domingo, 30 de novembro de 2008

Litanias do Fogo e do Mar

O comum dos mortais pode aceder à música erudita. Na entrevista de 1991 para o Jornal de Letras, Emmanuel Nunes elucida que "a música não é uma especialidade, excepto para o compositor, o aluno e o professor" (http://homepage.mac.com/vitor.rua/iblog/C633734543/E1737581497/index.html). E "como todas as combinações são possíveis" carece de demonstração que todos os estudiosos consigam melhor compreensão de uma obra que qualquer curioso. Onde a erudição mais se expõe ao inverosímil é quando comenta uma obra de arte. Afastado o simples gosto e feito o enquadramento histórico, que pode dizer-se de uma peça musical? Parece que todas as palavras se tornam vazias e quanto mais profundidade pretendem alcançar, mais turvas se mostram (esta ligação entre o profundo e o turvo pertence a Nietzsche). Por isso, grande parte dos textos críticos recorrem à comparação, o mais pobre dos recursos estilísticos, e usam figuras da mitologia para saltarem de um som para um traço, de uma tonalidade para uma cor, num percurso que exige alguma cultura de base e muita desfaçatez.

Escrever sobre música é possível sim (leia-se Deleuze). Imaginemos Emmanuel Nunes nas aulas de Stockhausen: 5 horas seguidas a ouvir falar de música e, sendo já um especialista, ouvir embevecidamente. Um dom reservado a espíritos clarividentes. Até alguns compositores se perdem a tentar expor as estruturas formais das suas obras, ondas, curvas, simetrias triangulares, intersecção de planos, tudo processos de construção também utilizados noutras artes, que não podem explicar a substância, pois são mera forma. Mas pode criar-se a aparência de uma obra apenas densificando uma data estrutura formal: a pintura do século XIX ou a música contemporânea copiada por compositores menores - que tanto têm contribuído para empecilhar o caminho que os génios ainda desbravam. Como não gosto de António Pinho Vargas, apetece-me dizer que é um desses compositores menores. Além dos especialmente dotados, só os simples curiosos deveriam falar de música, para democratização e amplificação do auditório.

Litanias do Fogo e do Mar (os portugas subalternos gostam de escrever o título no francês original, como devem dizer ainda "Crime e Castigo" em russo), duas peças para piano de 1969 e 1971, de Emmanuel Nunes, são o supra sumo da música contemporânea, o expoente da criação, um matar do piano, que fica retido para sempre na repetição da obra, esgotado na ressonância. Somos nós que nos libertamos ao entregarmo-nos abertamente à audição. Absolutamente fantástico. É próprio das grandes obras não se darem à compreensão, mas ao deslumbramento. O véu para nós é presença indesvelável, atracção e projecção. Pobres dos que compreendem Guernica ou as Litanias.

A audição destas obras põe problemas técnicos que ultrapassam a sala do recital. Não há que limitar a criação artística. Sepilhar a obra de arte para a adaptar ao público seria um regresso à barbárie - e temo que alguns compositores, como Eurico Carrapatoso, tentem fazer essa ponte impossível sobre o Letes da criação. Há uma discrepância natural entre o génio e o gosto do público, que o tempo às vezes se encarrega de eliminar. A maioria actual não pode ser referência do valor da obra, pois não tem substrato, é mero acaso. Todavia, é possível melhorar a relação entre a música e o auditório. O espírito precisa de se afundar, como um barco ao fundear no mar alto, tarefa que não é compatível com a atenção prestada ao pianista no recital clássico. Em Emmanuel Nunes não há virtuosismo do pianista, há qualidade da interpretação tout court, como na época barroca. O auditório não deveria estar organizado em filas paralelas voltadas para o palco, deveria adoptar-se a posição reclinada (para a frente ou para trás) e cada espectador deveria estar totalmente fora da área de influência do vizinho. Pode ainda supor-se uma qualidade de som gravado tal que aconselhe a audição em privado, abolindo-se a execução ao vivo. Aqui seria deslumbrante uma pauta sonora - ideia que creio inédita - em que o ouvinte possa ver a escrita enquanto ouve a música, e tocar nas notas enquanto soam.

Um projecto para ipod com visor divulgaria a música contemporânea de um modo sem precedentes. Vá, reconheçam os créditos do copyright!

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