quarta-feira, 20 de maio de 2009

Contra a Literatura

I
Não basta o dom da escrita. É necessário um ego altíssimo, o constante exacerbar do egoísmo, um desejo incontido de fama, uma vaidade cruel, para se fazer romancista. Adaptar a língua aos requisitos da tradução, apanágio dos grandes, fazer perder a cacofonia do português, censurar a rima, contar as repetições, tudo disfarçado pela tristeza, sim pela tristeza, essa força que tudo engole e tudo encobre, que se mascara de arte, de literatura para mulheres, de cultura (cultura, de onde vem esta palavra senão de arado, de transformar a plenitude da terra, de fecundar, semear, de colher, ou seja, de empregar, empenhar, encomendar, entretecer a mulher, como desígnio do labor humano: não se estranhe pois o romance, que nada mais é que a sublimação raivosa da perda radical do direito à cultura, enquanto fecundação e emprego). Essa literatura que retira a legitimidade, que se toma por instituto, autoridade, origem e devir da língua e do pensamento, recheada de palavras aprendidas à pressa, corrigidas ao computador, reclamando autenticidade pela exposição de personagens-tipo (que é isso senão horror das gentes, das forças, senão o destroçar da alma que labuta à procura da verdade, no livro), gente desorientada, mole, só, pobres sem abrigo possível, penando culpas imaginárias, mal resolvidas. Retirar daí o ensinamento, falso erro, porco desígnio, para os ociosos – ele próprio, escritor, ocioso, aburrido, consternado por não dispor dos mecanismos que lhe permitam escrever ainda mais depressa, para que dos extensos volumes carregados de palavras se constate ainda mais vazio, ainda mais angústia, ainda mais reversão. Essa literatura mata. Mata a língua – veja-se como o alemão se fecha à tradução fácil e sobrevive como língua erudita e como o francês ou o castelhano se perdem por entre a massificação escolar, e os seus filósofos ficam impedidos de fundar de novo, de verdadeiramente instituir a criação. Resta-lhes o método que, como notou o grande Deleuze, é apenas estilo. Aí de novo o reino desses pequenos escritores de mulheres, de cultura infecunda, de repetição, extensão e enojamento. A literatura não vê a força. Mas, quando a vê, não pode desvelá-la. Vive da aparência, sob a forma de racionalidade e senso comum. Não ensina, não transforma e não progride. Repete e extende. O tipo humano que põe em acção está modelado por um estilo de escrita que o legitima. A historicidade congela-a. Apenas pode contar o passado e o método possível é o presente. É o leitor infértil. Por isso o escritor não precisa de saber do sussurro, do silêncio, da penumbra, apenas das palavras; palavras que foram modeladas, instituídas, grafadas pela escrita anterior. A mesma artificialidade, a mesma redundância. Sussurro? Que podemos hoje saber do verdadeiro sussurro, e da verdade? Apenas repetição e extensão, nunca profundidade e autenticidade. Por isso são tão grandes os romances e tão pequenos os contos. E essa modalidade porca que são as crónicas, essa comercialice da tristeza e da desgraça e da anotação antropóide. A verdadeira literatura está escondida desses vigilantes da autoridade historicista. Digo verdadeira, com temor. A palavra está corrompida. Não é possível já conhecer o sentido, a conotação da palavra verdade. Daí a deriva dos espíritos.
II
A escrita vem da verve e do desejo de afirmação pessoal. O grande escritor tiraniza – como ensinou Nietzsche – ou deseja tiranizar. Exerce uma autoridade, isto é, regula e dispõe de um sistema moral. Diz a virtude e o modo como deve ser perseguida, prosseguida. Por isso castiga algumas personagens pelos seus desvios à razão e ao bem. Modela os destinos, como que ditando mandamentos. Manipula contradições e impulsos de carácter. Expõe a dialéctica, essa arte do ardil, dos vários interesses. E tem um propósito óbvio: exemplificar, padronizar, tipificar, educar, “prestar uma contribuição”. A troca. Para lá do livro (a matéria egoísta, comercial e pragmática), a contribuição moral, a refundação ética e a sensibilização pública dos valores superiores são a dádiva do escritor ao mundo e à humanidade. Por partilhar e difundir altruisticamente a virtude, coloca-se na posição de ofertante, de nobre, de granjeador de distinção e merecedor da troca social, como Levy-Strauss o disse em relação à dádiva na sociedade primitiva. A fama do escritor corresponde ao reconhecimento público de que a sociedade quer retribuir-lhe a abnegação da entrega. Evidentemente, o escritor quer muito mais do que alguma vez receberá. A sua autoridade não sai do livro para os palácios, para o trono, para o céu. A troca é mundana. Almas breves enfeitiçadas, de olhos fitos no balouçar da escrita, prontas a atirar-se no precipício do coração. Nada que possa contentar o escritor mais do que uma noite. Por isso é velho. E escreve horas a fio, como um proletário imigrante, labuta na grande obra. Já não pertence à sua terra. Pode vê-la de fora, num carrossel. Continua a obra derradeira de retirar aos outros o dom da língua. Visa apropriar-se dos modos de dizer e de sentir, instituir novas regras, que são apenas referência à sua obra: “A língua sou eu e os meus antepassados”. Escrevem em catadupa. Mas é preciso um enredo que cative. Esse o verdadeiro óbice e a verdadeira charneira da literatura, como braços de um rio.

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