quarta-feira, 20 de maio de 2009

A produção social da arte

A obra de arte corresponde a um produto e obedece a um código de produção. Em primeiro lugar, deve evidenciar o domínio de uma técnica, de uma arte – de artífice, artifício primário, a habilitação prévia que justifica o artista. Depois, deve resultar da contínua transmutação do material de base, da reelaboração repetida, que se confunde com aperfeiçoamento ou com descoberta, em busca da possibilidade de revelação ou simplesmente de encantamento. Por fim, deve impressionar, porventura pela elementaridade, pela evocação do ser primitivo, primordial, que se supõe ter antecedido a complexidade da vida actual pelo afrontamento dos sentidos ou pela abertura/oclusão da realidade. E deve ser original, no sentido de criada pela primeira vez e desvelar a individualidade do autor. Do adestramento do artista ao domínio da matéria-prima, da instituição da coisa criada enquanto obra à submissão ao catálogo mercantilista, opera-se uma sucessão de actos, tendencialmente profissionalizada, em atenção exclusiva, um processo.

A atribuição do valor artístico, com correlato económico, é inerente à qualificação jurídica de obra protegida, o que, por sua vez, não carece de qualquer manifestação de reconhecimento social. A coisa criada, ou seja o produto acabado pelo artista, tem o valor do processo de elaboração (o processo não é forçosamente material, deve antes permitir conjecturar um estado de alma particular do artista, o verdadeiro processo, que indicie a proximidade da revelação – por isso a obra pode resultar de um aparente imediatismo instintivo). Da impossibilidade de ser repetida de outro modo, pois não é susceptível de representação autêntica, nem pode ser descrita por palavras (ainda que de palavras seja feita), decorre a possibilidade do processo de criação profissional, o domínio do artista. A obediência ao código e a disciplina processual conferem-lhe o carácter de coisa única, de coisa vinculada a uma produção intelectual irredutivelmente subjectivizada. O valor da coisa enquanto produto, ou matéria-prima voluntariamente transformada, é suplantado pelo valor do processo de criação, materializado consubstanciado no acto final, a coisa ideada em si, projecção imanente do espírito. Reside aí o carácter fundamental da obra de arte, a intemporalidade/universalidade, e assim perpetuidade. Pode considerar-se como obra de arte, então, aquela que é geralmente reconhecida como susceptível de manter tal qualidade através dos tempos, isto é, aquela a que é reconhecido, a partir do carácter histórico (fundador da história), um valor de conservação que emula a coisa criada da matéria base e a dissolve em ideal humano, imune à erosão da vida. Coisa a-geológica erigida em culto.

Sendo coisa, a obra criada de arte visa o mundo. Tendo valor, corre o segundo processo: o processo de apossamento (apossamento e não apropriação, pois não pode ser afectado o elemento intelectual, que permanece simbolicamente no criador, enquanto atributo específico da própria obra (atente-se na absurda ficção jurídica corrente, alicerçada na diferenciação entre suporte da obra, coisa corpórea, e objecto criado, direito imanente do criador)). O direito de sequela atribuído ao autor garante o valor do apossamento, na medida em que funciona como mecanismo de reconhecimento da obra enquanto obra de arte.

Parece que não teremos ainda arte se a obra permanecer no atelier do artista. A obra deve ser declarada coisa acabada, insusceptível de alteração, e, enquanto tal, atirada ao mundo. A qualidade de coisa única depende também de uma espécie de independência em relação ao criador. Daí a necessidade de apossamento que a colocação no mercado simboliza. Por isso, necessariamente, é passível de transmissões sucessivas e infindáveis de apossamento/desapossamento. O estar-aí da obra nunca pertence ao adquirente (do direito de apossamento). Tudo quanto se lhe permite, além da especulação económica, é a contemplação da obra, ou melhor, o dar a obra a contemplar, ou, o que é o mesmo, o poder de privá-la da contemplação. A contemplação alimenta-se da possibilidade de revelação, pela necessidade de verdade, de explicação do mistério da crença ou descrença, que obedecem, deste ou daquele modo, ao mesmo certo mecanismo de esvaziamento da autenticidade original do ser. A obra de arte refere-se a um fenómeno vulgar, instituindo um modo específico de olhar ou de perceber. Tendo valor universal, declara estranho qualquer contemplador. Excede-nos, é inabarcável.
O mercado é-lhe também estranho. O valor da obra é o valor de alienação, ou seja, de remeter para ela própria qualquer hipótese de explicação intuitiva do mundo. O apossamento e a contemplação (ou a possibilidade de uma ou de outra), são manifestações de renúncia à elaboração individual de um modo de criação autónomo. São esquemas de projecção do indivíduo na coisa transformada, mas transformada para ser receptáculo da aspiração individual. O espírito compraze-se na contemplação, atem-se ao elemento de novidade da obra, e, se experimenta uma perturbação por efeito dela, deve aceitar que vivenciou uma revelação (embora obviamente não tenha podido compreendê-la dentro de si). Em paralelo, a obra resiste à análise técnica, ao desarme dos seus componentes. O elemento subjectivo pertence exclusivamente ao autor. É um todo que influi, simbolicamente, uma energia alheia. Da impossibilidade de ser repetida de outro modo, pois não é susceptível de representação autêntica, nem pode ser contida em palavras (ainda que de palavras seja feita), decorre a possibilidade do processo de criação profissional, o domínio do artista. O elemento subjectivo pertence exclusivamente ao autor. Não pode ser analisada subjectivamente pelo contemplador, pois carece de interpretação universal. É assim que o contemplador há-de recorrer a uma espécie de imaginário do pensar geral de todos os outros e conjecturar um juízo que está para além dele próprio, num colectivo virtual que serve de prumo ao pensar (e ao sentir) a obra. Instituindo no indivíduo um campo fora dele, a obra institui também a necessidade de alienação.

A obra supera o indivíduo e instala um campo de revelação exterior ao ser. O processo de produção da arte rejeita as particularidades individuais, que são (ou podem ser) experimentadas por todas as pessoas, verificadas certas condições similares, sendo assim fenómenos repetíveis, limitadamente psicológicos, ou seja, explicáveis pela aplicação de um método científico, e portanto desprovidas da potencialidade de revelação. Do mundo natural, colhe apenas o material de base, retalhos estranhos, quando desligados do ambiente, sinopses radicais, que evocam insuspeitas metamorfoses, paisagens ou criações da natureza, desfiguradas por uma espécie de clarividência translúcida, como se nós já ali tivéssemos estado, estupefactos. A produção da arte em nada se relaciona com as coisas criadas por amadores, artífices ocasionais ou impulsivos, que lancetam matérias-primas nobres em busca da representação de um estado de alma indecifrável. Está para além de qualquer noção de trabalho. Está para além de qualquer voluntarismo casuístico. O artista não carece de sabedoria, mas de conhecimento sobre o processo de produção.

A arte está presa na função de desmontagem. Aspira à desarticulação do discurso dominante, pela subversão ou reinscrição dos valores simbólicos. Submissão, provocação, alheamento ou auto-referência são os modos possíveis de vocação da arte. Quando libertada da moral, corresponde a um vazio conceptual que se mantém dependente do poder moral. A obra de arte revela-se a si própria.

Multiplicam-se os produtores e as obras. Jorram fluxos de novidade mirabolante. O contemplador, que busca a emoção de conhecer (ou sentir) o desvelamento, é colocado na posição de selector na escala final do processo de produção. Destituído do poder de afirmar em si próprio o valor da obra, resta-lhe imaginar um valor para os outros, supra-individual, que lhe permita ficcionar, ao mesmo tempo, algum prazer, na busca de solução para a compreensão do mistério da vida. Não pode porém observar toda a arte. Da pluralidade de instalações nasce a necessidade do catálogo, da exposição de amostras, de sentir a obra através de uma síntese eloquente. Eis que o audiovisual, como veículo vertiginoso de imagens, sons e palavras, assume a predominância entre os contempladores, facultando o acesso (sem dependência de juízo crítico ou auto-vinculante) à variedade de coisas criadas pelos mais díspares autores, profissionalizados, divulgados e rapidamente debatidos, venerados e ultrapassados. O audiovisual representa bem o processo de produção da arte e, correspondentemente, de alienação pela arte.

A função da crítica parece então deslocar-se da produção de um pensar universal sobre a obra (num esforço de racionalização do processo de alienação/revelação) para a de selectora dos fluxos de exibição/apresentação. O crítico já não espera a obra: aspira à gestão do tráfego do processo de criação. De qualquer modo, o discurso sobre a arte não pertence aos artistas.

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