Antigamente atribuíam-se aos mouros as ruínas que perduravam. Sobretudo a partir do século XVIII, buscou-se uma origem romana ou lusitana para as cidades e vilas mais importantes. Naqueles povoados em que não se descortinava arqueologia de monta, a história bastava-se com uma explicação com base em factos recentes, uma carta senhorial ou real, a prosperidade pelo trabalho, um feito heróico, etc. Sabe-se hoje que o território foi ocupado desde tempos imemoriais de modos muito mais complexos. As migrações foram mais frequentes e em maior escala do que se supunha. Portugal foi formado desse modo, desde as cruzadas e o direito de conquista dos vencedores, e cresceu com gentes de todo o mundo, por fluxos vindos da Europa e do mediterrâneo, depois da Ásia, África e América.
O discurso da história dificilmente atende aos diversos povos de distintas nações e culturas que coabitaram nos mesmos espaços, submetidos a um grupo dominante e a uma hierarquia rígida. Este erro nasce desde logo da falsa representação de 3 classes sociais nas sociedades anteriores ao liberalismo: nobreza, clero e povo. O grupo que pode merecer algum tratamento homogéneo é o da nobreza, embora ainda assim deva ser tratado distintamente pelo seu poder económico, influência política e ascendência social. O clero vastíssimo e hierarquizado do antigo regime, integrando desde membros da nobreza aos excluídos e até aos estrangeiros apenas pode ser considerado uma classe pelos privilégios específicos que recebia do poder. Em vez de clero, deve dizer-se igreja, enquanto instituição de substrato pessoal e carácter supranacional. Já a noção de povo não pode ser tomada no sentido actual. Importa destrinçar entre a burguesia das cidades, os proprietários rurais e a massa de população desprovida de capacidade económica e política. E daqueles, no seu conjunto, é necessário distinguir os grupos sociais minoritários que não eram reconhecidos como iguais, os descendentes dos muçulmanos, dos judeus, dos ciganos, dos estrangeiros de diversas proveniências, de ricos comerciantes a escravos forros. Em relação aos judeus, preservou-se a expressão “gente da nação”, muito usada após a restauração da independência. Importa porém reconhecer que a mesma designação foi empregue para designar o conjunto dos ciganos ou dos muçulmanos, pelo menos até o século XVI.
A monarquia absoluta que começa a construir-se no final da idade média vai deixando de tolerar a autonomia dos grupos minoritários, mas também as cidades se vão tornando unanimistas, sobrepondo os valores de classe à autonomia cultural ou religiosa. Após a expulsão dos judeus e muçulmanos no reinado de D. Manuel I, com a conversão forçada, a repressão sistemática, brutal e prolongada ao longo de séculos daquelas culturas, mas também com a perseguição generalizada de todas as formas de manifestação cultural desconforme com a ortodoxia dominante, sustentou-se uma ideologia de conformidade de todo o povo a um único padrão social e étnico, por natureza submetido ao poder real. A ideia de nação foi progressivamente reservada para nomear todos os súbditos, isto é, todos os naturais do reino. Portugueses, lusitanos, ou franceses, francos. O fenómeno ocorre em todos os estados europeus. Salvo raras excepções, os judeus, os ciganos, os africanos, os que professavam credos não oficiais e muitos dos nacionais de outros estados tiveram no entanto tratamento desigual e foram alvo de medidas repressivas, por vezes drásticas.
A repressão exerce-se de modos distintos sobre a mesma minoria, em função da condição social, influência política ou permanência dos valores de grupo. Há uma dupla marginalização que afecta os mais pobres. Mesmo os cristãos descendentes de naturais do reino não estavam isentos de escapar à escravidão das galés ou dos trabalhos forçados se caíssem na miséria. Nas épocas de fome ou de doença, tão frequentes elas foram, formavam-se bandos de indigentes verdadeiramente sem eira nem beira. Não podiam entrar nas vilas e eram perseguidos nos campos. Uma espécie de párias na sua própria nação. Por diversos motivos, haviam perdido a qualidade de moradores, essencial para serem reconhecidos como vizinhos nas povoações da naturalidade, ou derivavam de escravos forros, sub-minorias empobrecidas, estrangeiros fugidos a perseguições, etc.
Enquanto os vizinhos se organizavam localmente, dificultando o acesso dos estranhos, o estado foi tomando políticas de controlo da vagabundagem. O arroteamento de terras incultas, em especial entre o Sado e o Mira, empregou gerações de pobres. A colonização de terras africanas ou do Brasil levou milhares de camponeses, de pequenos delinquentes, de párias. Foi mantida uma polícia de costumes para controlo das populações. Desses plúrimos fenómenos migratórios nasceu um pessoal de controlo, precariamente ligado ao aparelho do estado, com a incumbência de submeter as gentes desenquadradas ou depauperadas aos interesses dominantes. Podemos designá-los como ralé: empregados como mera força repressiva ocasional, trauliteiros, sem distinção de classe ou de etnia, muitas vezes mal queridos, tinham como único valor a disponibilidade para uma função que os homens de bem não aceitavam.
É bem discutível a existência de uma política racista. Provavelmente, a discriminação assentava apenas na condição miserável, na falta de vinculação a um lugar, na falta de educação elevada ou na resistência grupal. Não podemos por isso identificá-los meramente como judeus, mouros, negros, ciganos, indianos, turcos, etc. Em todas estas comunidades se encontravam elementos com influência social, granjeando poder económico. E de todas elas se reconhecem gentes pobres, sem direito à expressão cultural e sem assentamento nas vilas e cidades. Não espanta que escravos forros tivessem sido protegidos por alguma nobreza, que tivessem recebido doações e heranças, enricando, e em duas ou três gerações entrado pelo casamento na classe dominante. Goeses ligados ao comércio ou judeus ricos conseguiram também a nobilitação ou altas posições na sociedade. Até algumas famílias da etnia cigana atingiram tal patamar. A sociedade portuguesa é feita da mistura de todas as gentes, vindas de territórios tão díspares como a actual Ucrânia, a Grécia, a Índia ou a América. Ingleses, italianos, galegos, argelinos, sírios, enfim, uma inumerável prole mundial deu corpo à população portuguesa. Haverá ainda famílias de raiz lusitana, anteriores à invasão dos godos? Cremos que não. A miscigenação atingiu todas as camadas sociais, da alta nobreza ao povo da aldeia mais recôndita. Marranos nas Beiras e Trás-os-Montes, galegos no Alentejo e toda a raça de gentes nos portos de mar e cidades do litoral.
Interessa porém anotar três aspectos distintos que confluem para uma ideologia dominante. A constituição de um discurso da raça pela burguesia do século XIX, que teve a mais alta expressão na luta republicana contra a monarquia, onde a mescla de comerciantes e agricultores enriquecidos assentou alicerces para lançar os seus filhos na conquista do aparelho de estado. A exclusão social dos pobres de todas as etnias e até das antigas famílias do reino, relegados para os confins do território, etiquetados por gerações como gente inferior. A crescente formação de uma ralé de perseguidores e repressores, que teve o auge na criação da GNR em 1910 e que continuou pela constituição de corpos de eliminação de adversários políticos até o Estado Novo. Aqueles três aspectos representam um mesmo movimento de formação do estado contemporâneo.A história actual ainda se basta com a procura de acções repressivas do fascismo português. Talvez porque é feita pela geração de letrados que descende daquela burguesia de alpaca, legitimada pelo bacharelato. Repetem-se os erros que contaminaram Raul Brandão e outros eruditos quando procuraram o algarvio ou o alentejano, como um tipo social uniforme. Não podemos continuar à procura do povo, quando sentimos nas veias os contrastes das nossas próprias vivências. A repressão social não se identifica com os regimes políticos, sucede-lhes. A massa indistinta de homens e mulheres sem poiso nem sustento, obrigados a buscar alimento pela escravização no trabalho agrícola, das ceifas no Alentejo à alfarroba no Algarve, das galés ao exército, merecem uma história. A história de Portugal.
Empregamos o termo repressão para traduzir o efeito directo, violento, que atingia os desfavorecidos. Preferimo-lo em vez de exclusão, pois na verdade o estado não renunciou à sua influência sobre aquelas franjas minoritárias, nem prescindiu da sua força de trabalho ou capacidade militar. Não houve medidas de expulsão em massa, nem a formação de guetos (ghetto, palavra italiana que corresponde à judiaria medieval portuguesa), antes políticas de integração económica e policial). Também preferimos dizer repressão em vez de discriminação, pois esta palavra não respeita as pretensões de auto-diferenciação das próprias comunidades minoritárias, que seguiam credos religiosos, costumes e modos de vida distintos dos da maioria. Uma sociedade não repressiva deve tolerar os grupos que lhe são diferentes e que, por isso, noutra acepção do termo, se discriminam dela. Por último, prescindimos do adjectivo social para caracterizar a acção repressiva, além de redundante (por se tratarem de comunidades ou grupos alargados), retira carácter político às pretensões de autonomia dos grupos minoritários, quando ela é, em certos casos, flagrante. As opções comunitárias dos judeus, dos ciganos ou da comunidade de pescadores de Monte Gordo face à política de realojamento do Marquês de Pombal têm manifesta natureza política e social. Quando se diz que foram sujeitos a repressão, quer-se dizer que não puderam defender as suas pretensões dentro da ordem social vigente, nem foram protegidos pelo poder. Os qualificativos social ou político nada de útil acrescentam. Não há verdadeira repressão política sem a consequente repressão social e apenas a reconhecemos se previamente admitirmos a autonomia dos grupos minoritários.
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