sexta-feira, 29 de maio de 2009

Fuzeta: das chotas aos bilros

Em história ou sociologia, a investigação deve ter como ponto de partida a identificação dos sinais das culturas, técnicas, etnias e relações intersociais presentes numa dada localidade, bem como a compreensão dos mecanismos de transmissão dos conhecimentos entre grupos e de geração em geração, a hierarquia das funções e posições de poder, as próprias vivências das comunidades. Numa aldeia espera-se encontrar alguma homogeneidade cultural, reduzida divisão do trabalho, dependência de escassas fontes de subsistência. Espera-se crescente complexidade na medida do aumento da dimensão dos povoamentos. Porém, importa ter presente que, sobretudo nas comunidades antigas, a dimensão pode não ser critério bastante. Num mesmo lugar podem encontrar-se pequenos grupos culturalmente distintos, dominando saberes e técnicas diferentes, e assim partilhando os mesmos espaços de modo não concorrencial.

É (foi) o caso da Fuzeta. Pequena aldeia de pescadores, não merece menção nas fontes históricas senão a partir do século XVIII. Sobre a antiguidade da Fuzeta leia-se o artigo anterior deste blogue “contribuição para o estudo do burguel”. A presença de uma população piscatória é evidente. Desde as corografias do século XIX, repete-se que o lugar evoluiu da ocupação em cabanas para a construção em alvenaria. Todavia, esta visão afigura-se simplificadora.

A Fuzeta tem uma localização privilegiada sobre um maciço calcáreo altaneiro frente a uma barra da Ria Formosa, entretanto deslocada. As potencialidades económicas são muito diversificadas. Desde logo as actividades ligadas à agricultura, em especial a produção de frutos secos e de vinho para exportação, contando com escoamento pelo porto de mar, que atingiu o expoente no final do século XIX, mas que é referenciada (figueiral) no foral de Faro. De valia exportadora semelhante, a produção de sal parece antiquíssima, pelos vestígios de contenção dos terrenos da ria, jogando entre a conquista de terras agrícolas e o aproveitamento salineiro. Tiveram forte expressão as actividades recolectoras dos produtos naturais da ria, algas, peixes e mariscos. A pesca local, na ria e na proximidade da costa, justificou o assentamento de pequenos grupos de pescadores. As armações de atum, dependentes de grandes concessões públicas a grandes proprietários ou, no século XIX, a empresas específicas, arregimentavam grandes grupos de trabalhadores na época das campanhas. Distinta daquelas eram a pesca de alto mar e a actividade de transporte marítimo.

Cada actividade empregava diferentes populações, com carácter sazonal. Para a apanha de frutos, de algas, arraial de atum e outras actividades recolectoras eram necessários trabalhadores indiferenciados, especialmente mulheres e crianças. Para as salinas, reservavam-se os empregos com especial cuidado para famílias tradicionalmente ligadas àquela actividade, os marnotos, por receio de que as técnicas de exploração fossem transmitidas a estrangeiros, protegendo-se assim uma das principais riquezas do reino. A pesca de alto mar exige competências que não se coadunam com uma população ligada à pesca ribeirinha. A seca de peixe, produção de peixe fumado ou em conserva, que atingiu o auge com a difusão da “arte nova” de apanha costeira da sardinha exigiam pessoal especializado. Por outro lado, a intensa pirataria, que apenas abrandou a partir de 1830 quando os franceses conquistaram a Argélia, as epidemias recorrentes, em especial de cólera (estão registadas as devastações de 1833 e 1855-1856, mas a cólera reincidiu até meados do século XX), os sismos, as guerras, sobretudo as invasões francesas, e os grandes fluxos migratórios, para Espanha ou América, fizeram partir ou trouxeram renovadas levas de gentes. Pequenos grupos refugiaram-se também aqui, vindos pelo Mediterrâneo, mantendo as suas tradições, aproveitando-se da natureza aberta, abundante e carente de mão-de-obra.

As políticas de povoamento, de incremento das pescas e da actividade marítima sustentaram concessões para salinas, armações de atum, mas também de companhias de pesca e de conserva. Nesse âmbito, diversas populações piscatórias foram aliciadas a instalar-se na Fuzeta, vindas de zonas pesqueiras da costa Norte, estando documentadas migrações do distrito de Aveiro. Eram pescadores que dominavam as artes de velejar e das redes, formando companhas organizadas. O conjunto daquelas actividades era igualmente controlado pelos poderes públicos. Os pescadores estavam sujeitos ao “compromisso marítimo”.

Não é possível seguir a evolução destas populações, senão, como se referiu, desde o século XVIII. Antes da fundação da paróquia, um simples lugar não merecia referência nas fontes e muito menos mereciam relevo as pobres gentes locais. No século XX, encontramos distintos grupos populacionais. Os pescadores das companhas de alto mar, dos caíques e das traineiras, que velejavam de Larache a Lisboa e pescavam bacalhau na Terra Nova, formavam o núcleo principal, habitando nas casas de açoteia do núcleo urbano. Os pescadores pobres, que moravam nas zonas ribeirinhas ou em cabanas no areal ou na ilha, parecem distintos daqueloutros, empregando-se na pesca local e usando artes arcaicas. Os proprietários rurais e, nas franjas da povoação, camponeses sem terra formavam um grupo pouco numeroso, mas com expressão enquanto empregadores sazonais. A população ligada aos poderes públicos, aos serviços ou com bens de raiz formavam o topo da hierarquia da Fuzeta. Estes grupos distinguiam-se pelo sotaque, pelos modos de vestir e de conviver e tinham, todos eles, a sua própria estratificação em função dos rendimentos. Sofriam da segregação social, dos terrestres sobre os marítimos e camponeses, dos marítimos das traineiras sobre os das artes arcaicas e montanheiros. Destes sobre os meramente recolectores.

Tal como nos principais núcleos piscatórios de Portugal (Matosinhos, Nazaré, Sesimbra, Portimão), após o 25 de Abril a maioria da população votou no Partido Socialista, alteou as casas, ocupou os terrenos vagos com construções, desrespeitou a traça urbana tradicional, mudou várias vezes de mobília e conservou a sua qualidade de trabalhadores honrados, sem preocupações de ascensão social. É curiosa a comparação entre aqueles núcleos urbanos, como é sugestivo o distinto comportamento da gente rural, os montanheiros, que preferiram votar PSD, aumentar o património, ascender à política.

Um singelo traço une as populações piscatórias referidas: a tradição dos bilros, complexa arte de tecer rendas de seda, que percorre os lugares ribeirinhos desde La Corunha, na Galiza, até precisamente à Fuzeta – e que se disseminou por terras do Brasil. Praticada por mulheres para acréscimo de rendimento doméstico ou para delícia do lar, por vezes conjugada com a criação do bicho-da-seda pelas crianças da casa, como mandou ensinar o Marquês de Pombal, revela a persistência de uma cultura uniforme ou com a mesma origem. Se ajuntarmos as práticas tradicionais da pesca, que levava os pescadores da Fuzeta para os mares da Terra Nova, bem como os de Ílhavo, recrutados de entre as famílias com tradição da pesca de alto mar, podemos concluir que se trata de uma mesma cultura.

Distintos destes pescadores eram aqueles que viviam em cabanas de colmo (na ilha dá-se o estorno, gramínea empregue na construção das cabanas, mas não em quantidade suficiente para satisfazer a procura, pelo que eram empregues outras variedades; por isso, parece preferível dizer cabanas de colmo). Cabanas deste tipo eram alçadas por todo o território rural, com ligeiras modificações, habitualmente utilizadas por populações sazonais ou pobres. Todavia, na Ria Formosa, os moradores destas cabanas eram, no geral, pescadores de artes de pesca arcaicas, como a merjona. Não conviviam com os pescadores do bacalhau ou da arte da caçada e foram muito dificilmente assimilados após o 25 de Abril, podendo dizer-se que eram socialmente discriminados. Empregavam um sotaque mais lento e pausado, com prolongamento da última sílaba, enquanto o sotaque dos restantes pescadores era acelerado e tendia a cortar a penúltima ou última sílaba. Na fuzeta a população em cabanas terá tido fraca expressão, quando comparada com as proporções em Santa Luzia e em Cabanas de Tavira, mas tratar-se-ia do mesmo povo e da mesma cultura, apresentando idênticos traços.

Na Fuzeta, as gentes das cabanas eram epitetadas de “chotas”, termo que suscitou larga interrogação, embora esteja em desuso. Após alguma pesquisa e constatando que a palavra chota apresenta 7 denotações diferentes, em vários países, afigura-se-nos que a palavra deriva de “chotte”, termo francês para choupana, e que, pelo uso popular em tom depreciativo, derivou para chota. Passou também a designar as pessoas das cabanas, em vez destas propriamente ditas.

Talvez não seja já suficientemente abalizável um estudo que aborde os diferentes sotaques que se empregavam na região: apenas na Fuzeta, 3, que somados aos de Moncarapacho, Olhão, Tavira, Cachopo faziam uma miríade de falas que representavam culturas e povos distintos. O grande feito da democratização após Abril de 1974 consistiu na progressiva integração destas gentes, com abolição das discriminações sociais: anteriormente, um pescador não podia entrar na associação recreativa dos terrestres, um montanheiro não podia casar com a filha de um pescador, um pobre não tinha acesso aos cafés. A cultura tradicional de cada grupo permanecia na memória colectiva através destes sinais plenos de arcaísmos e de raízes, ora quase perdidos.

2 comentários:

Isabel Victor disse...

sinais dos tempos ...

sadações

iv

Isabel Victor disse...

"(...) faziam uma miríade de falas que representavam culturas e povos distintos. O grande feito da democratização após Abril de 1974 consistiu na progressiva integração destas gentes, com abolição das discriminações sociais: anteriormente, um pescador não podia entrar na associação recreativa dos terrestres, um montanheiro não podia casar com a filha de um pescador, um pobre não tinha acesso aos cafés. A cultura tradicional de cada grupo permanecia na memória colectiva através destes sinais plenos de arcaísmos e de raízes, ora quase perdidos."

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Pois, estes exóticos viveres, estes "arcaísmos", feitos de isolamento e pobreza, dão óptimas teses mas as pessoas são muito mais do que objectos de estudo. A noção de cultura (no mundo contemporâneo) é indissociável da ideia de liberdade. A universalidade dos direitos humanos (o acesso aos bens fundamentais) deve prevalecer. As mudanças sociais e os movimentos que lhe estão associados comportam importantíssimas manifestações culturais identitárias. O 25 de Abril, abriu essa magnífica porta. As culturas são dinâmicas, permeáveis (hibrídas)e mutáveis. Ancoradas em lugares e memórias, são fantásticas construções, esculpidas na paisagem, nos corpos, nas mentes. O desafio é ir ao âmago dessa essência.


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Saudações




Vou passando ...



iv