Bater palmas durante um espectáculo deve poder ser compreendido para além da mera efusividade do público. Especialmente quando se trata de música clássica, há uma forte tendência para apreciar o virtuosismo dos intérpretes e para exteriorizar esse sentimento. Perante a genialidade, as palmas são manifestamente vazias de sentido, podendo até indiciar um certo pretensiosismo dos espectadores. Perante a mediania, podem ser contraproducentes, pois o estímulo raramente passa a barreira do valor que os músicos atribuem a si próprios. Num ambiente provinciano, que sujeita os intérpretes à solidão, o gáudio do confronto com a audiência convoca aquela vaidade humana irreprimível. Num ambiente erudito, que instala a concorrência, as palmas tendem a arvorar-se em medida do mérito. Em todos os casos, os aplausos nada podem acrescentar à maravilha da execução.
Grandes artistas como Maria João Pires execram as palmas durante os intervalos da interpretação. Glenn Gould diabolizáva-as. A questão tem maior acuidade no recital, porém a teatralização da música, pela exacerbação do virtuosismo ou da intervenção do público, prejudica a recepção das grandes obras e funciona como uma cortina entre a arte e a audiência. Entendendo-se a arte como a concretização de um valor superior, os aplausos, o hedonismo, o pretensiosismo, o maneirismo, representam o seu contrário, o mal.
Este dilema entre a execução da obra e a sua teatralização era bem compreendido no período romântico. Precisamente o ballet, que reúne três artes, abre-se a esse jogo, apelando à manifestação dos espectadores no final das cenas de virtuosismo especialmente criadas para esse efeito.
No Lago dos Cisnes, Tchaikovsky consegue magistralmente o duplo trick entre virtuosismo e representação do mal na dança do príncipe com a filha do feiticeiro. Porque se espera que a dançarina, a mesma que representa o cisne, consiga encarnar os movimentos de uma mulher severa, contrastando com os modos ingénuos do cisne, num tempo musical de grande intensidade dramática, a efusão de palmas não se faz rogada e explode precisamente quando o mal triunfa. Os espectadores presos na dança não se apercebem de que aplaudem a perfídia que seduz malevolamente o príncipe. O libreto pode ter sido influenciado por diversas fábulas (http://www.balletmet.org/Notes/SwanHist.html), mas é já referido no mito de Er que a alma de Orfeu se reencarnou num cisne, animal músico, para não nascer de uma mulher e que as almas dos cisnes preferiam reencarnar em humanos (Platão, República,620a). A dupla forma princesa-cisne tem assim a simbologia da pureza da arte ameaçada pelos demónios da vida: a magia do feiticeiro ou a força negativa da ovação.
O romantismo compreende pois esse lado negro dos aplausos, embora o conjure no sentido do hedonismo. No século XXI, devemos esconjurá-lo em absoluto.
sábado, 29 de novembro de 2008
Ainda o Lago dos Cisnes
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