quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A Escola Selectiva

O pensamento não deve deixar-se conduzir pelo acaso das notícias do dia a dia, como advertiu Nietzsche. Deve sustentar-se um fio condutor e recusar-se a atracção do fait-divers, para não nos reduzirmos a meros comentadores da actualidade e não nos deixarmos manietar pelo Maria vai com as outras dos sms e subliminaridades da propaganda. Este blog, comentando o imediato, adentra-se por uma trajectória que quer fazer trilho, para que o pensamento possa regressar às suas origens ou percorrer a floresta da novidade. A notícia é um pretexto de colagem a um tema recorrente, com vista à produção de uma ideia inovadora.

Assim, a educação é uma das principais matérias a retrabalhar. Quando no século XIX a obstetrícia foi relegada aos cuidados das parteiras sofreu uma estagnação do progresso técnico e científico. Tal como o direito não é um exclusivo dos profissionais que o aplicam, como os médicos recebem as inovações conseguidas pelos investigadores, também os professores não devem ter a exclusividade da pedagogia, podendo mesmo conceber-se uma pedagogia independente do ensino. Aliás, é bem conhecido o efeito de embrutecimento da aplicação técnica, decorrente da tarefa hiper-repetida do profissional actuante – até Quaresma o Pensador, grande criação de Fernando Pessoa, nos avisa desse fenómeno. A questão poderá ser posteriormente relacionada com aqueloutra que assenta na crença infundada de que se aprende pela experiência (o que não se confunde com o treino orientado) e que faz com que, como na velha tropa, alguma escola ainda sustente que a antiguidade é um posto.

A nobre função dos professores não faz deles repositórios da cultura, tanto mais que, numa sociedade que generalizou o saber numa base igualitária, os licenciados do ensino não podem aspirar a qualquer superioridade do conhecimento em relação aos licenciados das restantes áreas, ou mesmo à restante população não licenciada. Depois, não esqueçamos que grande parte daquilo que se ensina está caduco ou vai estar muito em breve, por força da evolução científica (aqui se encontra a principal crítica ao pensamento de Hannah Arendt sobre educação (vide o artigo deste blog “a crise na educação”), pois a autoridade do professor, que resulta do saber, está continuamente a ser posta em causa pela chegada de novos saberes, de novos estilos, da mudança imparável dos tempos (Maio de 68, 25 de Abril e as continuas mudanças que por aí andam), sendo a crise de autoridade um elemento estrutural do processo educativo).

Todavia, não pode fazer-se uma investigação meramente teórica da escola. Ensina a sociologia política que para além da lei escrita estão os mecanismos institucionais ou as simples práticas organizativas, quantas vezes mais poderosas que as declarações de vontade ou o Diário da República. Vem aqui então com propriedade o programa da SIC, “Nós por Cá”, de 22-01-2009. Uma jovem professora, convidada do estúdio, desabafou contra a burocracia do sistema de avaliação que não atendia ao caso dela, que por ser jovem leccionava nas turmas com alunos mais carenciados para os quais havia questões bem mais importantes do que a classificação do aproveitamento escolar, questões que não podiam ser mensuradas na sua avaliação enquanto professora. Importante desabafo. Note-se que revela mais do que pretenderia pensadamente.

Parece que continua a praticar-se a velha segregação dos alunos por classes sociais e por graus de aproveitamento dos tempos da outra senhora. Parece também que continua a discriminar-se os jovens professores, compondo-se as turmas com alunos certinhos para os professores mais antigos e entregando-se os relapsos aos cuidados dos professores mais jovens (mais inexperientes?). Que escola é esta? Então, para os alunos com dificuldades sociais ou de aprendizagem há um tratamento distinto, em que nem sequer interessa o aproveitamento escolar? Ou existem escolas A e escolas B? Isto representa o claudicar de toda a sociedade de bem-estar social que supostamente se tentava construir e remete os professores para a sombra do medievalismo. Bem recentemente abundavam casos de escolas que organizavam os horários das aulas de modo a conferir tratamento principesco aos professores influentes, que tinham um ou mais dias de descanso, enquanto os professores recém-chegados eram obrigados a leccionar a primeira hora da manhã e as três últimas da tarde em certos dias, e os alunos tinham horários carregados de furos. Ainda se organizam turmas de repetentes ou, discretamente, turmas de meninos do papá?

O desabafo daquela professora põe a nu questões de suma importância, inultrapassáveis e de esclarecimento obrigatório. Há que compreender a extensão do fenómeno. Com urgência. Que útil a avaliação!

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O futebol deixou de ser um desporto

O futebol deixou de ser um desporto. As qualidades que tanto se fomentaram e embora em declínio se fomentam, do atleta que se supera, exímio e puro, ainda se encontram em muitos desportos, da natação à ginástica, do voleibol ao hóquei. Exaltam valores morais, sentido do colectivo e servem de exemplo de preserverança e de honradez. O futebol porém é uma indústria, com as suas áreas financeira, propagandística e de entretenimento.

No futebol, jogadores nacionais ou emigrantes (dos 20 melhores goleadores da 1ª liga, 4 têm nacionalidade portuguesa) cumprem horários e escamoteiam as limitações técnicas por meio de rasteiradas, quedas aparatosas e escarretas avondo. O Belenenses, o Olhanense, o Setúbal ou o Rio Ave são bem tristes exemplos dessas trupes de operários desenrascados, a saltarem na barreira e a desviarem a cara perante a velocidade do adversário, lentos, perdulários, às vezes trôpegos, a acusarem álcool (aquele que fica no sistema nervoso para a semana seguinte e que a nossa ignorância teima em não contabilizar). Diakité, um atleta que casa no dia da prova, soa a operário, com os direitos correspondentes e sem alegria.

Crê-se que quase ninguém vê estes jogos: dizem que vêm, enquanto tremoceiam e beberricam cerveja. Abençoadas repetições, que lhes permitem asseverar que viram o jogo e até opinar sobre o lance, o árbitro e o treinador. Espectadores lamentáveis, a tomar Listerine e a sentirem-se muito honrados por causa do Ronaldo, como se o tivessem em casa, e a pugnarem pela vitória do clube que tomaram como pretexto para entrar no mundo dos homens, mesmo que os golos sejam vergonhosos e as surripiadelas à beleza do jogo sejam absolutamente descaradas. Pior ainda quando a desproporção da qualidade das equipas é confrangedora. Seria talvez melhor quando se cantava o fado e se trazia a prata da casa ao campo raso nas manhãs de Domingo, em jogos aguerridos e muito suados. Seria melhor quando não havia câmaras nem repetições e só via a jogada quem estava com fina atenção. Agora não nos livramos da praga horrível de grunhidos indignados com os erros da arbitragem, à pala de um abuso da tecnologia, ostensivo e despudorado.

Primeiro, o futebol expandiu-se por via da promoção politicamente orientada de um entretém alienado pela disputa bairrista, fomentando-se um clube em cada terra, controlado pelo cacique local, um homem respeitado e discreto amigo do regime. Depois, na fase de massas, importa compreender o que nos fez trair o clube da terra para incharmos o peito por uma equipa alheia, de longe, sem alma, chefiada por um negociante de terrenos, abraçado a um político, muito íntimo, financiada por uma marca de cerveja e propagandeada por jornalistas pegajosos, a porem farinha na água, exibindo uma subserviência palavrosa. Clubes rodeados de informadores pedinchosos, a alimentarem grupinhos de intriguistas, proclamando acima de tudo o interesse da camisola e escondendo a conta bancária. Os clubes são apenas empresas. Pôr lá o coração diz muito de cada qual. A ligação desta menoridade social ao Estado, à política do espectáculo, comendo uma na mão da outra, é por demais evidente. Até os juízes lá andam, agora a julgar lances. Perdemos lucidez, se a tivemos.

O jogo da bola é antiquíssimo, tendo sido descobertos vestígios arqueológicos dos egípcios de há 4.500 anos, da Grecia antiga (http://expertfootball.com/history/soccer_history_mediterran.php), dos romanos e dos maias (http://library.thinkquest.org/C0115986/origem.html). Nas nossas vilas medievais, não faltava o campo da bola, com os seus desafios principais, enquanto no dia a dia as crianças e os jovens se divertiam fazendo e jogando com bolas, existindo vários tipos de jogos, alguns muito parecidos ao futebol que os ingleses estabeleceram ao longo do século XIX. A grande novidade do nosso tempo é serem tantos os espectadores e tão poucos os praticantes. É fazer-se de um modo tão organizado que se torna quase um exclusivo dos profissionais. É depender de uma optimização técnica tão acérrima que quase renega o divertimento. É ser só resultado final, um eufemismo de vitória. É ser tão difundido que nem olhamos para o jogo dos vizinhos.

O futebol, se quiser voltar a ser um desporto como os outros, tem de renunciar ao álcool, à boçalidade, ao oportunismo e privilegiar o jogo corrido, a inteligência sobre a sabujaria, a formação da juventude sobre o operariado experiente. No entanto, não se espere nada de novo. Acaso alguém percebe quanto a sua individualidade é obra da grande máquina, que apenas transparece nos lugares numerados, nas pontuações, nas colorações das camisolas, nas afiliações e nas garrafas vazias? Claro que não.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Escola de Sicofantas

A notícia é simples e não confirmada: num jardim-de-infância, cada criança assume por um dia a responsabilidade de “representar” o grupo a que pertence, transmitindo à educadora as questões que considere pertinentes ou que lhe sejam perguntadas; certo dia, um desses responsáveis informa a educadora de que um companheiro fez um gesto obsceno no recreio; a educadora castiga o prevaricador, desnudando-o na presença do grupo; os pais acham o castigo injusto e chamam a televisão.

Até há bem pouco as escolas proibiam a denúncia. Os sicofantas eram seriamente desaconselhados. Paulatinamente, um torpor de responsabilidade, de culpa e de castigo, de procedimentalização dos comportamentos e de formalização dos discursos tem vindo à tona, ganhando espaços, inquinando as relações de companheirismo, o convívio desinteressado, invadindo a intimidade, fazendo-nos públicos, analisáveis, inseríveis e reinseríveis na escola ou na sociedade.

Faça-se um relatório descritivo que aclare ou confunda, tanto faz, as causas e os efeitos de um tal miserabilismo. Faça-se depois um novo relatório que confirme ou infirme aqueloutro. É preciso porém parar de imediato a instigação do bufismo na escola e na sociedade. Quem descortinar naquela notícia um problema com o castigo, está vesgo, vesgo de puritanismo, pois apenas acorda quando o mais íntimo é tocado: o pudor. É preciso ver plenamente a desgraça que retorna como um anjo negro, assombrando as crianças com os mecanismos controladores de uma inquisição que nunca mais abala. Como europeus, devemos aspirar a um mundo desimpedido de ouvidos perscrutadores, de olhares castradores, de línguas viperinas e de castigos moralizadores. Queremos andar livres nas ruas e nos espaços públicos, sem delatores, sem boateiros, sem remelosos infamantes à perna. Se alguns educadores das nossas crianças não se apercebem desta necessidade, faça-se uma lei, desse-lhes formação, que diabo.

A nossa net é um bom exemplo de sicofantismo, de preocupação arrebanhadora de informação alheia, quando comparada com a brasileira, espanhola ou francesa, por exemplo. Salvo raros sites de qualidade, abundam os registos de dados pessoais, as anotações de IP, as janelas de pop-up que obrigam a cliques, vigora a parcimónia informativa e até algum comércio on-line omite os preços, exige participação do visitante, e às vezes falha a informação ou bloqueia depois de receber os dados. Uma mesquinhez serôdia, para vender informação a estranhos, traçar consumidores ou simplesmente para emulação sicofantista. Continua por isso a ser mais vantajoso fazer buscas em inglês, francês ou espanhol. Esperemos que não venha a ser mais vantajoso emigrar, como sucedeu a dezenas de gerações de portugueses.