quarta-feira, 3 de junho de 2009

Para uma biografia de D. João II

A história dos sujeitos é uma história da acção contingente. Mas será redundante reduzir a intervenção dos grandes protagonistas às relações pessoais com que se debateram para conquistar ou para assegurar posições de poder. O verdadeiro acontecimento que aí se expõe imediatamente é a abertura do sujeito às forças que se opõem no vasto quadro de uma sociedade em transformação: a luta pelo poder, o esmagamento dos rivais, os tratados de compromisso, o lançamento das grandes obras, as medidas de entesouramento e de investimento, tudo centrado num núcleo reduzido e elitista dirigido pelo rei, podem expor com maior claridade do que se supõe um jogo de forças muito mais amplo e muito mais poderoso que se trava nessa dada sociedade. O rei poderoso, quando vence um príncipe inimigo, fecha um plano de luta sobre si próprio e, como um íman, atrai para si as forças que, por serem forças, querem guerrear de modo independente. Matar um rival é um fechamento e um chamamento, não daquela crise de rivalidade, que até poderia ser solucionada de muitos outros modos, mas dos corpos estranhos, imagéticos e energéticos, que cruzam a sociedade e desafiam qualquer poder. Uma biografia do rei, com os seus adversários directos, as suas viagens, as vitórias e derrotas, as idiossincrasias pessoais, namoros e filiações, é uma história que não quer ver a história que ele conduziu. Para se compreender melhor este ponto é necessário questionar de que modo podemos atribuir ao soberano o sucesso de um feito historicamente relevante, por exemplo o dobramento do Bojador. Os navegadores, os simples marinheiros, os construtores, os mapeadores, os negociantes, os temerários podem eles ser reconduzidos à autoridade de um único homem? Claro que podem, desde que reconheçamos que poderiam por ele ter sido impedidos de realizar o feito (como D. João II cortou as vasas a Cristóvão Colombo e a Fernão de Magalhães). Já não parece plausível que reduzamos Bartolomeu Dias a mero fautor do rei.Os grandes movimentos das cidades (Lisboa, Porto, Aveiro, Viana do Castelo, Coimbra) conduziram o rei a Évora. Os sonhadores que partiam dos campos em busca de lugar nas naus em direcção ao desconhecido não estavam sob as ordens de um soberano. As forças que brotavam e cirandavam pelo reino criando exuberâncias na pedra das igrejas, no que veio a ser conhecido por manuelino, dificilmente poderiam ser contidas, embora se tivesse tentado aprisioná-las pela importação de um modismo italiano tardio, na transição do renascentismo para o maneirismo. O rei erigia o estado. O estado representa o redireccionamento daquelas forças, a desterritorialização, passando de acção livre a acção para o rei. Tal desiderato foi conseguido por uma gravidade e encenação permanentes. O palanque na praça central onde um familiar do rei é executado com requintes cerimoniosos e cruéis faz parte dessa mise-en-scène, do rei tecendo o estado e sendo por ele tecido, mesmo entretecido. Temos então o segundo momento da pesquisa biográfica: o modo como o rei condutor é aprisionado na teia que crê tecer, a absoluta necessidade da acção de que não pode fugir, os acontecimentos que exigem estritas medidas predeterminadas (diríamos hoje, pelo princípio da legalidade), preparadas para situações gerais mas não para aquela em concreto. O poder conduz o rei a ser rei de um modo irredutível, previsível e absolutamente terminal.O estado estrutura-se independentemente do seu titular. A cobrança de impostos rotinada e inquestionada é o seu grande ideário. Mais a cobrança das coimas ou melhor a montagem da grande máquina policial controladora de todos os movimentos. Tudo paga imposto, tudo carece de licença, todo o desvio é reprimido, isto é, taxado. O biógrafo refere-se a fontes de receita e com isto revela a sua ingenuidade – ou mesmo malevolência, se igualmente desqualifica a repressão atroz sobre as pessoas. A historicidade que vulgarmente se atribui à repressão esconde uma incapacidade de ver e revela uma concordância ideológica. O rei é inultrapassavelmente aquele homem jacente; o que o biógrafo na verdade ressalta é o seu apego ao estado. Para a máquina estatal é indiferente a lei que se aplica, sempre conjuntural, mas é-lhe imanente o domínio sobre o processo repressivo: o imposto, a coima, a pena, o crédito, a máquina desterritorializadora.Desde as grandes obras de J. Veríssimo Serrão e de H. Baquero Moreno, D. João II não tem merecido suficiente investigação historiográfica. As biografias de Luís Adão da Fonseca e de Manuela Mendonça, esta menos interessante, não conseguem tomar rumo dentro da historiografia contemporânea. Uma vida trágica, austera, um braço forte e firme sobre todas as intempéries, uma luta constante para construção de um trono, fraqueja perante o mecanismo, subliminar ainda, de um estado em processo implantação. Verdadeiramente, a coroa de glória deste estado central é Alcácer-Quibir com o derradeiro dilaceramento dos últimos heróis camonianos. Esta história continua por fazer.

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