domingo, 16 de novembro de 2008

A crise na educação segundo Hannah Arendt

As questões relativas à educação não podem ser compreendidas se esquecemos as grandes linhas da história e abandonamos o aprofundamento dos conceitos e dos conhecimentos. Não pode ignorar-se a história recente (por exemplo as passagens administrativas, o cabulanço e o repetido "insucesso" das reformas desde os anos 70), como não pode invocar-se um catastrofismo cuja única saída seja o regresso ao passado. No sistema que vigorou nesse passado, nós não teríamos tido entrada.

A crise na educação, tal como a constatamos hoje, iniciou-se nos finais dos anos 50 na América e no início da década de 70, em Portugal. Hannah Arendt (1906-1975), grande filósofa que inspira divulgadores como Fernando Savater, enquadrou a educação como tema central no conjunto do seu pensamento. A sua máxima "pense sobre o que estamos fazendo" foi recebida pela sociedade americana que, ao contrário da nossa, escuta os especialistas antes de tomar posição sobre cada matéria política.

A obra de Hannah Arendt está publicada em Portugal pela Relógio de Água (A Condição Humana; Entre o Passado e o Futuro; A Promessa da Política) e pela D. Quixote (As Origens do Totalitarismo). Seguiremos neste breve alinhavo as duas primeiras obras, em especial a segunda, que contém o ensaio “A crise na educação”, tomando singelamente os conceitos de Arendt.

Para Arendt, o nosso tempo caracteriza-se pela perda da tradição filosófica, da religião e da autoridade política. A crise na educação é consequência daquelas perdas. A cultura entrou em crise com o advento do indivíduo burguês, submetido ao utilitarismo. Passou a ser uma arma usada para a progressão social. "Esta fuga à realidade através da cultura e da arte" produziu o filisteu cultivado e instruído, que lê os clássicos "movido pelo interesse secundário de se auto-aperfeiçoar" (Entre o Passado..., pp.212,213). Esta mentalidade utilitarista que traduz "uma inabilidade para pensar e julgar uma coisa para além da sua função", é também própria dos "fabricadores que não podem deixar de pensar todas as coisas como meios para os seus fins" (idem, p. 225). A partir do século XIX, os valores culturais passaram a ser tratados como valores de troca, perdendo "a virtude original de prender a atenção e comover" e desembocando na "desvalorização dos valores". A cultura de massas que surgiu após a I Grande Guerra, ao contrário daquela, não deseja cultura mas entretenimento (idem, pp. 214,215). A cultura apodrece, submetida a organização, difusão e modificação com o fim de convencer as massas de que pode ser divertida e até educativa (idem, pp. 217). A atitude de consumo condena a cultura à ruína, não sendo possível acreditar que, pela educação, a sociedade de massas se possa tornar mais cultivada (idem, p. 220).

Desde aquela concepção do mundo, Arendt adverte contra a tendência para "considerar a crise na educação como um mero fenómeno local", dependente de particularidades políticas (idem, p. 184). Na sociedade de massas, a educação sofre com a perda de valores e com o “fracasso do senso comum” (idem, p. 188). Este fenómeno dá-se em simultâneo com a igualdade de oportunidades que a escola passou a ter de garantir, esforçando-se por eliminar “a diferença entre novos e velhos, dotados e não dotados, enfim, entre crianças e adultos, em particular, entre alunos e professores”. Mas destes factores, que não podem explicar a crise, também nascem grandes vantagens (idem, pp. 189,190).

Arendt considera catastróficas três ideias base que, na década de 50, dominaram o ensino americano. “A primeira é de que existe um mundo da criança”, que ela possa ser “emancipada face à autoridade dos adultos”, pois “o que daqui resulta é que as crianças são, por assim dizer, banidas do mundo dos adultos. Elas ficam entregues a si mesmas e à tirania do seu grupo”, contra o qual não podem discutir, nem se revoltar ou escapar. “A reacção das crianças a esta pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil” (idem, p. 192). A segunda ideia é de que a pedagogia se tenha desligado da matéria a ensinar, bastando ao professor ser um pedagogo, em vez de um técnico competente na sua disciplina. “O que daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios meios, como ao professor é retirada a fonte mais legítima da sua autoridade” (idem, p. 192). A terceira ideia perniciosa “é a que se não pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio”. Deixa de se ensinar um saber para se inculcar um saber-fazer, cujo resultado é uma espécie de transformação das instituições de ensino geral em institutos profissionais”, que se revelam “incapazes de levar as crianças a adquirir os conhecimentos requeridos por um normal programa de estudos” (p. 194). A aprendizagem através do jogo afasta artificialmente as crianças do mundo dos adultos.

Arendt esclarece que “A educação não pode desempenhar nenhum papel na política porque na política se lida sempre com pessoas já educadas”. “Preparar uma nova geração para um mundo novo, só pode significar que se deseja recusar àqueles que chegam de novo a sua própria possibilidade de inovar” (idem, p. 187). Em política, a atitude conservadora só pode levar à destruição”, porque “o mundo está irremediavelmente condenado à acção destrutiva do tempo”. Mas o conservadorismo “faz parte da essência mesma da actividade educativa cuja tarefa é sempre acarinhar e proteger alguma coisa — a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o antigo, o antigo contra o novo”. “ A nossa esperança reside sempre na novidade que cada geração traz consigo”... “Destruímos tudo se tentarmos controlar o novo que nós, os velhos, pretendemos desse modo decidir como deverá ser. É justamente para preservar o que é novo e revolucionário em cada criança que a educação deve ser conservadora. Ela deve proteger a novidade e introduzi-la como uma coisa nova num mundo velho” (idem, pp.202, 203).

Por tal motivo, “O domínio da educação deve ser radicalmente separado dos outros domínios, em especial da vida política pública. Não é possível educar adultos e não se deve tratar as crianças como se fossem adultos”. “A função da escola é ensinar às crianças o que o mundo é, e não iniciá-las na arte de viver” (idem, p. 205). “A escola não é, de modo algum, o mundo, nem deve pretender sê-lo. É a instituição que se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo, de forma a tornar possível a transição da família para o mundo” (idem, p. 199). A educação deve cessar quando se entra na idade adulta, embora possa continuar a aprendizagem.

Enfim, na política os adultos são iguais entre si, devendo ser recusada a ingerência autoritária sobre a livre tomada de posição de cada um. Porém, a educação pressupõe a autoridade, que é aqui uma forma especifica da responsabilidade (idem, p. 198). Para compreender o pensamento de Arendt neste ponto é necessário distinguir os conceitos de responsabilidade, autoridade e persuasão. “ A autoridade já não desempenha nenhum papel na vida pública e privada ... ou, no melhor dos casos, desempenha um papel altamente contestado”. No mundo que se tornou inseguro (estamos em 1960), os homens deixaram de assumir a responsabilidade relativamente aos seus filhos (idem, pp. 260, 261). Aqui responsabilidade representa um “cuidar de” no sentido heideggeriano, que Arendt nunca cita. “A autoridade implica uma obediência na qual os homens conservam a sua liberdade” (idem, p. 119). “Quando se usa a força, isso significa que a autoridade falhou”. A autoridade não se confunde então com força, nem com persuasão, que “pressupõe uma paridade. Quando se usam argumentos a autoridade é deixada en suspenso” (idem, p. 106). A persuasão dá-se entre iguais, na esperança de estabelecer um acordo (idem, p. 232).

Separando a educação da vida política, entendendo as crianças como radicalmente distintas dos adultos, “podemos aplicar exclusivamente ao domínio da educação o conceito de autoridade e a atitude relativamente ao passado que lhe são apropriadas mas que, no mundo dos adultos, deixaram de ter validade geral e já não podem pretender voltar a tê-la” (idem, p. 205).

A família está fora do domínio da política. O filho é o produto do amor e sendo como tal lançado no mundo impõe o dever de cuidar, a responsabilidade dos pais. O respeito é “uma consideração pela pessoa, nutrida à distância ... que independe de qualidades que possamos admirar ou de realizações que possamos ter em elevada consideração”. Assim, “a convicção de que só se deve respeito ao que se admira ou se preza, constitui claro sintoma da crescente despersonalização da vida pública e social” (A condição Humana, p. 295). É então forçoso concluir que os pais devem respeitar a escola e fazê-lo sentir às crianças, para que os professores possam educá-las e preparar a sua entrada no mundo dos adultos.

O pensamento de Arendt, apesar das críticas que lhe podem ser feitas, conserva ainda a sua força, sobretudo quando, situado em 1960, constatamos que a geração de crianças sobre a qual se debruçava mudou o mundo em 1968. Devemos reter que o mundo se renova em cada geração e que devemos contribuir para que cada criança seja educada para, quando adulto, entrar no mundo em liberdade. Retomando Arendt: a relação entre os adultos e as crianças em geral não pode ser confiada à pedagogia enquanto ciência especializada. “A educação é o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, ainda mais, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens” (Entre o Passado, p. 206).

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