quarta-feira, 27 de maio de 2009

A política da porta fechada

Empregamos aqui o termo política como processo de aculturação conduzido de modo organizado por uma entidade exterior sobre uma comunidade cultural subjacente. Aculturação denota aqui dominação, subordinação, com vista a modificação de uma cultura. Ao resultado de tal política chamamos simplesmente dobra, estrato quebrado sobre si próprio.

Sobre as duas culturas referidas no artigo anterior incide uma acção concertada do estado. A cultura da porta aberta é reprimida numa dupla vertente: fechamento exterior para evitar a invasão externa (furto, devassa, intromissão autoritária); fechamento interior para obstar à desobediência interna (fuga, relacionamento não consentido, devassa). A cada uma destas vertentes corresponde uma sanção, aplicável em caso de violação da regra seguritária da porta fechada. A invasão externa tem por desiderato, as mais das vezes, a impunidade do invasor ou a pena irrisória. A desobediência interna encontra a plena aceitação social, tratando-se de adultos, ou a perda do familiar em fuga, tratando-se de menores. Aquela por meio do relato e difusão pública da visão que o desobediente alimenta sobre os ex-coabitantes, estas por meio da aplicação de medidas de protecção pública.

O estado impõe um especial dever de cuidado, traduzido numa política de porta fechada. As regras anquilosadas do Código Penal (arrombamento, lugar fechado, segredo guardado, privacidade protegida) têm de verificar-se para que o intruso encontre plena punição (nos julgamentos gasta-se mais tempo a apurar se a porta estava aferrolhada e de que modo, se as pessoas estavam tapadas, se os objectos escondidos, do que a apurar a intenção do invasor e o efeito que produziu), correndo-se mesmo o risco da impunidade por falta de encerramento adequado. Por outro lado, as crianças devem estar presas de modo tal que não possam escapulir-se por distracção dos pais, que, num exemplo recente, dormiam (nesta eventualidade, a criança pode ser detida por tempo indeterminado e sujeita a medidas coactivas ordenadas pelos tribunais, podendo mesmo ser condenada à perda da família, do nome e dos laços naturalísticos, com apropriação subsequente por terceiros, sob pretexto da lei de protecção de menores).

Cada indivíduo compreende com facilidade que deve fechar-se, fechar os seus. O estado não o protege, se não adopta medidas de segurança. Porém, a cultura da porta fechada não resiste ao estado. As acções de perseguição, fiscalização e apreensão não têm barreiras privadas. A penhora de bens, a busca domiciliária, a escuta electrónica, a detenção são sempre possíveis e, quando acontecem, são sempre plausíveis. Note-se que, salvo nos casos de espionagem (frequentes em demasia), as restantes medidas dependem de um ordem judicial ou de um pressuposto judicial. A plausibilidade ou adequação à lei é pois ostensiva, ocorrendo uma presunção de legalidade que a eventual constatação de falta de fundamento, ocorrendo no futuro, não pode já eliminar.

O estado modifica e subjuga o comportamento dos cidadãos, levando-os a fechar-se, enquanto abre e amplia os seus poderes de intrusão por via legal. Uma ou outra destas vertentes não será necessária; a imposição de ambas em simultâneo revela um dos aspectos fundamentais da acção do estado: obediência à lei que ele próprio cria e impõe, ou seja, desrespeito pela cultura de base, subordinação ideológica dos indivíduos. Veremos como se processa.

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