sábado, 20 de dezembro de 2008

Luzes de Natal

Em 1983, Martin Scorsese realiza “O Rei da Comédia”, trazendo ao cinema o grande cómico Jerry Lewis no papel sério da sua vida real, sequestrado por Robert de Niro, que representa um actor cómico frustrado. O filme, apesar de esmagadoramente brilhante, foi um tremendo insucesso, devido à incapacidade do público de passar de uma forte expectativa de riso para o confronto da dura realidade de homens normais, um esforçando-se por regressar a casa, o outro desfazendo-se em sketch sem graça.

A forte mensagem daquele filme não nos permite esquecer da força necessária para que a vida brote e da cruel insaciedade com que, muitas vezes, uns aos outros nos olhamos, bem visível nos cómicos, sempre sujeitos à agulheta redutora do riso que podem ou não provocar. Não é sustentável que reduzamos a complexidade mágica do outro a um objecto apetecível em função da correspondência a um padrão de gosto ou de moral.

Nesta época que tanto remete para os deveres e responsabilidades de cada qual e se criticam, às vezes asperamente, os jovens, os trabalhadores, os empreendedores, os políticos, os agricultores, os pescadores, os industriais, os banqueiros, os dançarinos, os consumidores, os supermercados, a lua e o clima, é preciso trazer uma palavra de espanto perante a alegria da natureza pujante, a luz dos espíritos que criam ou que simplesmente pulam e dos corpos que aquecem e transpiram e das gentes que sonham sem parar.

Chamemos as luzes de Natal tão urgentes que são para os mais velhos, sobretudo para aqueles que têm saúde e aguardam a aposentação ou já a conseguiram. Precisamos dessa camada tão importante da população, que desveladamente alimentamos, para que tragam um sorriso aos mais jovens, uma atenção aos passantes, uma pedagogia descomprometida, um saber guiar sem comando, uma tolerância e um respeito pelos que agora se adentram no mundo difícil, um amparo, um resguardo nas horas difíceis de todos os que carecem.

Velhos ou idosos, sintam em vós as luzes de Natal e venham ao mundo mostrar compreensão pelos estranhos, alegrar-se com as extravagâncias dos inexperientes, aguardar com subtileza o desabrochar dos incautos, extasiar-se com a vitalidade da mudança, apontar educadamente o vosso exemplo, criar coisas novas ou preparar honradamente a vossa partida.

Acendam-se as luzes de Natal. Viva o Natal!

domingo, 30 de novembro de 2008

Litanias do Fogo e do Mar

O comum dos mortais pode aceder à música erudita. Na entrevista de 1991 para o Jornal de Letras, Emmanuel Nunes elucida que "a música não é uma especialidade, excepto para o compositor, o aluno e o professor" (http://homepage.mac.com/vitor.rua/iblog/C633734543/E1737581497/index.html). E "como todas as combinações são possíveis" carece de demonstração que todos os estudiosos consigam melhor compreensão de uma obra que qualquer curioso. Onde a erudição mais se expõe ao inverosímil é quando comenta uma obra de arte. Afastado o simples gosto e feito o enquadramento histórico, que pode dizer-se de uma peça musical? Parece que todas as palavras se tornam vazias e quanto mais profundidade pretendem alcançar, mais turvas se mostram (esta ligação entre o profundo e o turvo pertence a Nietzsche). Por isso, grande parte dos textos críticos recorrem à comparação, o mais pobre dos recursos estilísticos, e usam figuras da mitologia para saltarem de um som para um traço, de uma tonalidade para uma cor, num percurso que exige alguma cultura de base e muita desfaçatez.

Escrever sobre música é possível sim (leia-se Deleuze). Imaginemos Emmanuel Nunes nas aulas de Stockhausen: 5 horas seguidas a ouvir falar de música e, sendo já um especialista, ouvir embevecidamente. Um dom reservado a espíritos clarividentes. Até alguns compositores se perdem a tentar expor as estruturas formais das suas obras, ondas, curvas, simetrias triangulares, intersecção de planos, tudo processos de construção também utilizados noutras artes, que não podem explicar a substância, pois são mera forma. Mas pode criar-se a aparência de uma obra apenas densificando uma data estrutura formal: a pintura do século XIX ou a música contemporânea copiada por compositores menores - que tanto têm contribuído para empecilhar o caminho que os génios ainda desbravam. Como não gosto de António Pinho Vargas, apetece-me dizer que é um desses compositores menores. Além dos especialmente dotados, só os simples curiosos deveriam falar de música, para democratização e amplificação do auditório.

Litanias do Fogo e do Mar (os portugas subalternos gostam de escrever o título no francês original, como devem dizer ainda "Crime e Castigo" em russo), duas peças para piano de 1969 e 1971, de Emmanuel Nunes, são o supra sumo da música contemporânea, o expoente da criação, um matar do piano, que fica retido para sempre na repetição da obra, esgotado na ressonância. Somos nós que nos libertamos ao entregarmo-nos abertamente à audição. Absolutamente fantástico. É próprio das grandes obras não se darem à compreensão, mas ao deslumbramento. O véu para nós é presença indesvelável, atracção e projecção. Pobres dos que compreendem Guernica ou as Litanias.

A audição destas obras põe problemas técnicos que ultrapassam a sala do recital. Não há que limitar a criação artística. Sepilhar a obra de arte para a adaptar ao público seria um regresso à barbárie - e temo que alguns compositores, como Eurico Carrapatoso, tentem fazer essa ponte impossível sobre o Letes da criação. Há uma discrepância natural entre o génio e o gosto do público, que o tempo às vezes se encarrega de eliminar. A maioria actual não pode ser referência do valor da obra, pois não tem substrato, é mero acaso. Todavia, é possível melhorar a relação entre a música e o auditório. O espírito precisa de se afundar, como um barco ao fundear no mar alto, tarefa que não é compatível com a atenção prestada ao pianista no recital clássico. Em Emmanuel Nunes não há virtuosismo do pianista, há qualidade da interpretação tout court, como na época barroca. O auditório não deveria estar organizado em filas paralelas voltadas para o palco, deveria adoptar-se a posição reclinada (para a frente ou para trás) e cada espectador deveria estar totalmente fora da área de influência do vizinho. Pode ainda supor-se uma qualidade de som gravado tal que aconselhe a audição em privado, abolindo-se a execução ao vivo. Aqui seria deslumbrante uma pauta sonora - ideia que creio inédita - em que o ouvinte possa ver a escrita enquanto ouve a música, e tocar nas notas enquanto soam.

Um projecto para ipod com visor divulgaria a música contemporânea de um modo sem precedentes. Vá, reconheçam os créditos do copyright!

sábado, 29 de novembro de 2008

O combate do Homem Aranha

A televisão passou hoje de manhã uma produção americana do Homem Aranha em bonecos animados. Tratava-se, claro, de uma caça ao grande vilão, que tem um plano maquiavélico e recursos poderosos. O combate do Homem Aranha consiste em impedir a concretização do plano, o que consegue, e prender o vilão, o que conseguirá no próximo episódio. A particularidade de hoje: o plano contava com a colaboração de um grupo de operadores dos mercados de capitais. Enquanto o vilão e os serviçais eram exibidos por inteiro, os colaboradores não tinham rosto visível.

O vilão foi perseguido criminalmente. Os colaboradores esfumaram-se com o abortar do plano. Qualquer coisa de alegórico. Os homens sem rosto podem ser quaisquer de entre nós. Do papalvo do conto do vigário ao testa-de-ferro do grande negócio, a base de recrutamento é imensa. Servida a ganância por tal exército de cobardia e oportunismo, não faltam colaboradores aos vilões do mundo. Esperemos que o Homem Aranha não morra como o Batman. Ao menos evoca a sã ingenuidade que nunca poderá ser reconhecida nos justiceiros da vida real.

Este post passa a partir de hoje, sem pretensões de critério, a registar sequazes:
- A pseudo-entrevistadora do programa da RTP "As Escolhas de Marcelo" (desde 7/12/2008 tomou o cognome de guia espiritual dos sequazes);
- Marcelo e Judite de Sousa;
- O Gato Fedorento;
- O alter-ego de António Vitorino na RTP, Dr. Jekyll;
- Peres Metelo;
- Vitalino Canas;
- Vasco Pulido Valente, actualmente;
- A SIC;
- O jornal Público;
- Basílio Horta

Ainda o Lago dos Cisnes

Bater palmas durante um espectáculo deve poder ser compreendido para além da mera efusividade do público. Especialmente quando se trata de música clássica, há uma forte tendência para apreciar o virtuosismo dos intérpretes e para exteriorizar esse sentimento. Perante a genialidade, as palmas são manifestamente vazias de sentido, podendo até indiciar um certo pretensiosismo dos espectadores. Perante a mediania, podem ser contraproducentes, pois o estímulo raramente passa a barreira do valor que os músicos atribuem a si próprios. Num ambiente provinciano, que sujeita os intérpretes à solidão, o gáudio do confronto com a audiência convoca aquela vaidade humana irreprimível. Num ambiente erudito, que instala a concorrência, as palmas tendem a arvorar-se em medida do mérito. Em todos os casos, os aplausos nada podem acrescentar à maravilha da execução.

Grandes artistas como Maria João Pires execram as palmas durante os intervalos da interpretação. Glenn Gould diabolizáva-as. A questão tem maior acuidade no recital, porém a teatralização da música, pela exacerbação do virtuosismo ou da intervenção do público, prejudica a recepção das grandes obras e funciona como uma cortina entre a arte e a audiência. Entendendo-se a arte como a concretização de um valor superior, os aplausos, o hedonismo, o pretensiosismo, o maneirismo, representam o seu contrário, o mal.

Este dilema entre a execução da obra e a sua teatralização era bem compreendido no período romântico. Precisamente o ballet, que reúne três artes, abre-se a esse jogo, apelando à manifestação dos espectadores no final das cenas de virtuosismo especialmente criadas para esse efeito.

No Lago dos Cisnes, Tchaikovsky consegue magistralmente o duplo trick entre virtuosismo e representação do mal na dança do príncipe com a filha do feiticeiro. Porque se espera que a dançarina, a mesma que representa o cisne, consiga encarnar os movimentos de uma mulher severa, contrastando com os modos ingénuos do cisne, num tempo musical de grande intensidade dramática, a efusão de palmas não se faz rogada e explode precisamente quando o mal triunfa. Os espectadores presos na dança não se apercebem de que aplaudem a perfídia que seduz malevolamente o príncipe. O libreto pode ter sido influenciado por diversas fábulas (http://www.balletmet.org/Notes/SwanHist.html), mas é já referido no mito de Er que a alma de Orfeu se reencarnou num cisne, animal músico, para não nascer de uma mulher e que as almas dos cisnes preferiam reencarnar em humanos (Platão, República,620a). A dupla forma princesa-cisne tem assim a simbologia da pureza da arte ameaçada pelos demónios da vida: a magia do feiticeiro ou a força negativa da ovação.

O romantismo compreende pois esse lado negro dos aplausos, embora o conjure no sentido do hedonismo. No século XXI, devemos esconjurá-lo em absoluto.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O lago dos Cisnes

Quando andamos cá fora talvez não nos apercebamos suficientemente da direcção dos comentários sobre as faltas de respeito aos valores de cidadania (usemos assim, perdoe-se a singeleza, esta expressão para nomear as vozes que se queixam dos abusos dos outros, que o sentido do texto não permite esclarecimento sobre este ponto). Os outros não respeitam ou violam a dignidade de pessoas ou o destino dado a certas coisas. É evidente que o queixoso que se queixa não se inclui na categoria de outro. O estacionamento sobre o passeio, o peão que se atira inadvertidamente sobre a passadeira, os carros que se projectam desamparados sobre o vazio (algo a que alguns condutores confundem com destreza e eficácia), os dorminhocos que têm pressa, as caras à banda e as caretas que se deitam sobre os vizinhos, os corpos que se interpõem nas intersecções previsíveis dos peões (manifestação do atavismo crepuscular segundo Dali), as mulheres que clacam a dentadura com a desculpa da pastilha,o alarme do carro que toca e toca, a buzina que idem, aspas aspas, os piscas que não se fazem, enfim uma infinidade de coisitas, que só os professores, com o seu jeito para os relatórios, conseguem elencar e elencam sobre os seus alunos, os pais deles, os colegas e a ministra.

Vem o comentário a propósito do Ballet Imperial Russo que hoje (sessão da 18h)dançou o Lago dos Cisnes no teatro municipal de Faro. Uma companhia de profissionais de grande, enorme estaleca, que fizeram com elegância a proeza de inebriar a audiência com um desempenho fulgurante, nos dois últimos actos sobretudo. A música apaixonante e encantadora de Tchaikovsky exalta o modelo romântico, projectando-o para um mundo de sonhos, que confunde a realidade com a ficção. O libreto evoca o niilismo: um príncipe que se recusa a entrar no mundo dos adultos é levado a dar sentido à sua própria vida, lutando pelo amor de uma jovem enfeitiçada por um mágico mau. A música, em quadros evocativos da acção, transporta-nos para um mundo de fantasia, onde cada espectador pode dar asas à imaginação, levantando os pés desta terra vã. Os bailarinos movem-se com uma facilidade tal que até fazem crer que o mundo dos sonhos se realiza mesmo.

E o público extasia-se, aclama, aplaude, interrompe a música, a dança, torna a interromper e até compete por secções da plateia pelo controlo das iniciativas. Um disparate de aplausos que pode ajudar a cortar algum aborrecimento, mas que prejudica aquele encantamento em que outros talvez pretendam abandonar-se. O primeiro acto destina-se a que o público se acomode nos assentos, enquanto os retardatários têm carta branca para irem chateando, quais macaquitos saltitões, que ainda arrumam a casaca, ajeitam o cabelo e acendem o visor do telele. Concentração nicles. O segundo acto é pontuado pelo mastigar das chicletes, que os lábios repuxados não conseguem abafar. O terceiro e o quarto actos são para bater palmas. E quando a companhia se vai perfilando, com aquela etiqueta antiga, para se oferecer ao aplauso do público, desatam as velhas a sair da sala para não serem apanhadas pelo engarrafamento da saída, e das palmas ferozes do final passa-se de repente para um bruá de fuga, como se tivesse disparado o alarme de sismo. Fica uma parte da companhia por aplaudir (há uns anos no Conservatório ficou por aplaudir a companhia inteira, que as palmas tinham sido dadas, pelos vistos todas, no decorrer do espectáculo).

Meus senhores farenses, isto de telhados de vidro (que expressão horrível, hei-de inventar uma menos bélica) é uma chatice. Não custa nada consultar uns sites na net sobre comportamento nas salas de espectáculo, por exemplo: http://www.naxos.com/education/enjoy2_concertmanners.asp
http://listverse.com/entertainment/top-10-tips-for-your-first-opera-or-ballet/
http://www.fortwayneballet.org/performances-auc-what-to-expect.php

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Como o poder nos corrompe

"Cuidado com a Língua" é mais um programa da RTP sobre erros ortográficos e sintácticos na língua portuguesa. Destaca-se pelo excessivo dispêndio de recursos, quando comparado com os congéneres. Não visa tanto esclarecer dúvidas como apontar erros correntes. Serve aqui de mero exemplo da força repressiva que o poder exerce sem cessar sobre os falantes, os súbditos da língua.

A ortografia é pura arbitrariedade. O português começou a estruturar-se sobre o latim vulgar, o castelhano e uma série infindável de línguas. Muitas palavras foram colhidas directamente da expressão popular, seguindo múltiplas grafias. A escrita dos séculos XVII e XVIII, com as letras encadeadas sem pausas e as folhas cheias de floreados, permitiu que cada escriba cometesse erros a seu bel-prazer, com excepção da terminologia legal. Era uma escrita reservada ao poder e ao perfeccionismo dos letrados. É no século XIX, o século em que melhor se escreveu português, que as palavras vão sendo recenseadas (Camilo, por si, deu aos dicionários centenas de palavras devidamente grafadas). Com a homogeneização do ensino, a formação de professores primários, a introdução de critérios selectivos baseados na qualidade dos talentos, a ortografia ganhou protagonismo. A burocracia, que de há muito precisava de uma ortografia oficial, que representasse um estado uno e indivisível, estendeu-se sobre o ensino.

Sucessivos actos legislativos — o último aguarda a entrada em vigor — trataram de estabelecer, de disciplinar, os termos em que todos os falantes do português devem expressar-se. Apesar de assentarem em estudos etimológicos e semânticos, é apreensível a tendência para criarem uma idiossincrasia da língua, sem estrangeirismos e, sobretudo, sem paralelo com qualquer perspectiva iberista. Não foi conseguida uma metodologia uniforme, por exemplo para os s, ss, c, ç, ch e x, nem se conseguiu fazer corresponder plenamente a grafia com a fonética. Ao longo do século XX, a língua perdeu musicalidade, fez-se átona, enquanto a língua do estado se foi tornando a língua do povo. Em muitas regiões, os termos, as expressões, as sonoridades autóctones foram trucidadas pelo modelo oficial. Muitas das palavras antigas em uso do povo não teriam ainda grafia assente, não fosse o esforço gigantesco de dicionaristas, em especial de José Pedro Machado.

A imposição da grafia oficial (Fuzeta ou Fuseta, Seiceiro ou Ceiceiro, destorce ou distorce?) deu-se sobretudo através da escola. O som da rua que não coincidia com as exigências da professora. Ler e repetir, cópias e ditados. Os erros ortográficos que contavam para a classificação dos exames. À chegada do ensino secundário, o léxico de um aluno de base popular era reduzidíssimo — uma esperteza que fazia diminuir os erros de escrita e que disfarçava a insuficiência cultural. Um mundo oficial levado ao mínimo necessário para o sucesso nos exames; uma escola que ignorava os localismos, a riqueza da linguagem do mar, da montanha, do bairro operário. É demasiado óbvio que um aluno no ensino autoritário, sendo estimulado a evitar o erro ortográfico, era também conduzido a uma redução do leque de palavras, contornando as que lhe fossem menos conhecidas, aquelas que vêem de súbito à ideia e levantam dúvidas de escrita. Mais grave ainda o controlo sintáctico que dificultava o emprego de orações compostas, pela imediata censura de qualquer eventual falta de concordância. Então optava-se pelas frases simples, antecipava-se às vezes o complemento indirecto, não se passava da oração relativa, exercício mínimo do intelecto. Essa doença do corrector que não lê o texto, não se deixa surpreender pela magia de um pensamento, magia maior vinda de um jovem, e anda de lápis de cor a lançar nódoas de censura. Vírgula aqui não, acolá. Quantas redacções foram assim corrigidas: x erros?

Não se trata apenas da aprendizagem da língua. Que é a língua senão autoridade? Aquele método serve um regime político que violenta desde logo a jusante a mais tenra consciência de menino. O adulto assim formado não escreve por medo de errar, uma castração do pensamento, que se sublima pelo ar austero e ponderado de pai de família. Um permanente elogio do silêncio, também ele silencioso. Das formulações gramaticais dos jesuítas de antanho às árvores sintagmáticas de Noam Chomsky, o reaccionário de esquerda, cai-se no erro de pretender que “o conteúdo determina a expressão” e que a forma de expressão sustenta um sistema linguístico. Na verdade, “A linguagem é questão de política antes de ser questão de linguística; mesmo a apreciação dos graus de gramaticalidade é matéria política” (Gilles Deleuze, O Anti-Édipo II, pp, 125, 126, 127, 187).

Fazer-se o contrário, impor-se aos jovens uma estrutura linguística que não assente nem nas suas raízes culturais, nem na cultura erudita é retirar-lhes a possibilidade de compreensão dos conteúdos e de expressão do pensamento. Fica submetido à interpretação do mestre, perpetuamente. Por isso, a mesma matéria escolar é leccionada vezes sem conta ao longo dos anos, as expressões adverbiais, os descobrimentos, o 25 de Abril, até se esgotar qualquer ânimo de auto-compreensão. Tudo na escola, no estudante, tem de ser interpretado pelos mestres e reinterpretado pelos mestres. É esse o sentido do exame, agir como máquina ceifeira da iniciativa individual. Só o mestre ausente sabe toda a matéria.

Numa sociedade democrática, o ensino do português pelo método tradicional contém o germe que o faz falhar. Morre por si, sem que possa já alcançar a consciência dos alunos. Falta-lhe o elemento de subordinação do aluno ao professor, à escola, ao sistema político. É o que, muito erradamente, se aponta como falta de autoridade dos professores ou falta de respeito dos alunos. Subordinação, a palavra-chave agora perdida, assente na foice da exclusão. As palavras corrigidas no exame são esquecidas no tropel de um aluno descomprometido, deliciado com a miríade de palavras da rua, da net, do telemóvel. O léxico saiu do controlo da escola, anda à solta, indomável. Por isso, a escola tem de passar a esconder o lápis de censor, os professores têm de tentar descobrir Wally num qualquer texto pejado de erros. A escola não conseguirá resolver o puzzle enquanto não interiorizar que a língua é determinada pelo campo socio-político. E o ensino também.

Seria tempo de apostar no pensamento elaborado, em vez da adivinha ortográfica. Mostrar o erro, confundir grafias não é aceitável do ponto de vista didáctico, seja qual for o método que se perfilhe. Programas de TV do tipo apontado não são apenas contraproducentes: fazem recordar aos adultos a humilhação da aprendizagem no ensino autoritário, trazem insegurança, num país em que 80% da população adulta não completou o ensino secundário. Deixemos que cada um, embora saibamos que sem erudição, possa expressar-se sem receios e aprender pelo exemplo dos melhores, agindo plenamente na civitas. Fale-se e escreva-se sem medos.

Para si, em especial, que teme que tal liberdade descambe em desordem, permita-me que realce que a língua, enquanto sistema, é viva, se renova e recria, sem grandes peias. A ortografia é a força da lei, uma arbitrariedade que continuará em busca de aperfeiçoamento.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Dizer os nomes, tarefa de um anarquista

Não sei bem que outro tempo produziu Júlio Carrapato. Faro, uma cidadezinha solarenga, empurrada para o mar pela força rural que também a obrigava a negociar, com os seus funcionários e quadros distintos, a darem nome às ruas, teve destas coisas únicas que fazem pensar. Olhando-a hoje, não se percebe como terá sido possível - pode dizer-se o mesmo em relação a José Pedro Machado ou a Joaquim de Magalhães. Mas Júlio Carrapato, homem dos nossos dias, parece um continuador dos pensadores à antiga, para os quais o saber valia por si e não como moeda de troca, exercendo a erudição sem peias academistas. Um constante entrelinhar de ditos e uma constante reescrita dos lugares comuns, quebrando-os, reconstruindo-os, em permanente ebulição. O campo de eleição é a política, ainda a das ideologias, as mágoas da luta anarquista, que parece sempre defraudada ou ludibriada, como aquele porta-estandarte, que Júlio refere, a aguentar a bandeira apesar da agravada mutilação que o inimigo lhe provoca.

Júlio Carrapato percorre todos os tempos e lugares, apontando os momentos de heroísmo e os decessos, a ombridade dos crentes e a vilania dos traidores, os povos mártires do stalinismo e do fascismo, a burguesia em busca do mercado perdido, exibindo uma cultura sólida e vasta, embora ferida pela acentuada prolixidade do entusiasmo em que se deixa arrastar.

Espanta mais ainda a panóplia infindável de nomes, de agentes e de agenciamentos que consegue trazer à colação, numa permanente viagem pelo mundo. O pai, a França, Mário Soares, o Brasil, Raul Rêgo, o passaporte, uma trilogia da fuga, a coragem de peregrinar, de se fazer revolucionário. Como disse Deleuze,"a coragem está em aceitar fugir e rejeitar uma vida calma e hipócrita em falsos refúgios", "o que não é ao mesmo tempo fuga e investimento social?" (O Anti-Édipo, p.357). Regressado ao marasmo natal qual o sentido dessa peregrinação? Alcançar todos os cavalos, derrubar todos os avatares, Deus, o estado, a democracia, o oportunismo, apontar sempre para uma aurora crescente que trará a sociedade anarquista. E que não venha: parece que para Júlio Carrapato o que verdadeiramente conta é essa tarefa de dizer os nomes, Lenine, Cunhal, João Freire, Manuel Joaquim de Sousa, Nicolas Walter, Elysée Reclus, Malatesta, e os campos de batalha, a Faixa de Gaza, a guerra civil de Espanha, a África colonial, e mais nomes, Spínola, Maria de Lurdes Rodrigues, Bakunine, Rimbaud.

Tarefa interminável essa de um anarquista empedernido: apontar os nomes dos lugares, dos actores, interligá-los e comprometê-los com a acção. Então, na sua "Edições Sotavento", vai pondo cá fora, pelo menos junto dos amigos, que o mundo rural é enorme, ensaios de política e crónicas acutilantes, de verbo sarcástico à Camilo, ferindo as vaidades de políticos e de todos os que interessam ao combate. Saramago, stalinista redutor, Lobo Antunes, arrogante e indisposto, Manuel Alegre, consciência dorminhoca, entre tantos e tantos relampejos críticos que ora aguçam a curiosidade ora suscitam o sorriso.

Enfim, Júlio Carrapato, uma leitura necessária, nesta cidadezinha que teima em não cair no mar – necessária na razão inversa da concordância.

domingo, 16 de novembro de 2008

A crise na educação segundo Hannah Arendt

As questões relativas à educação não podem ser compreendidas se esquecemos as grandes linhas da história e abandonamos o aprofundamento dos conceitos e dos conhecimentos. Não pode ignorar-se a história recente (por exemplo as passagens administrativas, o cabulanço e o repetido "insucesso" das reformas desde os anos 70), como não pode invocar-se um catastrofismo cuja única saída seja o regresso ao passado. No sistema que vigorou nesse passado, nós não teríamos tido entrada.

A crise na educação, tal como a constatamos hoje, iniciou-se nos finais dos anos 50 na América e no início da década de 70, em Portugal. Hannah Arendt (1906-1975), grande filósofa que inspira divulgadores como Fernando Savater, enquadrou a educação como tema central no conjunto do seu pensamento. A sua máxima "pense sobre o que estamos fazendo" foi recebida pela sociedade americana que, ao contrário da nossa, escuta os especialistas antes de tomar posição sobre cada matéria política.

A obra de Hannah Arendt está publicada em Portugal pela Relógio de Água (A Condição Humana; Entre o Passado e o Futuro; A Promessa da Política) e pela D. Quixote (As Origens do Totalitarismo). Seguiremos neste breve alinhavo as duas primeiras obras, em especial a segunda, que contém o ensaio “A crise na educação”, tomando singelamente os conceitos de Arendt.

Para Arendt, o nosso tempo caracteriza-se pela perda da tradição filosófica, da religião e da autoridade política. A crise na educação é consequência daquelas perdas. A cultura entrou em crise com o advento do indivíduo burguês, submetido ao utilitarismo. Passou a ser uma arma usada para a progressão social. "Esta fuga à realidade através da cultura e da arte" produziu o filisteu cultivado e instruído, que lê os clássicos "movido pelo interesse secundário de se auto-aperfeiçoar" (Entre o Passado..., pp.212,213). Esta mentalidade utilitarista que traduz "uma inabilidade para pensar e julgar uma coisa para além da sua função", é também própria dos "fabricadores que não podem deixar de pensar todas as coisas como meios para os seus fins" (idem, p. 225). A partir do século XIX, os valores culturais passaram a ser tratados como valores de troca, perdendo "a virtude original de prender a atenção e comover" e desembocando na "desvalorização dos valores". A cultura de massas que surgiu após a I Grande Guerra, ao contrário daquela, não deseja cultura mas entretenimento (idem, pp. 214,215). A cultura apodrece, submetida a organização, difusão e modificação com o fim de convencer as massas de que pode ser divertida e até educativa (idem, pp. 217). A atitude de consumo condena a cultura à ruína, não sendo possível acreditar que, pela educação, a sociedade de massas se possa tornar mais cultivada (idem, p. 220).

Desde aquela concepção do mundo, Arendt adverte contra a tendência para "considerar a crise na educação como um mero fenómeno local", dependente de particularidades políticas (idem, p. 184). Na sociedade de massas, a educação sofre com a perda de valores e com o “fracasso do senso comum” (idem, p. 188). Este fenómeno dá-se em simultâneo com a igualdade de oportunidades que a escola passou a ter de garantir, esforçando-se por eliminar “a diferença entre novos e velhos, dotados e não dotados, enfim, entre crianças e adultos, em particular, entre alunos e professores”. Mas destes factores, que não podem explicar a crise, também nascem grandes vantagens (idem, pp. 189,190).

Arendt considera catastróficas três ideias base que, na década de 50, dominaram o ensino americano. “A primeira é de que existe um mundo da criança”, que ela possa ser “emancipada face à autoridade dos adultos”, pois “o que daqui resulta é que as crianças são, por assim dizer, banidas do mundo dos adultos. Elas ficam entregues a si mesmas e à tirania do seu grupo”, contra o qual não podem discutir, nem se revoltar ou escapar. “A reacção das crianças a esta pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil” (idem, p. 192). A segunda ideia é de que a pedagogia se tenha desligado da matéria a ensinar, bastando ao professor ser um pedagogo, em vez de um técnico competente na sua disciplina. “O que daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios meios, como ao professor é retirada a fonte mais legítima da sua autoridade” (idem, p. 192). A terceira ideia perniciosa “é a que se não pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio”. Deixa de se ensinar um saber para se inculcar um saber-fazer, cujo resultado é uma espécie de transformação das instituições de ensino geral em institutos profissionais”, que se revelam “incapazes de levar as crianças a adquirir os conhecimentos requeridos por um normal programa de estudos” (p. 194). A aprendizagem através do jogo afasta artificialmente as crianças do mundo dos adultos.

Arendt esclarece que “A educação não pode desempenhar nenhum papel na política porque na política se lida sempre com pessoas já educadas”. “Preparar uma nova geração para um mundo novo, só pode significar que se deseja recusar àqueles que chegam de novo a sua própria possibilidade de inovar” (idem, p. 187). Em política, a atitude conservadora só pode levar à destruição”, porque “o mundo está irremediavelmente condenado à acção destrutiva do tempo”. Mas o conservadorismo “faz parte da essência mesma da actividade educativa cuja tarefa é sempre acarinhar e proteger alguma coisa — a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o antigo, o antigo contra o novo”. “ A nossa esperança reside sempre na novidade que cada geração traz consigo”... “Destruímos tudo se tentarmos controlar o novo que nós, os velhos, pretendemos desse modo decidir como deverá ser. É justamente para preservar o que é novo e revolucionário em cada criança que a educação deve ser conservadora. Ela deve proteger a novidade e introduzi-la como uma coisa nova num mundo velho” (idem, pp.202, 203).

Por tal motivo, “O domínio da educação deve ser radicalmente separado dos outros domínios, em especial da vida política pública. Não é possível educar adultos e não se deve tratar as crianças como se fossem adultos”. “A função da escola é ensinar às crianças o que o mundo é, e não iniciá-las na arte de viver” (idem, p. 205). “A escola não é, de modo algum, o mundo, nem deve pretender sê-lo. É a instituição que se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo, de forma a tornar possível a transição da família para o mundo” (idem, p. 199). A educação deve cessar quando se entra na idade adulta, embora possa continuar a aprendizagem.

Enfim, na política os adultos são iguais entre si, devendo ser recusada a ingerência autoritária sobre a livre tomada de posição de cada um. Porém, a educação pressupõe a autoridade, que é aqui uma forma especifica da responsabilidade (idem, p. 198). Para compreender o pensamento de Arendt neste ponto é necessário distinguir os conceitos de responsabilidade, autoridade e persuasão. “ A autoridade já não desempenha nenhum papel na vida pública e privada ... ou, no melhor dos casos, desempenha um papel altamente contestado”. No mundo que se tornou inseguro (estamos em 1960), os homens deixaram de assumir a responsabilidade relativamente aos seus filhos (idem, pp. 260, 261). Aqui responsabilidade representa um “cuidar de” no sentido heideggeriano, que Arendt nunca cita. “A autoridade implica uma obediência na qual os homens conservam a sua liberdade” (idem, p. 119). “Quando se usa a força, isso significa que a autoridade falhou”. A autoridade não se confunde então com força, nem com persuasão, que “pressupõe uma paridade. Quando se usam argumentos a autoridade é deixada en suspenso” (idem, p. 106). A persuasão dá-se entre iguais, na esperança de estabelecer um acordo (idem, p. 232).

Separando a educação da vida política, entendendo as crianças como radicalmente distintas dos adultos, “podemos aplicar exclusivamente ao domínio da educação o conceito de autoridade e a atitude relativamente ao passado que lhe são apropriadas mas que, no mundo dos adultos, deixaram de ter validade geral e já não podem pretender voltar a tê-la” (idem, p. 205).

A família está fora do domínio da política. O filho é o produto do amor e sendo como tal lançado no mundo impõe o dever de cuidar, a responsabilidade dos pais. O respeito é “uma consideração pela pessoa, nutrida à distância ... que independe de qualidades que possamos admirar ou de realizações que possamos ter em elevada consideração”. Assim, “a convicção de que só se deve respeito ao que se admira ou se preza, constitui claro sintoma da crescente despersonalização da vida pública e social” (A condição Humana, p. 295). É então forçoso concluir que os pais devem respeitar a escola e fazê-lo sentir às crianças, para que os professores possam educá-las e preparar a sua entrada no mundo dos adultos.

O pensamento de Arendt, apesar das críticas que lhe podem ser feitas, conserva ainda a sua força, sobretudo quando, situado em 1960, constatamos que a geração de crianças sobre a qual se debruçava mudou o mundo em 1968. Devemos reter que o mundo se renova em cada geração e que devemos contribuir para que cada criança seja educada para, quando adulto, entrar no mundo em liberdade. Retomando Arendt: a relação entre os adultos e as crianças em geral não pode ser confiada à pedagogia enquanto ciência especializada. “A educação é o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, ainda mais, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens” (Entre o Passado, p. 206).

domingo, 19 de outubro de 2008

Necessidade de Camões

Cada geração merece a sua própria tradução, edição ou ensaio crítico dos grandes clássicos. As mutações da língua, sempre subversiva, a evolução dos conceitos e o desbloqueamento das construções dogmáticas da geração anterior fazem envelhecer as obras publicadas, ao ponto de parecerem relíquias incompreensíveis. Não obstante há obras que perduram, continuando a difundir luz e clareza, século após século, sempre prontas a deixar-se desfrutar como novidade. Os Lusíadas, portentoso cântico, conserva essa força representativa, misteriosa e desveladora, da grande poesia, da poesia que pertence verdadeiramente à arte, no sentido que Heidegger atribuiu a Hölderlin. Camões, o poeta filósofo, captou o caminho que nos estava traçado, enquanto profeticamente deixou os seus heróis a gozar as delícias da Ilha dos Amores.

Grande parte do que nos foi ensinado (e ainda hoje é propalado) sobre os Lusíadas não encontra correspondência no poema. António José Saraiva, um dos espíritos argutos e profundamente cultos da geração passada, pôde esclarecer alguns desses equívocos no ensaio “Luís de Camões, Estudo e Antologia” (Bertrand, 3ª ed., 1980). Nos Lusíadas, “falta um pano de fundo, um ser colectivo” (p. 155), “o povo não tem papel algum nos acontecimentos, tudo é obra dos guerreiros” (p. 141), e o “Velho do Restelo é o próprio Camões”, “um humanista que desdenha a «aura popular»” (p. 128), “o seu pensamento vai todo para os cavaleiros” (p. 144); embora contenha “expressões claras da ideia territorial de pátria e da noção moderna de Estado”, “o rei é concebido como suserano de vassalos, chefe de cavaleiros”, “ e a ideia de pátria como algo independente dos homens, algo de impessoal” (p. 149).

Ferido embora pelo tempo, pelas datadas aporias sobre as contradições dos Lusíadas, pela puerilidade quase incapacitante de entender o desejo e ainda pelos rasgos tímidos de descolagem do status quo de então, o labor interpretativo de Saraiva, apenas interrompido pela morte, revela-se assombroso. Em vez de um Estado, eis que um grupo étnico, de cavaleiros, guerreiros, tomam para si a tarefa de conquistar o Oriente, suscitando, sem o saberem, a ira de Baco e a protecção de Vénus. A acção não é conduzida pela “bruta crueza” daqueles guerreiros, mas pelos deuses, que realmente determinam o desfecho da epopeia, elevando os heróis à semi-divindade através do amor.

Saraiva descobre nos Lusíadas um panteísmo (p. 162), “a confiança na capacidade humana para dominar a natureza ... e, virtualmente, de Deus como imanência” (p. 165), valores humanistas concordes com Giordano Bruno e outros. A “guerra no Oriente é a continuação da cruzada peninsular” (p. 123) e Camões exorta D. Sebastião a empreender a guerra na África do Norte, prometendo-lhe “a grandeza de um Alexandre ... cantado por um Homero, que será ele próprio, Camões” (p. 144). Neste plano, não há contradição com a acção dos deuses.

Seguindo agora Gilles Deleuze (com Félix Guatari, em Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio e Alvim, 2007), os guerreiros movem-se num espaço linear, esconjuram e impedem a formação do Estado (p. 454), mantêm-se nómadas, alheios a construções de um "senso comum" e à organização do Estado (p. 478). “Com a máquina de guerra e na existência nómada, o número deixa de ser numerado para tornar-se Cifra e é por isso que constitui o «espírito de corpo» e que inventa o segredo e as consequências do segredo (estratégia, espionagem, astúcia, emboscada, diplomacia, etc.)” (p. 498) e “se a aritmetização do corpo social tem por correlato a formação de um corpo especial distinto, ele próprio aritmético, pode compor-se esse corpo ... com uma linhagem ou uma tribo de privilegiados cujo domínio toma desde logo um novo sentido (caso Moisés, com os Levitas)” (p. 501).

Ao menos suspeita-se aqui de uma abertura para uma interpretação radical dos Lusíadas. Siga-se Saraiva: Os guerreiros são figuras apagadas, “o Gama de Camões nem figura chega a ser” (p. 152), os seus companheiros não existem (p. 152) e os heróis da história de Portugal “reduzem-se a puras abstracções” (p. 156). "É todo um sistema de caixas chinesas de peças oratórias" (p. 157), sendo "provável que Camões atribuisse um sentido oculto às fábulas mitológicas" (p. 162).

São o número, constituem a máquina de guerra, o plano imanente, que recusa deixar-se desterritorializar pelos órgãos do poder do Estado. Com eles os artistas, Camões, e os construtores itinerantes das igrejas do manuelino refulgente são os nómadas que não se deixam apanhar na rede repressora, do modelo único do verdadeiro, do justo ou do direito (vide Deleuze, pp. 468, 480).

A linhagem dos guerreiros perpetua-se na guerra. A derrota de D. Sebastião representará o fim. Muitos morrerão, muitos ficarão prisioneiros em África, abandonados por Portugal, vilmente esquecidos, como Camilo contou dolorosamente em "O Senhor do Paço de Ninães". Termina aqui um tempo de fulgor. O Estado, que vinha estendendo seus preceitos desde finais de quatrocentos, conseguiu vencer as tribos dispersas, expulsou os judeus, os mouros, os livre pensadores, os guerreiros, os artífices do gótico flamejante. A Idade Moderna venceu.

Camões, no seu sonho humanista, com a sua crença num devir conquistado pela força humana, torna-se mais uma vez absolutamente necessário. É preciso descobrir na história esse ponto premonitório onde nos perdemos enquanto seres livres, para ingressarmos nos quadros do Estado tentacular, que absorve, redige e estatui todo o pensamento.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Sweeney Todd


Na depauperada movida farense, campeiam os empresários de surrar salários mínimos, das pipocas de ouro, da publicidade ad nauseam, do ludibrio do público. Entre o vazio cénico de pecinhas ridículas, tiradas do verdete da má língua e do estresse de trazer por casa, pedantismos folclóricos e exposições de preguiçosos com solução à vista, bem melhor estamos na penumbra da sala a curtir Scriabin ou Carlos Marecos.

Eis porém que Tim Burton regressa à genialidade, e chega a Faro.
Um filme plástico - um dos mais plásticos de sempre (quase se sente a viscosidade, quase se vagueia por entre os remoinhos tridimensionais que sacodem a tela) - com música profunda, aprendida dos grandes sábios (Schumann?), que só quando em vez descai para o vaudeville. Não perca tempo a ler as letras. Milhões de pormenores perturbadores, signos secretos, alegorias encriptadas, gozo absoluto com o realismo cinematográfico (atenção às chaminés, aos segundos planos que umas vezes são vivos e outras apenas cenário, aos figurantes que passam duas vezes, aos cantores que se desencontram das canções), tudo representa uma força misteriosa.

Uma história moral, necessária a todos os que receiam o regresso ao abuso e à pobreza. A personagem moral será a criança, que se redime do álcool, suplanta a miséria e alcança plena autonomia e liberdade? E uma lição: desconfia, se te sentes fraco.