segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Como o poder nos corrompe

"Cuidado com a Língua" é mais um programa da RTP sobre erros ortográficos e sintácticos na língua portuguesa. Destaca-se pelo excessivo dispêndio de recursos, quando comparado com os congéneres. Não visa tanto esclarecer dúvidas como apontar erros correntes. Serve aqui de mero exemplo da força repressiva que o poder exerce sem cessar sobre os falantes, os súbditos da língua.

A ortografia é pura arbitrariedade. O português começou a estruturar-se sobre o latim vulgar, o castelhano e uma série infindável de línguas. Muitas palavras foram colhidas directamente da expressão popular, seguindo múltiplas grafias. A escrita dos séculos XVII e XVIII, com as letras encadeadas sem pausas e as folhas cheias de floreados, permitiu que cada escriba cometesse erros a seu bel-prazer, com excepção da terminologia legal. Era uma escrita reservada ao poder e ao perfeccionismo dos letrados. É no século XIX, o século em que melhor se escreveu português, que as palavras vão sendo recenseadas (Camilo, por si, deu aos dicionários centenas de palavras devidamente grafadas). Com a homogeneização do ensino, a formação de professores primários, a introdução de critérios selectivos baseados na qualidade dos talentos, a ortografia ganhou protagonismo. A burocracia, que de há muito precisava de uma ortografia oficial, que representasse um estado uno e indivisível, estendeu-se sobre o ensino.

Sucessivos actos legislativos — o último aguarda a entrada em vigor — trataram de estabelecer, de disciplinar, os termos em que todos os falantes do português devem expressar-se. Apesar de assentarem em estudos etimológicos e semânticos, é apreensível a tendência para criarem uma idiossincrasia da língua, sem estrangeirismos e, sobretudo, sem paralelo com qualquer perspectiva iberista. Não foi conseguida uma metodologia uniforme, por exemplo para os s, ss, c, ç, ch e x, nem se conseguiu fazer corresponder plenamente a grafia com a fonética. Ao longo do século XX, a língua perdeu musicalidade, fez-se átona, enquanto a língua do estado se foi tornando a língua do povo. Em muitas regiões, os termos, as expressões, as sonoridades autóctones foram trucidadas pelo modelo oficial. Muitas das palavras antigas em uso do povo não teriam ainda grafia assente, não fosse o esforço gigantesco de dicionaristas, em especial de José Pedro Machado.

A imposição da grafia oficial (Fuzeta ou Fuseta, Seiceiro ou Ceiceiro, destorce ou distorce?) deu-se sobretudo através da escola. O som da rua que não coincidia com as exigências da professora. Ler e repetir, cópias e ditados. Os erros ortográficos que contavam para a classificação dos exames. À chegada do ensino secundário, o léxico de um aluno de base popular era reduzidíssimo — uma esperteza que fazia diminuir os erros de escrita e que disfarçava a insuficiência cultural. Um mundo oficial levado ao mínimo necessário para o sucesso nos exames; uma escola que ignorava os localismos, a riqueza da linguagem do mar, da montanha, do bairro operário. É demasiado óbvio que um aluno no ensino autoritário, sendo estimulado a evitar o erro ortográfico, era também conduzido a uma redução do leque de palavras, contornando as que lhe fossem menos conhecidas, aquelas que vêem de súbito à ideia e levantam dúvidas de escrita. Mais grave ainda o controlo sintáctico que dificultava o emprego de orações compostas, pela imediata censura de qualquer eventual falta de concordância. Então optava-se pelas frases simples, antecipava-se às vezes o complemento indirecto, não se passava da oração relativa, exercício mínimo do intelecto. Essa doença do corrector que não lê o texto, não se deixa surpreender pela magia de um pensamento, magia maior vinda de um jovem, e anda de lápis de cor a lançar nódoas de censura. Vírgula aqui não, acolá. Quantas redacções foram assim corrigidas: x erros?

Não se trata apenas da aprendizagem da língua. Que é a língua senão autoridade? Aquele método serve um regime político que violenta desde logo a jusante a mais tenra consciência de menino. O adulto assim formado não escreve por medo de errar, uma castração do pensamento, que se sublima pelo ar austero e ponderado de pai de família. Um permanente elogio do silêncio, também ele silencioso. Das formulações gramaticais dos jesuítas de antanho às árvores sintagmáticas de Noam Chomsky, o reaccionário de esquerda, cai-se no erro de pretender que “o conteúdo determina a expressão” e que a forma de expressão sustenta um sistema linguístico. Na verdade, “A linguagem é questão de política antes de ser questão de linguística; mesmo a apreciação dos graus de gramaticalidade é matéria política” (Gilles Deleuze, O Anti-Édipo II, pp, 125, 126, 127, 187).

Fazer-se o contrário, impor-se aos jovens uma estrutura linguística que não assente nem nas suas raízes culturais, nem na cultura erudita é retirar-lhes a possibilidade de compreensão dos conteúdos e de expressão do pensamento. Fica submetido à interpretação do mestre, perpetuamente. Por isso, a mesma matéria escolar é leccionada vezes sem conta ao longo dos anos, as expressões adverbiais, os descobrimentos, o 25 de Abril, até se esgotar qualquer ânimo de auto-compreensão. Tudo na escola, no estudante, tem de ser interpretado pelos mestres e reinterpretado pelos mestres. É esse o sentido do exame, agir como máquina ceifeira da iniciativa individual. Só o mestre ausente sabe toda a matéria.

Numa sociedade democrática, o ensino do português pelo método tradicional contém o germe que o faz falhar. Morre por si, sem que possa já alcançar a consciência dos alunos. Falta-lhe o elemento de subordinação do aluno ao professor, à escola, ao sistema político. É o que, muito erradamente, se aponta como falta de autoridade dos professores ou falta de respeito dos alunos. Subordinação, a palavra-chave agora perdida, assente na foice da exclusão. As palavras corrigidas no exame são esquecidas no tropel de um aluno descomprometido, deliciado com a miríade de palavras da rua, da net, do telemóvel. O léxico saiu do controlo da escola, anda à solta, indomável. Por isso, a escola tem de passar a esconder o lápis de censor, os professores têm de tentar descobrir Wally num qualquer texto pejado de erros. A escola não conseguirá resolver o puzzle enquanto não interiorizar que a língua é determinada pelo campo socio-político. E o ensino também.

Seria tempo de apostar no pensamento elaborado, em vez da adivinha ortográfica. Mostrar o erro, confundir grafias não é aceitável do ponto de vista didáctico, seja qual for o método que se perfilhe. Programas de TV do tipo apontado não são apenas contraproducentes: fazem recordar aos adultos a humilhação da aprendizagem no ensino autoritário, trazem insegurança, num país em que 80% da população adulta não completou o ensino secundário. Deixemos que cada um, embora saibamos que sem erudição, possa expressar-se sem receios e aprender pelo exemplo dos melhores, agindo plenamente na civitas. Fale-se e escreva-se sem medos.

Para si, em especial, que teme que tal liberdade descambe em desordem, permita-me que realce que a língua, enquanto sistema, é viva, se renova e recria, sem grandes peias. A ortografia é a força da lei, uma arbitrariedade que continuará em busca de aperfeiçoamento.

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