sábado, 29 de novembro de 2008

Ainda o Lago dos Cisnes

Bater palmas durante um espectáculo deve poder ser compreendido para além da mera efusividade do público. Especialmente quando se trata de música clássica, há uma forte tendência para apreciar o virtuosismo dos intérpretes e para exteriorizar esse sentimento. Perante a genialidade, as palmas são manifestamente vazias de sentido, podendo até indiciar um certo pretensiosismo dos espectadores. Perante a mediania, podem ser contraproducentes, pois o estímulo raramente passa a barreira do valor que os músicos atribuem a si próprios. Num ambiente provinciano, que sujeita os intérpretes à solidão, o gáudio do confronto com a audiência convoca aquela vaidade humana irreprimível. Num ambiente erudito, que instala a concorrência, as palmas tendem a arvorar-se em medida do mérito. Em todos os casos, os aplausos nada podem acrescentar à maravilha da execução.

Grandes artistas como Maria João Pires execram as palmas durante os intervalos da interpretação. Glenn Gould diabolizáva-as. A questão tem maior acuidade no recital, porém a teatralização da música, pela exacerbação do virtuosismo ou da intervenção do público, prejudica a recepção das grandes obras e funciona como uma cortina entre a arte e a audiência. Entendendo-se a arte como a concretização de um valor superior, os aplausos, o hedonismo, o pretensiosismo, o maneirismo, representam o seu contrário, o mal.

Este dilema entre a execução da obra e a sua teatralização era bem compreendido no período romântico. Precisamente o ballet, que reúne três artes, abre-se a esse jogo, apelando à manifestação dos espectadores no final das cenas de virtuosismo especialmente criadas para esse efeito.

No Lago dos Cisnes, Tchaikovsky consegue magistralmente o duplo trick entre virtuosismo e representação do mal na dança do príncipe com a filha do feiticeiro. Porque se espera que a dançarina, a mesma que representa o cisne, consiga encarnar os movimentos de uma mulher severa, contrastando com os modos ingénuos do cisne, num tempo musical de grande intensidade dramática, a efusão de palmas não se faz rogada e explode precisamente quando o mal triunfa. Os espectadores presos na dança não se apercebem de que aplaudem a perfídia que seduz malevolamente o príncipe. O libreto pode ter sido influenciado por diversas fábulas (http://www.balletmet.org/Notes/SwanHist.html), mas é já referido no mito de Er que a alma de Orfeu se reencarnou num cisne, animal músico, para não nascer de uma mulher e que as almas dos cisnes preferiam reencarnar em humanos (Platão, República,620a). A dupla forma princesa-cisne tem assim a simbologia da pureza da arte ameaçada pelos demónios da vida: a magia do feiticeiro ou a força negativa da ovação.

O romantismo compreende pois esse lado negro dos aplausos, embora o conjure no sentido do hedonismo. No século XXI, devemos esconjurá-lo em absoluto.

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