O episódio não merece a denúncia de Marc Ferro, na senda das desmistificações históricas que empreende, mas, na sua quase insignificância, é ilustrativo da composição oficial dos feitos dos políticos portugueses, do esquecimento dos factos à propaganda. Conta-se em breves palavras.
Na primeira eleição presidencial, de 1976, organiza-se um grande comício de Ramalho Eanes na Praça de Touros de Évora. Grupos de jovens esquerdistas apoiantes do candidato Otelo Saraiva de Carvalho, já habituados a tentar impedir as manifestações dos partidos de direita, concentram-se frente à entrada do recinto para vaiarem os adversários e, sobretudo, Eanes. Dezenas de seguranças privados com armas à cintura, que às vezes empunham, e alguns polícias criam uma zona de protecção em toda a envolvente, remetendo os manifestantes e os curiosos para o passeio junto ao jardim público. Num ambiente mexicanizado, alguns inocentes são estupidamente agredidos pela polícia (um homem que avisa um polícia de que um civil está armado; outro que pergunta pelo filho), enquanto pequenos grupos de manifestantes ganham fôlego para gritar. Terminado o comício, que teve grande participação, um carro abandona a Praça com Ramalho Eanes acenando através da abertura do tejadilho do banco traseiro, escoltado por seguranças a pé. Um coro de vaias e raras pedras repercutem-se na sua direcção. Eanes, herói da Guiné, eleva-se e chega a pôr-se de pé sobre o carro desafiando as pedras que, por sorte, não o atingem. Os seguranças desatam aos tiros, talvez meia dúzia de disparos. Os protestos suspendem-se e o carro parte. Um homem que, como tantos outros, assistia por curiosidade aos acontecimentos é atingido no abdómen e vem a falecer.
Aqueles factos foram presenciados por mim, também um curioso assistente, encontrando-me no tabuleiro central frente à Praça de Touros, junto a uma árvore e a um polícia, enquanto a vítima mortal estaria sentada no lado oposto, alguns metros adiante, sobre o muro do jardim. Ainda o vi ferido. Um forte pesar caiu sobre as gentes nos dias seguintes. Os disparos foram feitos na horizontal contra um magote de gente. Alguns acreditaram que seriam identificados os autores. A acção corajosa de Eanes, ostensiva, temerária e inconsequente foi a causa primeira. Não me apercebi de acções provocatórias de infiltrados ou de ajudas físicas a Eanes, como não recordo que os grupos esquerdistas tivessem apurado algum indício pertinente nesse sentido.
Com os fortes apoios políticos que reunia e a sólida campanha que desenvolveu, Ramalho Eanes ganhou a eleição, apesar do incidente, aliás abafado pelo ruído Matoso da campanha eleitoral. Consulte-se agora o Volume 8º da História de Portugal com direcção de José Mattoso, pp. 132-133, da autoria do Doutor José Medeiros Ferreira: “E será durante a campanha para as eleições presidenciais, no verão de 1976, que o então candidato general Ramalho Eanes ... se ergue sozinho numa viatura em andamento em pleno Alentejo para erradicar o medo que se viveria naquelas paragens... O gesto do futuro presidente da República destinava-se a ilustrar que, com ele, as leis se aplicariam em todo o país.” Da saída do comício, onde estivera rodeado de apoiantes, protegido pela segurança privada, frente a grupúsculos de jovens, passamos para o atravessamento do Alentejo inteiro, enquanto zona de opressão social e ofuscamento democrático!
Legitimada por tão errada interpretação dos factos – errada, mas não inocente – , e assente num diz que diz que ainda se encontra na net. A própria página da presidência da República (http://www.presidencia.pt/?idc=13&idi=24&action=7) assevera: Ramalho Eanes, “na tentativa de esbater divisões tão radicalizadas - ver os confrontos a tiro, de que resultou um morto, aquando da sua deslocação em campanha a Évora (18.6.1976) - afirma querer ser o "Presidente de todos os portugueses", mote que tem sido retomado pelos sucessores”. Os disparos dos seguranças do candidato passam a “confrontos a tiro”, emulação dos conflitos sociais que o Presidente resolveu. Na verdade, ter-se-á tratado apenas de uma reacção defensiva dos protectores pessoais de Eanes, perante o gesto inusitado e impulsivo que tomou, tão ao seu jeito. Se estivesse previamente delineada, deveria ter sido suspensa, para não causar maior animosidade social e para evitar, até, riscos físicos graves a Eanes.
Uma pequena mistificação, pouco importante, é verdade, mas que nos obriga a ponderar devidamente os textos de história e a autoridade dos historiadores. A história oficial serve.
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