sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Sá Carneiro - a biografia

Miguel Pinheiro publicou recentemente “Sá Carneiro – Biografia” (Esfera dos Livros, Lisboa, 2010).

O livro está muito bem documentado, com acesso a arquivos pessoais e familiares, embora não indique a fonte de cada passagem ou referência. Representa um esforço enormíssimo - e conseguido.

Sá Carneiro sofrerá de perturbação bipolar (a depressão explica o interregno político de 1975; a euforia fá-lo regressar, conflituoso, em Setembro), chega a  ser acusado pelos próximos de histeria e de comportamentos erráticos, sem estofo ideológico e ultra-direitista (o anti-comunismo seria permanente). Mas tem imbatíveis qualidades de liderança, de ser seguido pelos amigos e de prosseguir incansavelmente o seu projecto pessoal .

O autor procura sustentar que Sá Carneiro batalharia intransigentemente contra a interferência militar na política civil, defendendo uma democracia europeia. Porém, o grosso do livro passa a mensagem oposta: Sá Carneiro esteve mancomunado com Spínola no projecto pessoal deste para fazer um regime à sua imagem (presidente plebiscitado, autoritário, com poderes executivos, conservando o que se pudesse aproveitar do Estado Novo); depois, pelo menos indirectamente, comprometeu-se nos ataques terroristas contra civis e militares, que submergem o Norte em 1975 e 1976. O livro ainda não esclarece como é que um antimilitarista se deixa seduzir pelo general Soares Carneiro, apresentando-o como candidato a presidente da República ultradireitista (mais uma vez, como em 1975, em ruptura com a social-democracia e com as personalidades proeminentes do partido). Continua misteriosa a tragédia da sua morte.

Se se confirmar a versão de Miguel Pinheiro, será necessário rever a história dos partidos no período do 25 de Abril – e tão necessário é rever todo esse período quanto se impõe dizer “adeus Rezola”. Votos para que outros políticos se submetam à biografia, sem subterrefúgios. E Parabéns a Miguel Pinheiro.

domingo, 14 de novembro de 2010

Ordem dos Advogados: o que está em causa

Em Novembro de 1974, o advogado Luís de Carvalho e Oliveira explicava que as profissões liberais tendiam para a proletarização e que o advogado generalista tinha os dias contados. Preconizava então que a Ordem dos Advogados proibisse o exercício da advocacia aos trabalhadores por conta de outrem e que os advogados se associassem para prática partilhada e especializada da profissão.

Não obstante aquele vaticínio, uma parte muito substancial dos advogados continuam até hoje em prática individual e generalista, enquanto uma parte substancial do volume de negócios tem vindo a pertencer a sociedades de advogados. (Generalistas são ainda a maior parte dos juízes).

O generalismo tem a vantagem de permitir a proximidade com as questões pessoais, familiares e de pequena empresa, na busca de soluções conjugadas e adaptadas à vida dos particulares. As sociedades têm a vantagem da subdivisão interna das tarefas, congregando não só várias especialidades, como principalmente diferentes níveis de responsabilidade e de capacidade técnica.

A arma do advogado generalista é a visão ampla dos interesses em causa, se alicerçada no rigor técnico. A sociedade perfilha visões mais economicistas, burocráticas e automáticas (designadamente em sede de honorários), mas, supondo o rigor no topo, não pode assegurar rigor de execução pelas bases.

Nos últimos 15 anos a lei tem vindo a facilitar a correcção dos erros processuais dos mandatários, sobretudo daqueles que põem em crise a expectativa de ganho de causa, a coberto de uma pretensão de verdade. Este caminho legislativo tem propiciado a proliferação de advogados menos competentes, mormente daqueles que as sociedades seleccionam a muito baixo custo para executar serviços básicos: os riscos de falhanço ganham uma hipótese de emenda. Simultaneamente, a lei tem vindo a impor aos advogados em prática liberal um regime fiscal semelhante ao das sociedades (salvo se suportarem os altos custos do regime de contabilidade não organizada). Agrava-se pois a liberalidade e crescem as suspeitas de manobra por parte dos interesses das grandes sociedades.

Na província, talvez para se facilitar aquele caminho, o crescente gigantismo das Distritais tem dado uma abébia burocrática a pequenos grupos de advogados, que parecem compensar "os sacrifícios da abnegação" em prol do colectivo com a projecção da imagem pessoal no mercado.

Nas eleições de hoje para a Ordem dos Advogados (e já desde 1974), está em causa  o modo como as grandes sociedades vão continuar a sua progressão no controlo da advocacia em Portugal. Um processo mais acelerado, com eliminação dos liberais, ou mais mitigado, com conservação da advocacia individual, mais ou menos influenciada pela burocracia de província.

Alguns exemplos: os inadmissíveis atrasos nos laudos de honorários (cerca de ano e meio) afectam os liberais, enquanto as sociedades seguem tabelas e contratos na maioria dos casos; o poder disciplinar nunca afecta as sociedades, e tolhe o exercício liberal ainda que por simples lapso; as baixas remunerações dos tarefeiros das sociedades não são fiscalizadas; o mérito, em especial quando da conquista jurisprudencial de casos concretos, nunca é tomado em conta pela Ordem dos Advogados; o demérito apenas importa em caso de queixa, quantas vezes injusta, do cliente; a mão disciplinar e fiscalizadora da Ordem paira de um modo corporativo (do Estado Novo) e ultrajante para a classe.

Aquele espectro não afecta apenas os advogados. Todos tememos cair na necessidade de ter de escolher um advogado, um tiro no escuro perigoso, mais perigoso ainda se apenas o podermos fazer de acordo com a condição económica de cada um, de cima abaixo na hierarquia de uma sociedade ou no balcão da segurança social. Deve temer-se também que um processo se alongue em incidentes custosos, decididos ao acaso por juízes influenciáveis, desde que um dia as sociedades se lembraram de “matar Alberto dos Reis” e os juízes se deixaram convencer de que assim ganhavam poder de decisão (ganharam poder de confusão, aquele que, segundo a boa teoria, conduz à concentração, isto é, ao poder stricto sensu).

domingo, 7 de novembro de 2010

Estado da Justiça: um caso de livre convicção

Num julgamento, a testemunha hesita e responde confusamente às perguntas da advogada.
A juíza interrompe: "Tudo o que a Sr.ª sabe foi o autor que lhe disse?" A testemunha confirma e a advogada continua a inquirição.
A testemunha mostra-se novamente confusa na descrição de um terreno e a juíza torna a interromper: "como é que sabe a configuração dos terrenos?" Responde a Sr.ª: "disse-me o autor".
A inquirição prossegue. No final, satisfeitas as dúvidas dos advogados, a juíza chama a testemunha, mostra-lhe a planta do terreno, descreve as construções e pergunta à testemunha: "de que lado está a casinha?"
A testemunha esclarece que a casinha está do lado do réu e adita pormenores que o comprometem. A juíza: "como sabe?" E a testemunha: "porque tenho conhecimento".
"Ah", diz a juíza, "a Sr.ª pode ir à sua vida".
Quinze dias depois dá por provada a versão da testemunha, aliás idónea e convincente.

Moral da história: assista a julgamentos, vai ver que se diverte.