Hoje, montanheiro é o praticante de montanhismo. Diz-se nos dicionários de calão que o termo pode ser empregado como sinónimo de tacanho, atrasado, etc. Todavia, permanece ainda nas povoações marítimas do Algarve não apenas aquele sentido depreciativo, como mais propriamente querendo referir alguém que é de fora, que não pertence ao povo do lugar, no mesmo sentido que saloio representa para os lisboetas (http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/07/pag293_356.pdf). Amorim Girão, o geógrafo que tanto influenciou a cultura do século XX, terá reproduzido o termo como designação dos habitantes do barrocal algarvio, por oposição aos marítimos e aos serrenhos (http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/lingua/boletimfilologia/19/boletim19_pag369_376.pdf).
Na Fuzeta e noutras povoações ribeirinhas do Algarve, continua a dizer-se montanheiro em relação àquele que é do campo ou que revela imperícia nas coisas da pesca, mas não no sentido pejorativo. No entanto, o termo teve larga expressão na antiga rivalidade com a vizinha freguesia de Moncarapacho. Refere proprietários rurais, lavradores e, por extensão, todos os que trabalham a terra. Os marítimos estiveram dependentes dos poderes dos terra-tenentes para alçar as cabanas em que assentaram arraiais, constituir a paróquia, edificar em alvenaria, comerciar o pescado e remediar a fome nos longos períodos em que a maré foi madrasta. A Fuzeta esteve sob o controlo de autoridades militares ou civis forâneas e teve de mendigar o chão para se desenvolver. Parte da população, desde o século XVI, poderá ser oriunda de Ílhavo e de outros portos piscatórios da costa Norte de Portugal, arregimentados por senhores colonizadores de novos centros pesqueiros. Foi enriquecida pela míriade de gentes que foi ficando, vinda de todos os portos. Distingue-se dos moradores das terras vizinhas por essa origem distante e plural, conservada pela acérrima dedicação às artes da pesca e à cabotagem. Mas é marcada pela submissão aos poderes dos senhores da terra e das concessões de pesca.
Aqui, montanheiro tem o duplo sentido de estranho e de titular de direitos senhoriais. Ora, é nesta última acepção que aquela palavra foi empregue até ao século XVII. Montanhês qualificava o fidalgo de antiga linhagem, descendente dos visigodos, por referência às montanhas asturianas e cantábricas que defenderam o último reduto dos cristãos (assim mencionado, por exemplo, no Dom Quixote de La Mancha). No século XIX, caiu em desuso essa invocação das origens ancestrais, esse puxar dos pergaminhos para justificar uma superioridade pessoal. Camilo Castelo Branco arrasa tais pretensões, já no seu tempo serôdias, satirizando os pretenciosos que a invocavam de terem antepassados tão remotos, tão anteriores ao godos, que descendiam directamente dos macacos.
Reconhece-se então de que modo o termo montanheiro, se derivado de montanhês, se estendeu a toda a população ligada à terra, assumindo um sentido pejorativo, perdendo-se o sentido original. O declínio da antiga nobreza, a tomada dos cargos públicos pelos letrados, os ideais igualitários do liberalismo e a efectiva autonomia dos pescadores, que deixaram de depender de vínculos senhoriais, tornou irrisória a autoridade do fidalgo, em geral proprietário, e irrelevante a sua eventual ancestralidade.
O termo montanheiro tem vindo a perder o sentido pejorativo e, quiçá, irá gradualmente cair em desuso, até total desaparecimento. Raros são os que recordam os chistes grosseiros que antigamente apupavam os montanheiros: "montanheiro montanhal, comes caca de pardal" e "quando vejo um montanheiro, dá-me zanga de matá-lo"; ao que estes replicavam: "Mela da Fuzeta, comes tripa na gineta" e "bem lavada, mal lavada, comes tripa à colherada".
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