Duas culturas: uma, dos grandes espaços planos (mare liberum, desertos, estepes) onde se movimentam comunidades nómadas, semi-nómadas, guerreiras; outra, dos espaços estriados (mare clausum, povoados serranos) onde se alicerçam forças territorializadoras de presores. Esta, pode ser representada pelo castelo medieval; aquela, pelo burgo dos arrabaldes. Ambas coabitam sob o mesmo domínio do estado, essa entidade superior que merece profundo estudo. Ambas se deixam impregnar pelo mecanismo capitalista de distribuição da riqueza e de organização das povoações. E ambas resistem, a seu modo, à inovação. Os muros do castelo estendem-se em círculos sobre o arrabalde, até que, pela grandeza, se tornam desnecessários. O muro do castelo hoje é a linha imaginária que define o território de cada estado ou o limite de cada cidade.
Duas comunidades: uma, de portas e janelas voltadas para a rua, para o quintal, para o horizonte, que dorme de porta aberta e conta com os vizinhos em cada momento; outra, enclausurada, com torres de vigia, pátio privado, ferrolhos. Esta, disputando rivalidades com os vizinhos, desconfiada e às vezes traiçoeira; aquela, comunitarista, defendendo-se em bloco reactivamente. Ambas sujeitas a dobra, pelo duplo laço do estado e da máquina económica.
Duas políticas de repressão do furto: uma, absolutamente intolerante em relação aos atentados ao espaço privado da casa ou aos bens pessoais, infligindo penas de afastamento da comunidade, de degredo, consagrando o respeito pelo alheio como fundamento da vida em comum; outra, punindo os infractores em função do valor do furto, fazendo-os retribuir o prejuízo patrimonial mas consentindo na sua ressocialização. Esta, a política da cultura do presor em relação ao castelo murado do vizinho, pois, quanto a ele próprio, não abdica da vingança privada. Aquela, a política do clã, em que a vingança se confunde com a justiça pública.
Parece curioso constatar-se como o estado reforça o seu poder e se propaga até o interior de cada família, de cada indivíduo, jogando com os valores de cada uma daquelas culturas. Diz à primeira: convive com o que furta, mas protege-te; diz à segunda, protegemos-te, mas abdica da justiça privada. Nas mais ricas vilas turísticas da Europa, a noite cai como no subúrbio pobre da grande cidade. Trancam-se as portas, liga-se a vídeo-vigilância, não se circula na rua, o furto e a violência podem acontecer a qualquer momento. Os agentes dos crimes aguardam que se perca a esperança na sua ressocialização. Os tribunais penais regulam os fluxos da criminalidade em voz passiva.
O Código Penal é a mais forte expressão da política do estado sobre aquelas duas culturas e suas gentes - até inventou o "furto formigueiro". E diz: fecha a porta, protege-te, teme o teu vizinho, desconfia, não circules à noite. A noite, finalmente com fantasmas!
Impõe-se perguntar: que perdes quando temes? Que ganha o estado com o teu temor?
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