O futebol deixou de ser um desporto. As qualidades que tanto se fomentaram e embora em declínio se fomentam, do atleta que se supera, exímio e puro, ainda se encontram em muitos desportos, da natação à ginástica, do voleibol ao hóquei. Exaltam valores morais, sentido do colectivo e servem de exemplo de preserverança e de honradez. O futebol porém é uma indústria, com as suas áreas financeira, propagandística e de entretenimento.
No futebol, jogadores nacionais ou emigrantes (dos 20 melhores goleadores da 1ª liga, 4 têm nacionalidade portuguesa) cumprem horários e escamoteiam as limitações técnicas por meio de rasteiradas, quedas aparatosas e escarretas avondo. O Belenenses, o Olhanense, o Setúbal ou o Rio Ave são bem tristes exemplos dessas trupes de operários desenrascados, a saltarem na barreira e a desviarem a cara perante a velocidade do adversário, lentos, perdulários, às vezes trôpegos, a acusarem álcool (aquele que fica no sistema nervoso para a semana seguinte e que a nossa ignorância teima em não contabilizar). Diakité, um atleta que casa no dia da prova, soa a operário, com os direitos correspondentes e sem alegria.
Crê-se que quase ninguém vê estes jogos: dizem que vêm, enquanto tremoceiam e beberricam cerveja. Abençoadas repetições, que lhes permitem asseverar que viram o jogo e até opinar sobre o lance, o árbitro e o treinador. Espectadores lamentáveis, a tomar Listerine e a sentirem-se muito honrados por causa do Ronaldo, como se o tivessem em casa, e a pugnarem pela vitória do clube que tomaram como pretexto para entrar no mundo dos homens, mesmo que os golos sejam vergonhosos e as surripiadelas à beleza do jogo sejam absolutamente descaradas. Pior ainda quando a desproporção da qualidade das equipas é confrangedora. Seria talvez melhor quando se cantava o fado e se trazia a prata da casa ao campo raso nas manhãs de Domingo, em jogos aguerridos e muito suados. Seria melhor quando não havia câmaras nem repetições e só via a jogada quem estava com fina atenção. Agora não nos livramos da praga horrível de grunhidos indignados com os erros da arbitragem, à pala de um abuso da tecnologia, ostensivo e despudorado.
Primeiro, o futebol expandiu-se por via da promoção politicamente orientada de um entretém alienado pela disputa bairrista, fomentando-se um clube em cada terra, controlado pelo cacique local, um homem respeitado e discreto amigo do regime. Depois, na fase de massas, importa compreender o que nos fez trair o clube da terra para incharmos o peito por uma equipa alheia, de longe, sem alma, chefiada por um negociante de terrenos, abraçado a um político, muito íntimo, financiada por uma marca de cerveja e propagandeada por jornalistas pegajosos, a porem farinha na água, exibindo uma subserviência palavrosa. Clubes rodeados de informadores pedinchosos, a alimentarem grupinhos de intriguistas, proclamando acima de tudo o interesse da camisola e escondendo a conta bancária. Os clubes são apenas empresas. Pôr lá o coração diz muito de cada qual. A ligação desta menoridade social ao Estado, à política do espectáculo, comendo uma na mão da outra, é por demais evidente. Até os juízes lá andam, agora a julgar lances. Perdemos lucidez, se a tivemos.
O jogo da bola é antiquíssimo, tendo sido descobertos vestígios arqueológicos dos egípcios de há 4.500 anos, da Grecia antiga (http://expertfootball.com/history/soccer_history_mediterran.php), dos romanos e dos maias (http://library.thinkquest.org/C0115986/origem.html). Nas nossas vilas medievais, não faltava o campo da bola, com os seus desafios principais, enquanto no dia a dia as crianças e os jovens se divertiam fazendo e jogando com bolas, existindo vários tipos de jogos, alguns muito parecidos ao futebol que os ingleses estabeleceram ao longo do século XIX. A grande novidade do nosso tempo é serem tantos os espectadores e tão poucos os praticantes. É fazer-se de um modo tão organizado que se torna quase um exclusivo dos profissionais. É depender de uma optimização técnica tão acérrima que quase renega o divertimento. É ser só resultado final, um eufemismo de vitória. É ser tão difundido que nem olhamos para o jogo dos vizinhos.
O futebol, se quiser voltar a ser um desporto como os outros, tem de renunciar ao álcool, à boçalidade, ao oportunismo e privilegiar o jogo corrido, a inteligência sobre a sabujaria, a formação da juventude sobre o operariado experiente. No entanto, não se espere nada de novo. Acaso alguém percebe quanto a sua individualidade é obra da grande máquina, que apenas transparece nos lugares numerados, nas pontuações, nas colorações das camisolas, nas afiliações e nas garrafas vazias? Claro que não.
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