Não sei bem que outro tempo produziu Júlio Carrapato. Faro, uma cidadezinha solarenga, empurrada para o mar pela força rural que também a obrigava a negociar, com os seus funcionários e quadros distintos, a darem nome às ruas, teve destas coisas únicas que fazem pensar. Olhando-a hoje, não se percebe como terá sido possível - pode dizer-se o mesmo em relação a José Pedro Machado ou a Joaquim de Magalhães. Mas Júlio Carrapato, homem dos nossos dias, parece um continuador dos pensadores à antiga, para os quais o saber valia por si e não como moeda de troca, exercendo a erudição sem peias academistas. Um constante entrelinhar de ditos e uma constante reescrita dos lugares comuns, quebrando-os, reconstruindo-os, em permanente ebulição. O campo de eleição é a política, ainda a das ideologias, as mágoas da luta anarquista, que parece sempre defraudada ou ludibriada, como aquele porta-estandarte, que Júlio refere, a aguentar a bandeira apesar da agravada mutilação que o inimigo lhe provoca.
Júlio Carrapato percorre todos os tempos e lugares, apontando os momentos de heroísmo e os decessos, a ombridade dos crentes e a vilania dos traidores, os povos mártires do stalinismo e do fascismo, a burguesia em busca do mercado perdido, exibindo uma cultura sólida e vasta, embora ferida pela acentuada prolixidade do entusiasmo em que se deixa arrastar.
Espanta mais ainda a panóplia infindável de nomes, de agentes e de agenciamentos que consegue trazer à colação, numa permanente viagem pelo mundo. O pai, a França, Mário Soares, o Brasil, Raul Rêgo, o passaporte, uma trilogia da fuga, a coragem de peregrinar, de se fazer revolucionário. Como disse Deleuze,"a coragem está em aceitar fugir e rejeitar uma vida calma e hipócrita em falsos refúgios", "o que não é ao mesmo tempo fuga e investimento social?" (O Anti-Édipo, p.357). Regressado ao marasmo natal qual o sentido dessa peregrinação? Alcançar todos os cavalos, derrubar todos os avatares, Deus, o estado, a democracia, o oportunismo, apontar sempre para uma aurora crescente que trará a sociedade anarquista. E que não venha: parece que para Júlio Carrapato o que verdadeiramente conta é essa tarefa de dizer os nomes, Lenine, Cunhal, João Freire, Manuel Joaquim de Sousa, Nicolas Walter, Elysée Reclus, Malatesta, e os campos de batalha, a Faixa de Gaza, a guerra civil de Espanha, a África colonial, e mais nomes, Spínola, Maria de Lurdes Rodrigues, Bakunine, Rimbaud.
Tarefa interminável essa de um anarquista empedernido: apontar os nomes dos lugares, dos actores, interligá-los e comprometê-los com a acção. Então, na sua "Edições Sotavento", vai pondo cá fora, pelo menos junto dos amigos, que o mundo rural é enorme, ensaios de política e crónicas acutilantes, de verbo sarcástico à Camilo, ferindo as vaidades de políticos e de todos os que interessam ao combate. Saramago, stalinista redutor, Lobo Antunes, arrogante e indisposto, Manuel Alegre, consciência dorminhoca, entre tantos e tantos relampejos críticos que ora aguçam a curiosidade ora suscitam o sorriso.
Enfim, Júlio Carrapato, uma leitura necessária, nesta cidadezinha que teima em não cair no mar – necessária na razão inversa da concordância.
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
Dizer os nomes, tarefa de um anarquista
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