sexta-feira, 29 de maio de 2009

Fuzeta: das chotas aos bilros

Em história ou sociologia, a investigação deve ter como ponto de partida a identificação dos sinais das culturas, técnicas, etnias e relações intersociais presentes numa dada localidade, bem como a compreensão dos mecanismos de transmissão dos conhecimentos entre grupos e de geração em geração, a hierarquia das funções e posições de poder, as próprias vivências das comunidades. Numa aldeia espera-se encontrar alguma homogeneidade cultural, reduzida divisão do trabalho, dependência de escassas fontes de subsistência. Espera-se crescente complexidade na medida do aumento da dimensão dos povoamentos. Porém, importa ter presente que, sobretudo nas comunidades antigas, a dimensão pode não ser critério bastante. Num mesmo lugar podem encontrar-se pequenos grupos culturalmente distintos, dominando saberes e técnicas diferentes, e assim partilhando os mesmos espaços de modo não concorrencial.

É (foi) o caso da Fuzeta. Pequena aldeia de pescadores, não merece menção nas fontes históricas senão a partir do século XVIII. Sobre a antiguidade da Fuzeta leia-se o artigo anterior deste blogue “contribuição para o estudo do burguel”. A presença de uma população piscatória é evidente. Desde as corografias do século XIX, repete-se que o lugar evoluiu da ocupação em cabanas para a construção em alvenaria. Todavia, esta visão afigura-se simplificadora.

A Fuzeta tem uma localização privilegiada sobre um maciço calcáreo altaneiro frente a uma barra da Ria Formosa, entretanto deslocada. As potencialidades económicas são muito diversificadas. Desde logo as actividades ligadas à agricultura, em especial a produção de frutos secos e de vinho para exportação, contando com escoamento pelo porto de mar, que atingiu o expoente no final do século XIX, mas que é referenciada (figueiral) no foral de Faro. De valia exportadora semelhante, a produção de sal parece antiquíssima, pelos vestígios de contenção dos terrenos da ria, jogando entre a conquista de terras agrícolas e o aproveitamento salineiro. Tiveram forte expressão as actividades recolectoras dos produtos naturais da ria, algas, peixes e mariscos. A pesca local, na ria e na proximidade da costa, justificou o assentamento de pequenos grupos de pescadores. As armações de atum, dependentes de grandes concessões públicas a grandes proprietários ou, no século XIX, a empresas específicas, arregimentavam grandes grupos de trabalhadores na época das campanhas. Distinta daquelas eram a pesca de alto mar e a actividade de transporte marítimo.

Cada actividade empregava diferentes populações, com carácter sazonal. Para a apanha de frutos, de algas, arraial de atum e outras actividades recolectoras eram necessários trabalhadores indiferenciados, especialmente mulheres e crianças. Para as salinas, reservavam-se os empregos com especial cuidado para famílias tradicionalmente ligadas àquela actividade, os marnotos, por receio de que as técnicas de exploração fossem transmitidas a estrangeiros, protegendo-se assim uma das principais riquezas do reino. A pesca de alto mar exige competências que não se coadunam com uma população ligada à pesca ribeirinha. A seca de peixe, produção de peixe fumado ou em conserva, que atingiu o auge com a difusão da “arte nova” de apanha costeira da sardinha exigiam pessoal especializado. Por outro lado, a intensa pirataria, que apenas abrandou a partir de 1830 quando os franceses conquistaram a Argélia, as epidemias recorrentes, em especial de cólera (estão registadas as devastações de 1833 e 1855-1856, mas a cólera reincidiu até meados do século XX), os sismos, as guerras, sobretudo as invasões francesas, e os grandes fluxos migratórios, para Espanha ou América, fizeram partir ou trouxeram renovadas levas de gentes. Pequenos grupos refugiaram-se também aqui, vindos pelo Mediterrâneo, mantendo as suas tradições, aproveitando-se da natureza aberta, abundante e carente de mão-de-obra.

As políticas de povoamento, de incremento das pescas e da actividade marítima sustentaram concessões para salinas, armações de atum, mas também de companhias de pesca e de conserva. Nesse âmbito, diversas populações piscatórias foram aliciadas a instalar-se na Fuzeta, vindas de zonas pesqueiras da costa Norte, estando documentadas migrações do distrito de Aveiro. Eram pescadores que dominavam as artes de velejar e das redes, formando companhas organizadas. O conjunto daquelas actividades era igualmente controlado pelos poderes públicos. Os pescadores estavam sujeitos ao “compromisso marítimo”.

Não é possível seguir a evolução destas populações, senão, como se referiu, desde o século XVIII. Antes da fundação da paróquia, um simples lugar não merecia referência nas fontes e muito menos mereciam relevo as pobres gentes locais. No século XX, encontramos distintos grupos populacionais. Os pescadores das companhas de alto mar, dos caíques e das traineiras, que velejavam de Larache a Lisboa e pescavam bacalhau na Terra Nova, formavam o núcleo principal, habitando nas casas de açoteia do núcleo urbano. Os pescadores pobres, que moravam nas zonas ribeirinhas ou em cabanas no areal ou na ilha, parecem distintos daqueloutros, empregando-se na pesca local e usando artes arcaicas. Os proprietários rurais e, nas franjas da povoação, camponeses sem terra formavam um grupo pouco numeroso, mas com expressão enquanto empregadores sazonais. A população ligada aos poderes públicos, aos serviços ou com bens de raiz formavam o topo da hierarquia da Fuzeta. Estes grupos distinguiam-se pelo sotaque, pelos modos de vestir e de conviver e tinham, todos eles, a sua própria estratificação em função dos rendimentos. Sofriam da segregação social, dos terrestres sobre os marítimos e camponeses, dos marítimos das traineiras sobre os das artes arcaicas e montanheiros. Destes sobre os meramente recolectores.

Tal como nos principais núcleos piscatórios de Portugal (Matosinhos, Nazaré, Sesimbra, Portimão), após o 25 de Abril a maioria da população votou no Partido Socialista, alteou as casas, ocupou os terrenos vagos com construções, desrespeitou a traça urbana tradicional, mudou várias vezes de mobília e conservou a sua qualidade de trabalhadores honrados, sem preocupações de ascensão social. É curiosa a comparação entre aqueles núcleos urbanos, como é sugestivo o distinto comportamento da gente rural, os montanheiros, que preferiram votar PSD, aumentar o património, ascender à política.

Um singelo traço une as populações piscatórias referidas: a tradição dos bilros, complexa arte de tecer rendas de seda, que percorre os lugares ribeirinhos desde La Corunha, na Galiza, até precisamente à Fuzeta – e que se disseminou por terras do Brasil. Praticada por mulheres para acréscimo de rendimento doméstico ou para delícia do lar, por vezes conjugada com a criação do bicho-da-seda pelas crianças da casa, como mandou ensinar o Marquês de Pombal, revela a persistência de uma cultura uniforme ou com a mesma origem. Se ajuntarmos as práticas tradicionais da pesca, que levava os pescadores da Fuzeta para os mares da Terra Nova, bem como os de Ílhavo, recrutados de entre as famílias com tradição da pesca de alto mar, podemos concluir que se trata de uma mesma cultura.

Distintos destes pescadores eram aqueles que viviam em cabanas de colmo (na ilha dá-se o estorno, gramínea empregue na construção das cabanas, mas não em quantidade suficiente para satisfazer a procura, pelo que eram empregues outras variedades; por isso, parece preferível dizer cabanas de colmo). Cabanas deste tipo eram alçadas por todo o território rural, com ligeiras modificações, habitualmente utilizadas por populações sazonais ou pobres. Todavia, na Ria Formosa, os moradores destas cabanas eram, no geral, pescadores de artes de pesca arcaicas, como a merjona. Não conviviam com os pescadores do bacalhau ou da arte da caçada e foram muito dificilmente assimilados após o 25 de Abril, podendo dizer-se que eram socialmente discriminados. Empregavam um sotaque mais lento e pausado, com prolongamento da última sílaba, enquanto o sotaque dos restantes pescadores era acelerado e tendia a cortar a penúltima ou última sílaba. Na fuzeta a população em cabanas terá tido fraca expressão, quando comparada com as proporções em Santa Luzia e em Cabanas de Tavira, mas tratar-se-ia do mesmo povo e da mesma cultura, apresentando idênticos traços.

Na Fuzeta, as gentes das cabanas eram epitetadas de “chotas”, termo que suscitou larga interrogação, embora esteja em desuso. Após alguma pesquisa e constatando que a palavra chota apresenta 7 denotações diferentes, em vários países, afigura-se-nos que a palavra deriva de “chotte”, termo francês para choupana, e que, pelo uso popular em tom depreciativo, derivou para chota. Passou também a designar as pessoas das cabanas, em vez destas propriamente ditas.

Talvez não seja já suficientemente abalizável um estudo que aborde os diferentes sotaques que se empregavam na região: apenas na Fuzeta, 3, que somados aos de Moncarapacho, Olhão, Tavira, Cachopo faziam uma miríade de falas que representavam culturas e povos distintos. O grande feito da democratização após Abril de 1974 consistiu na progressiva integração destas gentes, com abolição das discriminações sociais: anteriormente, um pescador não podia entrar na associação recreativa dos terrestres, um montanheiro não podia casar com a filha de um pescador, um pobre não tinha acesso aos cafés. A cultura tradicional de cada grupo permanecia na memória colectiva através destes sinais plenos de arcaísmos e de raízes, ora quase perdidos.

O grande sismo


Cresce o pressentimento de que a reconstrução urbana das cidades aguarda os efeitos de um próximo grande sismo. A geologia, mal amada pela política e pelos éticos, tem estado, desde as suas origens oitocentistas, relegada para um domínio de oclusão e de sombra. As descobertas que produz tornam-se públicas com décadas de atraso, mas não são desconhecidas da alta esfera dos decisores. Foi assim com a teoria da deslocação das placas continentais, que esteve proibida durante quarenta anos. É hoje assim com as tecnologias que detectam o risco sísmico, também falsamente escamoteadas. Não se fazem ensaios geológicos sérios e profundos, apesar de disponíveis, mas sabe-se que poderá estar próxima a eventualidade de um tremor de terra de escala destruidora. Turquia, Itália, provavelmente Portugal. É neste quadro que alguns técnicos ligados ao aparelho político gracejam perante a urgente necessidade de recuperar os centros urbanos e alguns subúrbios das nossas maiores povoações, que apresentam um calamitoso estado de conservação. É ainda naquele contexto que os bombeiros e a polícia fazem exercícios absolutamente ridículos, denominados de protecção civil.


Uma nova ordem política poderá ser lançada em caso de efeitos sísmicos catastróficos. Não temos a pujança dos grandes países, que encontram em si próprios os recursos para fazer frente às calamidades. Nota-se aliás uma política consistente, persistente e conjugada de construção de edifícios públicos seguros ao redor dos maiores núcleos urbanos. Pavilhões desportivos e escolas para realojamento da população afectada, teatros para quartel-general das forças de intervenção, hospitais com capacidade de salvamento, universidades para realojamento das classes superiores, redes circulares de estradas que ligam aqueles equipamentos, etc. O estado prepara-se para resistir aos efeitos de um eventual terramoto.


Entretanto, a maioria da população vive em edifícios incapazes de resistir a um sismo superior a 6 graus na escala de Ritcher. Não se espere que seja possível a responsabilização dos construtores: os eventuais crimes estarão prescritos e os que não o estiverem não terão responsáveis com meios para suportar as indemnizações. Assim o permite a actual lei. Todavia, essencial seria que se tomassem medidas para salvaguardar as populações. E são essas medidas que faltam, estranhamente. Na actual crise, uma política de verificação e correcção de defeitos poderia contribuir para melhorar a actividade de algumas empresas e manter empregos.


Em vez de se perder tanto tempo a discutir a conjuntura, interroguemo-nos sobre um cenário de ruptura que deite por terra não só as casas, como o regime democrático.

Pensamentos do Minesweeper

1. O progresso do conhecimento individual é decrescente
2. A capacidade de investigação auto-limita-se pelo sucesso
3. Reflectir antes de agir melhora o resultado
4. A reflexão depende de um estado de espírito adequado
5. A reflexão cansa
6. O cansaço provoca o erro
7. O estado não reflexivo vicia
8. Quanto mais difícil é a aprendizagem, mais satisfaz o que se sabe
9. A ignorância joga à sorte
10. A ignorância desconhece o erro
11. A acção irreflectida é sempre errada
12. Sorte é o resultado favorável da acção irreflectida; azar, o desfavorável
13. A sorte é transitória
14. A sorte provoca a audácia e esta o insucesso
15. A premonição avisa da falta de método
16. Não é possível validar a premonição antes da ocorrência do facto premonitado
17. O método tende a adaptar-se às premonições
18. O método informal socorre-se do número três
19. O desconhecimento da matemática impõe o método
20. O método transforma a ignorância em incerteza e o azar em risco
21. A multiplicação é um milagre
22. A descoberta é ocasional e surpreende
23. O fracasso é instigado pela intuição da derrota
24. Os erros formados no processo de aprendizagem não se corrigem pelo trabalho nem pela experiência
25. Não se aprende com os erros
26. A experiência dos erros impõe a reaprendizagem
27. A rotina e a aplicação repetida nascem dos erros da aprendizagem
28. Não se aprende pelo trabalho
29. O trabalho prejudica a aprendizagem

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Três vivas ao Dr. Gama Barros!

I
Não que precise deles ou que releve de algum modo o apoio moral, cumpre-se apenas um dever de cidadania em defesa dos primados básicos da convivência em sociedade. Três vivas ao emérito acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que mandou fazer a elementar justiça a uma criança sujeita ao perigo de ocupação privada (ocupação no sentido contido nos arts 1318 e seguintes do Código Civil). Para saber do direito que se aplica ao caso da menor Alexandra, que foi reconduzida à família e à Rússia natal, aconselha-se a leitura do esmerado e erudito acórdão, na versão original e não nos apartes inventivos que um jornalismo de ralé tem vindo a propagar (http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3f15b684ad7384368025744a004f8834?OpenDocument&Highlight=0,864%2F08-2). Toda a linguagem do acórdão é técnica, apuradamente jurídica e incisiva. Só quem não abriu o dicionário pode atacar o acórdão pelo emprego do adjectivo “serôdia” que qualifica a falsa maternidade da ama. E ama, perdoe-me o ilustre juiz que comenta sentenças na televisão, é o termo técnico do caso, não família de acolhimento, pois esta apenas contextualiza aquela.

Como sabem todos aqueles que já tomaram o gosto ou o fel da crueldade do estado e da sociedade mundana, nada mais temos que o sangue que nos corre nas veias. Tudo o mais pode ser despojado, ainda assim continuamos a ser. Retirado porém o vínculo paterno/materno, perdida a nacionalidade, imposto artificialmente um novo nome e um novo passado, feito um corte radical com aqueles que são nossos, estamos então no mais profundo abandono. As primeiras vítimas desta desqualificação, desterritorialização e amordaçamento espiritual são os pobres.

Alguns interesses estranhíssimos pretendem lançar sobre os pobres uma nova incapacidade civil: a do direito à família, à filiação, à convivência fraternal. A primeira vítima é a criança de tenra idade, único bem de valor que os pobres podem trazer à sociedade de hoje; seguem-se-lhe os pais, os avós, os irmãos, que perdem o elo consanguíneo. Num mundo em que tudo está submetido à lei da oferta e procura, esgatanham-se alguns pela apropriação dos filhos dos indigentes. Todavia, um dever fundamental do estado de bem-estar social é o de proteger os desvalidos. Este dever claudica quando uma criança é retirada à sua família e entregue a uma empresa de criação de crianças (algumas privadas, como o Refúgio Aboim Ascensão), com os seus interesses mesquinhos de holofote e de empregabilidade sustentada pela indigência a que visam acudir. Claudica também quando uma pessoa se arvora titular de direitos de paternidade sobre uma criança, contra a vontade dos seus pais naturais e sem prévia sentença devidamente fundamentada emitida pelo estado (porque será essa pessoa melhor adoptante que qualquer outro? E quantas há disponíveis para acudir à menor? Centenas!).

Lembram-se da sentença de Salomão? Lembram-se da última notícia sobre um processo judicial em que se discutia a propriedade de uma gato abandonado que havia sido tomado por uma “família de acolhimento”? Lembram-se do último crime de homicídio violento cometido por um jovem sobre os pais adoptivos quando descobriu, por fim, que havia sido raptado da família natural? Lembram-se da última vez que mudaram de opinião? Façam um favor ao direito e aos valores fundamentais da ética: não dêem opinião fácil.

Confrontado com a corrente contra-informativa que de há alguns anos manobra a opinião pública sobre o direito de família e a protecção de menores, sujeito às consequências maléficas de um grupo de pressão organizado e poderoso, que chega aos mais altos poderes do estado, um homem teve a coragem de aplicar o direito, todo o direito internacional (leiam a convenção dos direitos da criança). E fê-lo por dever de ofício, por absoluta abnegação, por respeito aos seus poderes de independência. Este juiz merece três vivas. Salvé Dr. Gama Barros!

Leitor: antes de invocares o amor e a compaixão, responde: o que é o ressentimento? Antes de tomares partido no caso de uma criança, interroga-te: haverá sombras que desconheço?

II
Um dos maiores fracassos do nosso tempo, da tecnologia e da abundância, é o da perpetuação e até o agravamento da dicotomia entre ricos e pobres. Alguns vivem na indigência; outros, alienados pelo niilismo, tendo esgravatado lucros nas travessas, tentam projectar essa baba de micro-riquismo sobre uma criança alheia, que crêem moldável por meio de caprichos. O liberalismo não se limitou a extinguir a ignominiosa “roda”, pressupôs também uma sociedade tecnicizada em que todos os cidadãos seriam tratados por igual e em que o Estado assumia a responsabilidade da protecção do nascimento no seio da família. O moderno impulso do instituto jurídico da adopção resulta do falhanço daquele ideal de sociedade e do seu último assomo, o Estado de bem-estar social. Não vale a pena escamotear-se a triste realidade das clientelas e das influências que cirandam a política e os mecanismos da adopção, com o seu hierarquizado cortejo de dignitários morais e as suas veladas portas de sésamo. O que importa compreender é que forças se movem com tais interesses, que crenças se deixam moldar e por que têm vindo a obter tão forte adesão as campanhas de propaganda em seu favor.

Ressurge um evidente atavismo entre as massas populares, que repristina a roda e a política de adopção e sustento dos expostos (assim se designavam as crianças abandonadas até à I República). A criança abandonada passava de imediato à disposição dos poderes públicos e, se identificada, a mãe era punida e perdia a maternidade. Continua…

quarta-feira, 27 de maio de 2009

O princípio da porta aberta

Denomina-se impropriamente "princípio da porta aberta", por exemplo, a política de abertura da União Europeia à admissão de novos estados membros (que está em oposição com o princípio do aprofundamento da democraticidade interna e autonomia supranacional da União) ou, na administração pública, a faculdade de opção por um sistema operativo informático (Windows, Linux, etc.). Diz-se impropriamente pois, no primeiro caso, trata-se de uma política de expansão ou alargamento e, no segundo caso, da proibição do monopólio.

O conceito emprega-se propriamente para designar um dos elementos estruturais do cooperativismo reformista que consiste na permanente disponibilidade das cooperativas para admitirem novos membros, sem qualquer discriminação à entrada ou à posterior disposição dos bens, actividades e interesses. É também conhecido como princípio da adesão voluntária e livre.

Tal modelo de cooperativa, controlado por uma união internacional de cooperativas e recebido directamente pela nossa constituição (quer dizer que é proibida a constituição de cooperativas que não obedeçam aos 9 princípios que sistematizam aquele modelo) opera, em primeira linha, a separação entre a propriedade dos bens de produção e os cooperadores, que apenas desfrutam deles na medida do seu trabalho ou contribuição, perdendo a qualidade de cooperadores quando deixam de poder contribuir. O princípio da porta aberta, conjugado com os da entreajuda e gestão democrática, opera, em segunda linha, a desconstrução do direito do cooperador à titularidade da posição e dos benefícios que tenha conseguido granjear, obrigado que está a compartilhar com os demais, incluindo os novos membros, os meios de produção e os respectivos ganhos.

Assim o cooperador, que está despojado da propriedade, pode também ser despojado dos direitos que tem vindo a adquirir e, por fim, pode mesmo perder o vínculo à cooperativa. Clama-se que se trata de um direito de ordem superior, que escapa à voracidade capitalista e contribui para a plena realização pessoal dos cooperativistas, os quais, quando não satisfeitos com os ganhos, devem encontrar consolo nas acções fraternas. No entanto, a propriedade dos bens pertence à cooperativa, tomada como pessoa jurídica, que actua no mercado em igualdade de armas com as empresas capitalistas, até que, pelo reiterado sucesso do cooperativismo e constante amplitude do sector, acabará supostamente por dominar todo o mercado e satisfazer o ideal do homem produtor não especulativo.

Apesar da forte propaganda a que foi sujeita, durante mais de um século e do apoio do estado, o cooperativismo não tem passado da rampa de lançamento, enquanto as cooperativas dificilmente superam o envelhecimento dos seus membros. O princípio da porta aberta tem sido contornado de diversos modos: limitação territorial da admissão, especialização, separação entre a qualidade de cooperador e a de trabalhador, este protegido pelas leis de trabalho, pura e simples negligência, etc. As cooperativas que têm perdurado são precisamente as constituídas no Estado Novo, sob controlo do poder político, dedicadas à transformação e comercialização de produtos agrícolas, em especial as vinícolas (Cooperativa de Reguengos, do Redondo, etc.). Aqui o carácter pessoal dos cooperadores é desprezível, interessa sim que possuam vinha na área demarcada, que por si limite o número de membros.

Um dos temas deste blogue, precisamente porque estudamos o estado, será o cooperativismo, nos diversos modelos. Importa apurar como se dá a contradição de as cooperativas de gestão não democrática e que não obedecem ao princípio da porta aberta subsistirem, enquanto as que se abrem aos valores de António Sérgio tendem a afundar-se.

No que releva para esta série de artigos sobre a porta aberta é a tendência do estado para impor um princípio geral de porta fechada, reservando a porta aberta para sectores muito segmentados em que sobrepõe medidas de fiscalização e controlo. Na verdade, quando o estado diz porta aberta quer dizer porta fechada (na publicidade e no spam, fechada à privacidade; na União Europeia, fechada à democratização interna, nas cooperativas, fechada ao enriquecimento pessoal dos cooperadores). Encontramos assim uma linha geral, segura, sustentada do estado contra a cultura que lhe pode fazer frente - tal como indicámos no artigo "a política da porta fechada".

Sectores de porta aberta

Sobre alguns sectores da vida privada, o estado mantém políticas de porta aberta. Na publicidade domiciliária, por correio, distribuição livre, telefone ou e-mail, a regra geral e supletiva é a da porta aberta. O consumidor tem de adoptar medidas activas, previstas na lei, para tentar evitar a intromissão. Ainda assim tais opções podem não ser respeitadas pelos distribuidores, sem que o estado disponha de meios coactivos que actuem em tempo útil. A caixa de correio atulhada com publicidade pode deixar de receber uma notificação importante, a que o estado confere plena eficácia. Será ingenuidade interpretar-se tal fenómeno como consequente da ponderação de interesses dos publicitários face aos particulares. O que releva, pelo contrário, é o jogo da publicidade, movimento global do mercado ( e não em exclusivo das empresas que a promovem), assoberbamento e obnubilação da informação, criação de canais de contacto expedito, subordinação do particular securitário ao controlo do estado.

Neste quadro, impõe-se compreender as motivações dos estados no seu conjunto quando manifestam resistência à adopção de medidas para proibir o spam, os cavalos de Tróia e os sites intrusivos (proibir ou limitar, seriar). Todas as comunicações, pela net, por telefone, estão sujeitas a registo, que pode ser consultado por ordem de um juiz ou por simples vontade de um operador de telecomunicações. Parece ocorrer uma contradição entre uma e outra medida. Mais uma vez se impõe a política da porta fechada na dupla vertente: protege-te, invado-te.

A política da porta fechada

Empregamos aqui o termo política como processo de aculturação conduzido de modo organizado por uma entidade exterior sobre uma comunidade cultural subjacente. Aculturação denota aqui dominação, subordinação, com vista a modificação de uma cultura. Ao resultado de tal política chamamos simplesmente dobra, estrato quebrado sobre si próprio.

Sobre as duas culturas referidas no artigo anterior incide uma acção concertada do estado. A cultura da porta aberta é reprimida numa dupla vertente: fechamento exterior para evitar a invasão externa (furto, devassa, intromissão autoritária); fechamento interior para obstar à desobediência interna (fuga, relacionamento não consentido, devassa). A cada uma destas vertentes corresponde uma sanção, aplicável em caso de violação da regra seguritária da porta fechada. A invasão externa tem por desiderato, as mais das vezes, a impunidade do invasor ou a pena irrisória. A desobediência interna encontra a plena aceitação social, tratando-se de adultos, ou a perda do familiar em fuga, tratando-se de menores. Aquela por meio do relato e difusão pública da visão que o desobediente alimenta sobre os ex-coabitantes, estas por meio da aplicação de medidas de protecção pública.

O estado impõe um especial dever de cuidado, traduzido numa política de porta fechada. As regras anquilosadas do Código Penal (arrombamento, lugar fechado, segredo guardado, privacidade protegida) têm de verificar-se para que o intruso encontre plena punição (nos julgamentos gasta-se mais tempo a apurar se a porta estava aferrolhada e de que modo, se as pessoas estavam tapadas, se os objectos escondidos, do que a apurar a intenção do invasor e o efeito que produziu), correndo-se mesmo o risco da impunidade por falta de encerramento adequado. Por outro lado, as crianças devem estar presas de modo tal que não possam escapulir-se por distracção dos pais, que, num exemplo recente, dormiam (nesta eventualidade, a criança pode ser detida por tempo indeterminado e sujeita a medidas coactivas ordenadas pelos tribunais, podendo mesmo ser condenada à perda da família, do nome e dos laços naturalísticos, com apropriação subsequente por terceiros, sob pretexto da lei de protecção de menores).

Cada indivíduo compreende com facilidade que deve fechar-se, fechar os seus. O estado não o protege, se não adopta medidas de segurança. Porém, a cultura da porta fechada não resiste ao estado. As acções de perseguição, fiscalização e apreensão não têm barreiras privadas. A penhora de bens, a busca domiciliária, a escuta electrónica, a detenção são sempre possíveis e, quando acontecem, são sempre plausíveis. Note-se que, salvo nos casos de espionagem (frequentes em demasia), as restantes medidas dependem de um ordem judicial ou de um pressuposto judicial. A plausibilidade ou adequação à lei é pois ostensiva, ocorrendo uma presunção de legalidade que a eventual constatação de falta de fundamento, ocorrendo no futuro, não pode já eliminar.

O estado modifica e subjuga o comportamento dos cidadãos, levando-os a fechar-se, enquanto abre e amplia os seus poderes de intrusão por via legal. Uma ou outra destas vertentes não será necessária; a imposição de ambas em simultâneo revela um dos aspectos fundamentais da acção do estado: obediência à lei que ele próprio cria e impõe, ou seja, desrespeito pela cultura de base, subordinação ideológica dos indivíduos. Veremos como se processa.

Porta Aberta vs Porta Fechada

Duas culturas: uma, dos grandes espaços planos (mare liberum, desertos, estepes) onde se movimentam comunidades nómadas, semi-nómadas, guerreiras; outra, dos espaços estriados (mare clausum, povoados serranos) onde se alicerçam forças territorializadoras de presores. Esta, pode ser representada pelo castelo medieval; aquela, pelo burgo dos arrabaldes. Ambas coabitam sob o mesmo domínio do estado, essa entidade superior que merece profundo estudo. Ambas se deixam impregnar pelo mecanismo capitalista de distribuição da riqueza e de organização das povoações. E ambas resistem, a seu modo, à inovação. Os muros do castelo estendem-se em círculos sobre o arrabalde, até que, pela grandeza, se tornam desnecessários. O muro do castelo hoje é a linha imaginária que define o território de cada estado ou o limite de cada cidade.

Duas comunidades: uma, de portas e janelas voltadas para a rua, para o quintal, para o horizonte, que dorme de porta aberta e conta com os vizinhos em cada momento; outra, enclausurada, com torres de vigia, pátio privado, ferrolhos. Esta, disputando rivalidades com os vizinhos, desconfiada e às vezes traiçoeira; aquela, comunitarista, defendendo-se em bloco reactivamente. Ambas sujeitas a dobra, pelo duplo laço do estado e da máquina económica.

Duas políticas de repressão do furto: uma, absolutamente intolerante em relação aos atentados ao espaço privado da casa ou aos bens pessoais, infligindo penas de afastamento da comunidade, de degredo, consagrando o respeito pelo alheio como fundamento da vida em comum; outra, punindo os infractores em função do valor do furto, fazendo-os retribuir o prejuízo patrimonial mas consentindo na sua ressocialização. Esta, a política da cultura do presor em relação ao castelo murado do vizinho, pois, quanto a ele próprio, não abdica da vingança privada. Aquela, a política do clã, em que a vingança se confunde com a justiça pública.

Parece curioso constatar-se como o estado reforça o seu poder e se propaga até o interior de cada família, de cada indivíduo, jogando com os valores de cada uma daquelas culturas. Diz à primeira: convive com o que furta, mas protege-te; diz à segunda, protegemos-te, mas abdica da justiça privada. Nas mais ricas vilas turísticas da Europa, a noite cai como no subúrbio pobre da grande cidade. Trancam-se as portas, liga-se a vídeo-vigilância, não se circula na rua, o furto e a violência podem acontecer a qualquer momento. Os agentes dos crimes aguardam que se perca a esperança na sua ressocialização. Os tribunais penais regulam os fluxos da criminalidade em voz passiva.

O Código Penal é a mais forte expressão da política do estado sobre aquelas duas culturas e suas gentes - até inventou o "furto formigueiro". E diz: fecha a porta, protege-te, teme o teu vizinho, desconfia, não circules à noite. A noite, finalmente com fantasmas!

Impõe-se perguntar: que perdes quando temes? Que ganha o estado com o teu temor?

Os clientes do BPP na nova ordem política

Cena que se retém: os clientes do BPP em manifestação junto à sede do banco, empunhando cartazes e brandindo palavras de ordem. Homens da classe média alta que perderam não apenas os créditos elevados que confiaram ao banco, mas que perderam também – e é este o aspecto que interessa reter – o acesso condigno a informações, a instalações, ao diálogo, enfim, a todos os elementos que caracterizam a expectável gestão bancária dos clientes. A cena apresenta condições semelhantes, aliás, à dos trabalhadores de uma empresa em lay-off ilegal.

Crê-se que tal acontecimento anuncia uma nova ordem política e social. Os indivíduos, ainda que em grupo e independentemente da classe social a que pertencem, estão a perder capacidade de influência, perante um poder tecnocrático que actua num plano maquínico, desdobrado por diversos aparelhos (imbricação privado/público, estado desconcentrado (BP, CMVM, governo, tribunais, polícia, comunicação social), que reelabora e reinterpreta as leis tomando-as como fim último da sua própria actuação. Trata-se de uma administrativização da actividade privada e dos interesses dos particulares, que despoja os indivíduos do direito de participação e que consegue mesmo constituir uma entidade credor/cliente como titular de crédito distinta da pessoa concreta, do cidadão. Uma administração anunciada por Kafka no genial “O Castelo”.

Este novo modo de funcionamento da política – tecnocracia autista que se auto-justifica pela utilização propagandística dos meios de comunicação social – não pode ser reconduzido à responsabilidade deste ou daquele partido, deste ou daquele governo, pois detecta-se já em muitos estados democráticos da Europa, na própria União Europeia, e nas mais diversas áreas de actuação (finanças, ensino, protecção de menores, regulação das actividades profissionais, funcionalização de profissões independentes (juízes, jornalistas, deputados), medidas de saúde pública, declaração de guerra, etc.). Nos mais diversos sectores se nota este desprendimento entre indivíduo/cidadão e sujeito de deveres/titular de direitos, com perda de intervenção dos interessados. A resolução dos problemas é tomada numa perspectiva macro, que remete para a política, ou seja, para os órgãos de soberania e para os técnicos que os enformam.

O caso do BPP é paradigmático pois, sendo um banco privado sob intervenção pública, o litígio não pode ser resolvido de modo útil pelos tribunais civis (um dos direitos constitucionais fundamentais (art. 20) está aqui prejudicado) e, não prestando os actuais gestores informações relevantes, os clientes ficam relegados à expectativa da decisão política: o agrimensor de Kafka à espera de resposta da administração do castelo, isto é, o Código de Procedimento Administrativo metido num saco.

Parece então que está ocorrendo uma alteração do modo de funcionamento da máquina do estado.

domingo, 24 de maio de 2009

Fuzeta: das chotas aos bilros

Em história ou sociologia, a investigação deve ter como ponto de partida a identificação dos sinais das culturas, técnicas, etnias e relações intersociais presentes numa dada localidade, bem como a compreensão dos mecanismos de transmissão dos conhecimentos entre grupos e de geração em geração, a hierarquia das funções e posições de poder, as próprias vivências das comunidades. Numa aldeia espera-se encontrar alguma homogeneidade cultural, reduzida divisão do trabalho, dependência de escassas fontes de subsistência. Espera-se crescente complexidade na medida do aumento da dimensão dos povoamentos. Porém, importa ter presente que, sobretudo nas comunidades antigas, a dimensão pode não ser critério suficiente. Num mesmo lugar podem encontrar-se pequenos grupos culturalmente distintos, dominando saberes e técnicas diferentes, e assim partilhando os mesmos espaços de modo não concorrencial.
É (foi) o caso da Fuzeta. Pequena aldeia de pescadores, não merece menção nas fontes históricas senão a partir do século XVIII. Sobre a antiguidade da Fuzeta leia-se o artigo anterior deste blogue “contribuição para o estudo do burguel”. A presença de uma população piscatória é evidente. Desde as corografias do século XIX, repete-se que o lugar evoluiu da ocupação em cabanas para a construção em alvenaria. Todavia, esta visão afigura-se simplificadora.
A Fuzeta tem uma localização privilegiada, num ponto altaneiro junto a uma barra da Ria Formosa. As potencialidades económicas são muito diversificadas. Desde logo as actividades ligadas à agricultura, em especial a produção de frutos secos e de vinho para exportação, contando com escoamento pelo porto de mar, que atingiu o expoente no final do século XIX, mas que é referenciada no foral de Faro. De valia exportadora semelhante, a produção de sal parece antiquíssima, pelos vestígios de contenção dos terrenos da ria, jogando entre a conquista de terras agrícolas e o aproveitamento salineiro. Tiveram forte expressão as actividades recolectoras dos produtos naturais da ria, algas, peixes e mariscos. A pesca local, na ria e na proximidade da costa, justificou o assentamento de pequenos grupos de pescadores. As armações de atum, sujeitas a grandes concessões públicas a grandes proprietários ou, no século XIX, a empresas específicas, arregimentavam grandes grupos de trabalhadores na época das campanhas. Distinta daquelas eram a pesca de alto mar e a actividade de transporte por mar.
Cada actividade empregava diferentes populações, com carácter sazonal. Para a apanha de frutos, de algas, arraial de atum e outras actividades recolectoras eram necessários trabalhadores indiferenciados, especialmente mulheres e crianças. Para as salinas, reservavam-se com especial cuidado os empregos para famílias tradicionalmente ligadas àquela actividade, os marnotos, por receio de que as técnicas de exploração fossem transmitidas a estrangeiros, protegendo-se assim uma das principais riquezas do reino. A pesca de alto mar exige competências que não se coadunam com uma população ligada à pesca ribeirinha. A seca de peixe, produção de peixe fumado ou em conserva, que atingiu o auge com a difusão da “arte nova” da apanha costeira da sardinha exigiam pessoal especializado. Por outro lado, a intensa pirataria, que apenas abrandou a partir de 1830 quando os franceses conquistaram a Argélia, as epidemias recorrentes em especial de cólera (estão registadas as devastações de 1833 e 1855-1856), os sismos, as guerras, sobretudo as invasões francesas, e os grandes fluxos migratórios, para Espanha ou América, fizeram partir ou trouxeram renovadas levas de gentes. Pequenos grupos refugiaram-se também aqui, vindos pelo Mediterrâneo, mantendo as suas tradições, aproveitando-se da natureza aberta, abundante e carente de mão-de-obra.
As políticas de povoamento, de incremento das pescas e da actividade marítima sustentaram concessões para salinas, armações de atum, mas também de companhias de pesca e de conserva. Nesse âmbito, diversas populações piscatórias foram aliciadas a instalar-se na Fuzeta, vindas de zonas pesqueiras da costa Norte. Eram pescadores que dominavam as artes de velejar e das redes, formando companhas organizadas. O conjunto daquelas actividades era igualmente controlado pelos poderes públicos. Os pescadores estavam sujeitos ao “compromisso marítimo”.
Não é possível seguir a evolução destas populações, senão como se referiu desde o século XVIII. Antes da fundação da paróquia, um simples lugar não merecia referência nas fontes e muito menos mereciam relevo as pobres gentes locais. No século XX, encontramos distintos grupos populacionais. Os pescadores das companhas de alto mar, dos caíques e das traineiras, que velejavam de Larache a Lisboa e pescavam bacalhau na Terra Nova, formavam o núcleo principal, habitando nas casas de açoteia do núcleo urbano. Os pescadores pobres, que moravam nas zonas ribeirinhas ou em cabanas no areal ou na ilha, parecem distintos daqueloutros, empregando-se na pesca local e usando artes arcaicas. Os proprietários rurais e, nas franjas da povoação, camponeses sem terra formavam um grupo pouco numeroso, mas com expressão enquanto empregadores sazonais. A população ligada aos poderes públicos, aos serviços ou com bens de raiz formavam o topo da hierarquia da Fuzeta. Estes grupos distinguiam-se pelo sotaque, pelos modos de vestir e de conviver e tinham, todos eles, a sua própria estratificação em função dos rendimentos. Sofriam da segregação social, dos terrestres sobre os marítimos e camponeses, dos marítimos das traineiras sobre os das artes arcaicas. Destes sobre os meramente recolectores.

Para a História da Repressão em Portugal

Antigamente atribuíam-se aos mouros as ruínas que perduravam. Sobretudo a partir do século XVIII, buscou-se uma origem romana ou lusitana para as cidades e vilas mais importantes. Naqueles povoados em que não se descortinava arqueologia de monta, a história bastava-se com uma explicação com base em factos recentes, uma carta senhorial ou real, a prosperidade pelo trabalho, um feito heróico, etc. Sabe-se hoje que o território foi ocupado desde tempos imemoriais de modos muito mais complexos. As migrações foram mais frequentes e em maior escala do que se supunha. Portugal foi formado desse modo, desde as cruzadas e o direito de conquista dos vencedores, e cresceu com gentes de todo o mundo, por fluxos vindos da Europa e do mediterrâneo, depois da Ásia, África e América.

O discurso da história dificilmente atende aos diversos povos de distintas nações e culturas que coabitaram nos mesmos espaços, submetidos a um grupo dominante e a uma hierarquia rígida. Este erro nasce desde logo da falsa representação de 3 classes sociais nas sociedades anteriores ao liberalismo: nobreza, clero e povo. O grupo que pode merecer algum tratamento homogéneo é o da nobreza, embora ainda assim deva ser tratado distintamente pelo seu poder económico, influência política e ascendência social. O clero vastíssimo e hierarquizado do antigo regime, integrando desde membros da nobreza aos excluídos e até aos estrangeiros apenas pode ser considerado uma classe pelos privilégios específicos que recebia do poder. Em vez de clero, deve dizer-se igreja, enquanto instituição de substrato pessoal e carácter supranacional. Já a noção de povo não pode ser tomada no sentido actual. Importa destrinçar entre a burguesia das cidades, os proprietários rurais e a massa de população desprovida de capacidade económica e política. E daqueles, no seu conjunto, é necessário distinguir os grupos sociais minoritários que não eram reconhecidos como iguais, os descendentes dos muçulmanos, dos judeus, dos ciganos, dos estrangeiros de diversas proveniências, de ricos comerciantes a escravos forros. Em relação aos judeus, preservou-se a expressão “gente da nação”, muito usada após a restauração da independência. Importa porém reconhecer que a mesma designação foi empregue para designar o conjunto dos ciganos ou dos muçulmanos, pelo menos até o século XVI.

A monarquia absoluta que começa a construir-se no final da idade média vai deixando de tolerar a autonomia dos grupos minoritários, mas também as cidades se vão tornando unanimistas, sobrepondo os valores de classe à autonomia cultural ou religiosa. Após a expulsão dos judeus e muçulmanos no reinado de D. Manuel I, com a conversão forçada, a repressão sistemática, brutal e prolongada ao longo de séculos daquelas culturas, mas também com a perseguição generalizada de todas as formas de manifestação cultural desconforme com a ortodoxia dominante, sustentou-se uma ideologia de conformidade de todo o povo a um único padrão social e étnico, por natureza submetido ao poder real. A ideia de nação foi progressivamente reservada para nomear todos os súbditos, isto é, todos os naturais do reino. Portugueses, lusitanos, ou franceses, francos. O fenómeno ocorre em todos os estados europeus. Salvo raras excepções, os judeus, os ciganos, os africanos, os que professavam credos não oficiais e muitos dos nacionais de outros estados tiveram no entanto tratamento desigual e foram alvo de medidas repressivas, por vezes drásticas.

A repressão exerce-se de modos distintos sobre a mesma minoria, em função da condição social, influência política ou permanência dos valores de grupo. Há uma dupla marginalização que afecta os mais pobres. Mesmo os cristãos descendentes de naturais do reino não estavam isentos de escapar à escravidão das galés ou dos trabalhos forçados se caíssem na miséria. Nas épocas de fome ou de doença, tão frequentes elas foram, formavam-se bandos de indigentes verdadeiramente sem eira nem beira. Não podiam entrar nas vilas e eram perseguidos nos campos. Uma espécie de párias na sua própria nação. Por diversos motivos, haviam perdido a qualidade de moradores, essencial para serem reconhecidos como vizinhos nas povoações da naturalidade, ou derivavam de escravos forros, sub-minorias empobrecidas, estrangeiros fugidos a perseguições, etc.

Enquanto os vizinhos se organizavam localmente, dificultando o acesso dos estranhos, o estado foi tomando políticas de controlo da vagabundagem. O arroteamento de terras incultas, em especial entre o Sado e o Mira, empregou gerações de pobres. A colonização de terras africanas ou do Brasil levou milhares de camponeses, de pequenos delinquentes, de párias. Foi mantida uma polícia de costumes para controlo das populações. Desses plúrimos fenómenos migratórios nasceu um pessoal de controlo, precariamente ligado ao aparelho do estado, com a incumbência de submeter as gentes desenquadradas ou depauperadas aos interesses dominantes. Podemos designá-los como ralé: empregados como mera força repressiva ocasional, trauliteiros, sem distinção de classe ou de etnia, muitas vezes mal queridos, tinham como único valor a disponibilidade para uma função que os homens de bem não aceitavam.

É bem discutível a existência de uma política racista. Provavelmente, a discriminação assentava apenas na condição miserável, na falta de vinculação a um lugar, na falta de educação elevada ou na resistência grupal. Não podemos por isso identificá-los meramente como judeus, mouros, negros, ciganos, indianos, turcos, etc. Em todas estas comunidades se encontravam elementos com influência social, granjeando poder económico. E de todas elas se reconhecem gentes pobres, sem direito à expressão cultural e sem assentamento nas vilas e cidades. Não espanta que escravos forros tivessem sido protegidos por alguma nobreza, que tivessem recebido doações e heranças, enricando, e em duas ou três gerações entrado pelo casamento na classe dominante. Goeses ligados ao comércio ou judeus ricos conseguiram também a nobilitação ou altas posições na sociedade. Até algumas famílias da etnia cigana atingiram tal patamar. A sociedade portuguesa é feita da mistura de todas as gentes, vindas de territórios tão díspares como a actual Ucrânia, a Grécia, a Índia ou a América. Ingleses, italianos, galegos, argelinos, sírios, enfim, uma inumerável prole mundial deu corpo à população portuguesa. Haverá ainda famílias de raiz lusitana, anteriores à invasão dos godos? Cremos que não. A miscigenação atingiu todas as camadas sociais, da alta nobreza ao povo da aldeia mais recôndita. Marranos nas Beiras e Trás-os-Montes, galegos no Alentejo e toda a raça de gentes nos portos de mar e cidades do litoral.

Interessa porém anotar três aspectos distintos que confluem para uma ideologia dominante. A constituição de um discurso da raça pela burguesia do século XIX, que teve a mais alta expressão na luta republicana contra a monarquia, onde a mescla de comerciantes e agricultores enriquecidos assentou alicerces para lançar os seus filhos na conquista do aparelho de estado. A exclusão social dos pobres de todas as etnias e até das antigas famílias do reino, relegados para os confins do território, etiquetados por gerações como gente inferior. A crescente formação de uma ralé de perseguidores e repressores, que teve o auge na criação da GNR em 1910 e que continuou pela constituição de corpos de eliminação de adversários políticos até o Estado Novo. Aqueles três aspectos representam um mesmo movimento de formação do estado contemporâneo.A história actual ainda se basta com a procura de acções repressivas do fascismo português. Talvez porque é feita pela geração de letrados que descende daquela burguesia de alpaca, legitimada pelo bacharelato. Repetem-se os erros que contaminaram Raul Brandão e outros eruditos quando procuraram o algarvio ou o alentejano, como um tipo social uniforme. Não podemos continuar à procura do povo, quando sentimos nas veias os contrastes das nossas próprias vivências. A repressão social não se identifica com os regimes políticos, sucede-lhes. A massa indistinta de homens e mulheres sem poiso nem sustento, obrigados a buscar alimento pela escravização no trabalho agrícola, das ceifas no Alentejo à alfarroba no Algarve, das galés ao exército, merecem uma história. A história de Portugal.

Empregamos o termo repressão para traduzir o efeito directo, violento, que atingia os desfavorecidos. Preferimo-lo em vez de exclusão, pois na verdade o estado não renunciou à sua influência sobre aquelas franjas minoritárias, nem prescindiu da sua força de trabalho ou capacidade militar. Não houve medidas de expulsão em massa, nem a formação de guetos (ghetto, palavra italiana que corresponde à judiaria medieval portuguesa), antes políticas de integração económica e policial). Também preferimos dizer repressão em vez de discriminação, pois esta palavra não respeita as pretensões de auto-diferenciação das próprias comunidades minoritárias, que seguiam credos religiosos, costumes e modos de vida distintos dos da maioria. Uma sociedade não repressiva deve tolerar os grupos que lhe são diferentes e que, por isso, noutra acepção do termo, se discriminam dela. Por último, prescindimos do adjectivo social para caracterizar a acção repressiva, além de redundante (por se tratarem de comunidades ou grupos alargados), retira carácter político às pretensões de autonomia dos grupos minoritários, quando ela é, em certos casos, flagrante. As opções comunitárias dos judeus, dos ciganos ou da comunidade de pescadores de Monte Gordo face à política de realojamento do Marquês de Pombal têm manifesta natureza política e social. Quando se diz que foram sujeitos a repressão, quer-se dizer que não puderam defender as suas pretensões dentro da ordem social vigente, nem foram protegidos pelo poder. Os qualificativos social ou político nada de útil acrescentam. Não há verdadeira repressão política sem a consequente repressão social e apenas a reconhecemos se previamente admitirmos a autonomia dos grupos minoritários.

sábado, 23 de maio de 2009

Doping no ciclismo

Custa-nos a acreditar que o sentimento de novidade que tão entusiasticamente partilhamos é muitas vezes mera ilusão. Somos avessos à história. Para o demonstrar hoje basta repescar uma notícia antiga.

Do jornal "A Capital" de 18 de Junho de 1913: O Dr. Bayard publicou na revista da União Velocipédica Francesa um estudo que denuncia os inconvenientes dos excitantes que os ciclistas tomam para obterem um excesso passageiro de energia. http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/A%20CAPITAL/1913/JUNHO/18/N.%C2%BA1036/ACAPITALN1036.pdf

Não se tome pois por surpresa o conhecimento de novos casos de doping.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

A produção social da arte

A obra de arte corresponde a um produto e obedece a um código de produção. Em primeiro lugar, deve evidenciar o domínio de uma técnica, de uma arte – de artífice, artifício primário, a habilitação prévia que justifica o artista. Depois, deve resultar da contínua transmutação do material de base, da reelaboração repetida, que se confunde com aperfeiçoamento ou com descoberta, em busca da possibilidade de revelação ou simplesmente de encantamento. Por fim, deve impressionar, porventura pela elementaridade, pela evocação do ser primitivo, primordial, que se supõe ter antecedido a complexidade da vida actual pelo afrontamento dos sentidos ou pela abertura/oclusão da realidade. E deve ser original, no sentido de criada pela primeira vez e desvelar a individualidade do autor. Do adestramento do artista ao domínio da matéria-prima, da instituição da coisa criada enquanto obra à submissão ao catálogo mercantilista, opera-se uma sucessão de actos, tendencialmente profissionalizada, em atenção exclusiva, um processo.

A atribuição do valor artístico, com correlato económico, é inerente à qualificação jurídica de obra protegida, o que, por sua vez, não carece de qualquer manifestação de reconhecimento social. A coisa criada, ou seja o produto acabado pelo artista, tem o valor do processo de elaboração (o processo não é forçosamente material, deve antes permitir conjecturar um estado de alma particular do artista, o verdadeiro processo, que indicie a proximidade da revelação – por isso a obra pode resultar de um aparente imediatismo instintivo). Da impossibilidade de ser repetida de outro modo, pois não é susceptível de representação autêntica, nem pode ser descrita por palavras (ainda que de palavras seja feita), decorre a possibilidade do processo de criação profissional, o domínio do artista. A obediência ao código e a disciplina processual conferem-lhe o carácter de coisa única, de coisa vinculada a uma produção intelectual irredutivelmente subjectivizada. O valor da coisa enquanto produto, ou matéria-prima voluntariamente transformada, é suplantado pelo valor do processo de criação, materializado consubstanciado no acto final, a coisa ideada em si, projecção imanente do espírito. Reside aí o carácter fundamental da obra de arte, a intemporalidade/universalidade, e assim perpetuidade. Pode considerar-se como obra de arte, então, aquela que é geralmente reconhecida como susceptível de manter tal qualidade através dos tempos, isto é, aquela a que é reconhecido, a partir do carácter histórico (fundador da história), um valor de conservação que emula a coisa criada da matéria base e a dissolve em ideal humano, imune à erosão da vida. Coisa a-geológica erigida em culto.

Sendo coisa, a obra criada de arte visa o mundo. Tendo valor, corre o segundo processo: o processo de apossamento (apossamento e não apropriação, pois não pode ser afectado o elemento intelectual, que permanece simbolicamente no criador, enquanto atributo específico da própria obra (atente-se na absurda ficção jurídica corrente, alicerçada na diferenciação entre suporte da obra, coisa corpórea, e objecto criado, direito imanente do criador)). O direito de sequela atribuído ao autor garante o valor do apossamento, na medida em que funciona como mecanismo de reconhecimento da obra enquanto obra de arte.

Parece que não teremos ainda arte se a obra permanecer no atelier do artista. A obra deve ser declarada coisa acabada, insusceptível de alteração, e, enquanto tal, atirada ao mundo. A qualidade de coisa única depende também de uma espécie de independência em relação ao criador. Daí a necessidade de apossamento que a colocação no mercado simboliza. Por isso, necessariamente, é passível de transmissões sucessivas e infindáveis de apossamento/desapossamento. O estar-aí da obra nunca pertence ao adquirente (do direito de apossamento). Tudo quanto se lhe permite, além da especulação económica, é a contemplação da obra, ou melhor, o dar a obra a contemplar, ou, o que é o mesmo, o poder de privá-la da contemplação. A contemplação alimenta-se da possibilidade de revelação, pela necessidade de verdade, de explicação do mistério da crença ou descrença, que obedecem, deste ou daquele modo, ao mesmo certo mecanismo de esvaziamento da autenticidade original do ser. A obra de arte refere-se a um fenómeno vulgar, instituindo um modo específico de olhar ou de perceber. Tendo valor universal, declara estranho qualquer contemplador. Excede-nos, é inabarcável.
O mercado é-lhe também estranho. O valor da obra é o valor de alienação, ou seja, de remeter para ela própria qualquer hipótese de explicação intuitiva do mundo. O apossamento e a contemplação (ou a possibilidade de uma ou de outra), são manifestações de renúncia à elaboração individual de um modo de criação autónomo. São esquemas de projecção do indivíduo na coisa transformada, mas transformada para ser receptáculo da aspiração individual. O espírito compraze-se na contemplação, atem-se ao elemento de novidade da obra, e, se experimenta uma perturbação por efeito dela, deve aceitar que vivenciou uma revelação (embora obviamente não tenha podido compreendê-la dentro de si). Em paralelo, a obra resiste à análise técnica, ao desarme dos seus componentes. O elemento subjectivo pertence exclusivamente ao autor. É um todo que influi, simbolicamente, uma energia alheia. Da impossibilidade de ser repetida de outro modo, pois não é susceptível de representação autêntica, nem pode ser contida em palavras (ainda que de palavras seja feita), decorre a possibilidade do processo de criação profissional, o domínio do artista. O elemento subjectivo pertence exclusivamente ao autor. Não pode ser analisada subjectivamente pelo contemplador, pois carece de interpretação universal. É assim que o contemplador há-de recorrer a uma espécie de imaginário do pensar geral de todos os outros e conjecturar um juízo que está para além dele próprio, num colectivo virtual que serve de prumo ao pensar (e ao sentir) a obra. Instituindo no indivíduo um campo fora dele, a obra institui também a necessidade de alienação.

A obra supera o indivíduo e instala um campo de revelação exterior ao ser. O processo de produção da arte rejeita as particularidades individuais, que são (ou podem ser) experimentadas por todas as pessoas, verificadas certas condições similares, sendo assim fenómenos repetíveis, limitadamente psicológicos, ou seja, explicáveis pela aplicação de um método científico, e portanto desprovidas da potencialidade de revelação. Do mundo natural, colhe apenas o material de base, retalhos estranhos, quando desligados do ambiente, sinopses radicais, que evocam insuspeitas metamorfoses, paisagens ou criações da natureza, desfiguradas por uma espécie de clarividência translúcida, como se nós já ali tivéssemos estado, estupefactos. A produção da arte em nada se relaciona com as coisas criadas por amadores, artífices ocasionais ou impulsivos, que lancetam matérias-primas nobres em busca da representação de um estado de alma indecifrável. Está para além de qualquer noção de trabalho. Está para além de qualquer voluntarismo casuístico. O artista não carece de sabedoria, mas de conhecimento sobre o processo de produção.

A arte está presa na função de desmontagem. Aspira à desarticulação do discurso dominante, pela subversão ou reinscrição dos valores simbólicos. Submissão, provocação, alheamento ou auto-referência são os modos possíveis de vocação da arte. Quando libertada da moral, corresponde a um vazio conceptual que se mantém dependente do poder moral. A obra de arte revela-se a si própria.

Multiplicam-se os produtores e as obras. Jorram fluxos de novidade mirabolante. O contemplador, que busca a emoção de conhecer (ou sentir) o desvelamento, é colocado na posição de selector na escala final do processo de produção. Destituído do poder de afirmar em si próprio o valor da obra, resta-lhe imaginar um valor para os outros, supra-individual, que lhe permita ficcionar, ao mesmo tempo, algum prazer, na busca de solução para a compreensão do mistério da vida. Não pode porém observar toda a arte. Da pluralidade de instalações nasce a necessidade do catálogo, da exposição de amostras, de sentir a obra através de uma síntese eloquente. Eis que o audiovisual, como veículo vertiginoso de imagens, sons e palavras, assume a predominância entre os contempladores, facultando o acesso (sem dependência de juízo crítico ou auto-vinculante) à variedade de coisas criadas pelos mais díspares autores, profissionalizados, divulgados e rapidamente debatidos, venerados e ultrapassados. O audiovisual representa bem o processo de produção da arte e, correspondentemente, de alienação pela arte.

A função da crítica parece então deslocar-se da produção de um pensar universal sobre a obra (num esforço de racionalização do processo de alienação/revelação) para a de selectora dos fluxos de exibição/apresentação. O crítico já não espera a obra: aspira à gestão do tráfego do processo de criação. De qualquer modo, o discurso sobre a arte não pertence aos artistas.

Contra a Literatura

I
Não basta o dom da escrita. É necessário um ego altíssimo, o constante exacerbar do egoísmo, um desejo incontido de fama, uma vaidade cruel, para se fazer romancista. Adaptar a língua aos requisitos da tradução, apanágio dos grandes, fazer perder a cacofonia do português, censurar a rima, contar as repetições, tudo disfarçado pela tristeza, sim pela tristeza, essa força que tudo engole e tudo encobre, que se mascara de arte, de literatura para mulheres, de cultura (cultura, de onde vem esta palavra senão de arado, de transformar a plenitude da terra, de fecundar, semear, de colher, ou seja, de empregar, empenhar, encomendar, entretecer a mulher, como desígnio do labor humano: não se estranhe pois o romance, que nada mais é que a sublimação raivosa da perda radical do direito à cultura, enquanto fecundação e emprego). Essa literatura que retira a legitimidade, que se toma por instituto, autoridade, origem e devir da língua e do pensamento, recheada de palavras aprendidas à pressa, corrigidas ao computador, reclamando autenticidade pela exposição de personagens-tipo (que é isso senão horror das gentes, das forças, senão o destroçar da alma que labuta à procura da verdade, no livro), gente desorientada, mole, só, pobres sem abrigo possível, penando culpas imaginárias, mal resolvidas. Retirar daí o ensinamento, falso erro, porco desígnio, para os ociosos – ele próprio, escritor, ocioso, aburrido, consternado por não dispor dos mecanismos que lhe permitam escrever ainda mais depressa, para que dos extensos volumes carregados de palavras se constate ainda mais vazio, ainda mais angústia, ainda mais reversão. Essa literatura mata. Mata a língua – veja-se como o alemão se fecha à tradução fácil e sobrevive como língua erudita e como o francês ou o castelhano se perdem por entre a massificação escolar, e os seus filósofos ficam impedidos de fundar de novo, de verdadeiramente instituir a criação. Resta-lhes o método que, como notou o grande Deleuze, é apenas estilo. Aí de novo o reino desses pequenos escritores de mulheres, de cultura infecunda, de repetição, extensão e enojamento. A literatura não vê a força. Mas, quando a vê, não pode desvelá-la. Vive da aparência, sob a forma de racionalidade e senso comum. Não ensina, não transforma e não progride. Repete e extende. O tipo humano que põe em acção está modelado por um estilo de escrita que o legitima. A historicidade congela-a. Apenas pode contar o passado e o método possível é o presente. É o leitor infértil. Por isso o escritor não precisa de saber do sussurro, do silêncio, da penumbra, apenas das palavras; palavras que foram modeladas, instituídas, grafadas pela escrita anterior. A mesma artificialidade, a mesma redundância. Sussurro? Que podemos hoje saber do verdadeiro sussurro, e da verdade? Apenas repetição e extensão, nunca profundidade e autenticidade. Por isso são tão grandes os romances e tão pequenos os contos. E essa modalidade porca que são as crónicas, essa comercialice da tristeza e da desgraça e da anotação antropóide. A verdadeira literatura está escondida desses vigilantes da autoridade historicista. Digo verdadeira, com temor. A palavra está corrompida. Não é possível já conhecer o sentido, a conotação da palavra verdade. Daí a deriva dos espíritos.
II
A escrita vem da verve e do desejo de afirmação pessoal. O grande escritor tiraniza – como ensinou Nietzsche – ou deseja tiranizar. Exerce uma autoridade, isto é, regula e dispõe de um sistema moral. Diz a virtude e o modo como deve ser perseguida, prosseguida. Por isso castiga algumas personagens pelos seus desvios à razão e ao bem. Modela os destinos, como que ditando mandamentos. Manipula contradições e impulsos de carácter. Expõe a dialéctica, essa arte do ardil, dos vários interesses. E tem um propósito óbvio: exemplificar, padronizar, tipificar, educar, “prestar uma contribuição”. A troca. Para lá do livro (a matéria egoísta, comercial e pragmática), a contribuição moral, a refundação ética e a sensibilização pública dos valores superiores são a dádiva do escritor ao mundo e à humanidade. Por partilhar e difundir altruisticamente a virtude, coloca-se na posição de ofertante, de nobre, de granjeador de distinção e merecedor da troca social, como Levy-Strauss o disse em relação à dádiva na sociedade primitiva. A fama do escritor corresponde ao reconhecimento público de que a sociedade quer retribuir-lhe a abnegação da entrega. Evidentemente, o escritor quer muito mais do que alguma vez receberá. A sua autoridade não sai do livro para os palácios, para o trono, para o céu. A troca é mundana. Almas breves enfeitiçadas, de olhos fitos no balouçar da escrita, prontas a atirar-se no precipício do coração. Nada que possa contentar o escritor mais do que uma noite. Por isso é velho. E escreve horas a fio, como um proletário imigrante, labuta na grande obra. Já não pertence à sua terra. Pode vê-la de fora, num carrossel. Continua a obra derradeira de retirar aos outros o dom da língua. Visa apropriar-se dos modos de dizer e de sentir, instituir novas regras, que são apenas referência à sua obra: “A língua sou eu e os meus antepassados”. Escrevem em catadupa. Mas é preciso um enredo que cative. Esse o verdadeiro óbice e a verdadeira charneira da literatura, como braços de um rio.

domingo, 17 de maio de 2009

Contribuição para o estudo do Burguel






O termo burguel surge sob diferentes formas (burgel, bruguel, berguel) na tradição popular do sotavento algarvio, com duplo sentido: faz referência a um sítio no interior de povoações; e reporta gente de baixa condição social. É assim em S. Brás de Alportel, Luz de Tavira e Fuzeta. Ocorre também, como topónimo, em pequenas localidades portuárias da Catalunha. Burgel foi um povoado de Espanha, hoje mera ruína. Todavia, o significado e origem do termo não parecem suficientemente explicados.


O Elucidário de Sousa Viterbo anota “burgel, burgez e burguez” como “o que mora no burgo” e “burgo” como “ajuntamento de casas nas raias ou fronteiras onde residiam efectivas as guardas militares romanas”. No “Dicionário Portátil”, Viterbo define burgo como pequeno arrabalde de uma povoação maior". Todavia, tão denunciados estão os eventuais erros do autor, constituem tais anotações ponto de partida pouco seguro. Leite de Vasconcelos aceita a forma burgel como sinónimo de burguês e admite que burgés e burguês designem de igual modo o morador do burgo, embora por raízes diferentes.


Assume particular interesse constatar que o termo burguel persistiu na tradição oral das gentes dos lugares, sem que tivesse merecido a atenção dos cronistas ou dos estudiosos. As vicissitudes da história não foram bastantes para deixar cair a palavra no esquecimento e, não obstante, não aparece registada nas corografias, nas monografias, nem na maioria dos ensaios etnográficos.


Recentemente, o município de São Brás do Alportel atribuiu a designação de “Pátio do Burguel” a um pequeno recanto da rua Aníbal Rosa da Silva, que sai do centro histórico da vila no sentido Nascente. Porém, esta via foi conhecida antigamente, segundo Estanco Louro, como Rua do Burguel. Nas suas imediações nada parece merecer relevo. O centro histórico sim. Considerando que o centro foi atravessado pela calçada romana e que conta com vários edifícios históricos, suspeita-se que a palavra burguel se refira precisamente ao casario antigo ou a algum aquartelamento. Nesta hipótese, como em tantas outras localidades e em tantos casos, a Rua do Burguel deve significar “rua que vai para o burguel”, sendo burguel um pequeno núcleo antigo. Aqui os moradores da Rua do Burguel foram vistos como gente pobre, sem maneiras, e a própria rua como zona suja, contrastando com o centro histórico. Parece, no entanto, que essa mancha cobria também uma parte do centro histórico.


A Luz de Tavira denomina rua do Burguel a um atalho que liga a EN 125 a algumas hortas. Sabe-se que a igreja manuelina foi construída no que era então um vasto rossio. A povoação deveria aproximar-se mais do centro da aldeia, que já deveria alongar-se pela estrada. Suspeita-se que o burguel coincide com um quintal e ruína murados que ladeiam aquela rua pelo Poente. O local merece alguma arqueologia. Não se dispõem de dados que permitam identificar o burguel com as gentes locais.


Na Fuzeta, burguel não designa uma via ou praça, mas uma zona da povoação, precisamente a mais antiga. Não entrou na toponímia moderna e conserva forte presença na cultura popular. Luís Fraga da Silva assinala que a Fuzeta foi um porto de mar da época romana. Os vestígios desse porto podem adivinhar-se mais das escassas imagens que se conservam do que da actual vila, tão martirizada que está pela construção irregrada. Todavia, é ainda possível propor a classificação e mesmo a aquisição de alguns edifícios (antiga escola primária e casas anexas no largo junto ao quartel da guarda fiscal; 2 casas da cerca que ainda mantêm a traça original (ver fotos)), bem como das calçadas e materiais públicos em pedra. Justifica-se a prospecção arqueológica. Tratava-se de um porto de mar, não de mera pescaria, tinha um forte no ponto cimeiro e aquartelamentos a Poente e a Nascente, entrando as embarcações num recinto protegido. No livro das fortalezas do Algarve, conserva-se um desenho que se pode sobrepor em planta às estruturas ainda conhecidas.


Constata-se que é totalmente errada a ideia de que a Fuzeta foi um primitivo lugar de cabanas. A povoação cresceu em esquadria do porto para Norte, em direcção à igreja reedificada no século XIX, e para Nascente, conquistando terreno à ria. As cabanas, na ilha ou nos arrabaldes, eram exclusivas dos não moradores, aqueles pescadores pobres que, vivendo embora nas imediações, não eram reconhecidos como vizinhos. Alguns foram realojados no Bairro dos Pescadores, construído no rossio Poente. No burguel e na proximidade, viviam gentes discriminadas dos restantes moradores da povoação, tal como em São Brás de Alportel. Os do burguel são “burgueleiros”. O modo como se dá tal generalização ou ocupação do local carece de estudo, como também se impõe a pesquisa sobre o urbanismo, a evolução da malha urbana, notoriamente sujeita a planeamento.


Deve notar-se que cada época transporta um esquema ideológico. Desde o final do século XIX, pretende-se forçar uma ideia de povo homogéneo, autóctone, com as suas bravuras e idiossincracias locais. Mesmo sem querer, grandes pensadores, como o geógrafo e erudito Orlando Ribeiro, foram levados a observar uma única originalidade em cada lugar. Por exemplo, as açoteias de Olhão e Fuzeta. Note-se porém que, ao contrário do que Orlando Ribeiro pôde apurar, o urbanismo de Olhão antigo é diferente do da Fuzeta, que não conta com vielas tortuosas, nem com duplo mirante nas açoteias, aqui cobertas parcialmente por pequenos telhados de quatro águas . As casas retratadas nas fotos acima são únicas e mereceram destaque na história da arquitectura portuguesa.

Está hoje documentado que Olhão foi um porto da época mourisca e que conservou a população muçulmana até à expulsão. Porventura uma parte dos habitantes de Olhão e Fuzeta foram descendentes, já mestiçados, desses longínquos povoadores. Em São Brás do Alportel, ocorreu idêntico processo. Estará o termo burguel relacionado com a antiga ocupação do burgo por antigas populações moçárabes?



sábado, 9 de maio de 2009

O que é um montanheiro


Hoje, montanheiro é o praticante de montanhismo. Diz-se nos dicionários de calão que o termo pode ser empregado como sinónimo de tacanho, atrasado, etc. Todavia, permanece ainda nas povoações marítimas do Algarve não apenas aquele sentido depreciativo, como mais propriamente querendo referir alguém que é de fora, que não pertence ao povo do lugar, no mesmo sentido que saloio representa para os lisboetas (http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/07/pag293_356.pdf). Amorim Girão, o geógrafo que tanto influenciou a cultura do século XX, terá reproduzido o termo como designação dos habitantes do barrocal algarvio, por oposição aos marítimos e aos serrenhos (http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/19/boletim19_pag369_376.pdf).


Na Fuzeta e noutras povoações ribeirinhas do Algarve, continua a dizer-se montanheiro em relação àquele que é do campo ou que revela imperícia nas coisas da pesca, mas não no sentido pejorativo. No entanto, o termo teve larga expressão na antiga rivalidade com a vizinha freguesia de Moncarapacho. Refere proprietários rurais, lavradores e, por extensão, todos os que trabalham a terra. Os marítimos estiveram dependentes dos poderes dos terra-tenentes para alçar as cabanas em que assentaram arraiais, constituir a paróquia, edificar em alvenaria, comerciar o pescado e remediar a fome nos longos períodos em que a maré foi madrasta. A Fuzeta esteve sob o controlo de autoridades militares ou civis forâneas e teve de mendigar o chão para se desenvolver. Parte da população, desde o século XVI, poderá ser oriunda de Ílhavo e de outros portos piscatórios da costa Norte de Portugal, arregimentados por senhores colonizadores de novos centros pesqueiros. Foi enriquecida pela míriade de gentes que foi ficando, vinda de todos os portos. Distingue-se dos moradores das terras vizinhas por essa origem distante e plural, conservada pela acérrima dedicação às artes da pesca e à cabotagem. Mas é marcada pela submissão aos poderes dos senhores da terra e das concessões de pesca.


Aqui, montanheiro tem o duplo sentido de estranho e de titular de direitos senhoriais. Ora, é nesta última acepção que aquela palavra foi empregue até ao século XVII. Montanhês qualificava o fidalgo de antiga linhagem, descendente dos visigodos, por referência às montanhas asturianas e cantábricas que defenderam o último reduto dos cristãos (assim mencionado, por exemplo, no Dom Quixote de La Mancha). No século XIX, caiu em desuso essa invocação das origens ancestrais, esse puxar dos pergaminhos para justificar uma superioridade pessoal. Camilo Castelo Branco arrasa tais pretensões, já no seu tempo serôdias, satirizando os pretenciosos que a invocavam de terem antepassados tão remotos, tão anteriores ao godos, que descendiam directamente dos macacos.


Reconhece-se então de que modo o termo montanheiro, se derivado de montanhês, se estendeu a toda a população ligada à terra, assumindo um sentido pejorativo, perdendo-se o sentido original. O declínio da antiga nobreza, a tomada dos cargos públicos pelos letrados, os ideais igualitários do liberalismo e a efectiva autonomia dos pescadores, que deixaram de depender de vínculos senhoriais, tornou irrisória a autoridade do fidalgo, em geral proprietário, e irrelevante a sua eventual ancestralidade.

O termo montanheiro tem vindo a perder o sentido pejorativo e, quiçá, irá gradualmente cair em desuso, até total desaparecimento. Raros são os que recordam os chistes grosseiros que antigamente apupavam os montanheiros: "montanheiro montanhal, comes caca de pardal" e "quando vejo um montanheiro, dá-me zanga de matá-lo"; ao que estes replicavam: "Mela da Fuzeta, comes tripa na gineta" e "bem lavada, mal lavada, comes tripa à colherada".

quinta-feira, 7 de maio de 2009

O 25 de Abril e a papa Maizena

Há homens assim. Deviam ter lugar perene em todos os partidos e governos. Manuel Pinho tem aquela acentuada tendência para a sinceridade a que os comparsas podem invejosamente apelidar de "foge-lhe a boca para a verdade". -lo na China, lembram-se? Sobre a política deliberada de baixos salários na indústria. Agora, alcança igual magnitude a propósito do acesso à papa Maizena.

O primeiro aspecto a realçar é que, para Pinho, a quantidade de papa já consumida pelos homens do regime, bem como a capacidade que eles têm para continuar a ingeri-la, é muito superior à que um vulgar cidadão médio pode alguma vez aspirar. O segundo aspecto é que um homem de meia idade não tem qualquer crédito ou mérito, a não ser que tenha atrás de si um rol de latas vazias da dita papa, ou um grupo de correlegionários da mesma a segurá-la. O dislate de Pinho lê-se assim: o cidadão está reduzido à menoridade, mas a uma menoridade educada que deve mostrar constante reconhecimento aos homens da papa.

Rangel perdeu uma grande oportunidade de crescer como homem político. Bastaria que tivesse retorquido: não quero a vossa papa! E Basílio Horta desceu à creche para agradecer a papa ao papá.

Abril, além do mais, propunha-se redistribuir equitativamente a papa, lembram-se? Afinal, nem sequer nos deu a emancipação.