão? Lembram-se da última notícia sobre um processo judicial em que se discutia a propriedade de uma gato abandonado que havia sido tomado por uma “família de acolhimento”? Lembram-se do último crime de homicídio violento cometido por um jovem sobre os pais adoptivos quando descobriu, por fim, que havia sido raptado da família natural? Lembram-se da última vez que mudaram de opinião? Façam um favor ao direito e aos valores fundamentais da ética: não dêem opinião fácil.
Confrontado com a corrente contra-informativa que de há alguns anos manobra a opinião pública sobre o direito de família e a protecção de menores, sujeito às consequências maléficas de um grupo de pressão organizado e poderoso, que chega aos mais altos poderes do estado, um homem teve a coragem de aplicar o direito, todo o direito internacional (leiam a convenção dos direitos da criança). E fê-lo por dever de ofício, por absoluta abnegação, por respeito aos seus poderes de independência. Este juiz merece três vivas. Salvé Dr. Gama Barros!
Leitor: antes de invocares o amor e a compaixão, responde: o que é o ressentimento? Antes de tomares partido no caso de uma criança, interroga-te: haverá sombras que desconheço?
II
Um dos maiores fracassos do nosso tempo, da tecnologia e da abundância, é o da perpetuação e até o agravamento da dicotomia entre ricos e pobres. Alguns vivem na indigência; outros, alienados pelo niilismo, tendo esgravatado lucros nas travessas, tentam projectar essa baba de micro-riquismo sobre uma criança alheia, que crêem moldável por meio de caprichos. O liberalismo não se limitou a extinguir a ignominiosa “roda”, pressupôs também uma sociedade tecnicizada em que todos os cidadãos seriam tratados por igual e em que o Estado assumia a responsabilidade da protecção do nascimento no seio da família. O moderno impulso do instituto jurídico da adopção resulta do falhanço daquele ideal de sociedade e do seu último assomo, o Estado de bem-estar social. Não vale a pena escamotear-se a triste realidade das clientelas e das influências que cirandam a política e os mecanismos da adopção, com o seu hierarquizado cortejo de dignitários morais e as suas veladas portas de sésamo. O que importa compreender é que forças se movem com tais interesses, que crenças se deixam moldar e por que têm vindo a obter tão forte adesão as campanhas de propaganda em seu favor.
Ressurge um evidente atavismo entre as massas populares, que repristina a roda e a política de adopção e sustento dos expostos (assim se designavam as crianças abandonadas até à I República). A criança abandonada passava de imediato à disposição dos poderes públicos e, se identificada, a mãe era punida e perdia a maternidade. Continua…
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Três vivas ao Dr. Gama Barros!
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