terça-feira, 14 de julho de 2009
A Lista Negra
Há qualquer coisa de panasca na lista negra. O esquecimento é um dom, como Nietzsche ensinou. A força que se exerce enquanto tal é por si mesma destituída de memória. O alinhavo é circunstancial. Já o registo calculado dos sucessos é operativo. A lista negra difere da relação de factos pelo fim personalizado que visa atingir. A taxação dos indivíduos, seja pelo item familiar ou de jardim-escola, seja pelo quadro socio-político ou pelos acasos em que intervêm, descontextualiza e desestoriza. Dirias que seria mera consequência de uma tentativa de carreirismo. Mas enganas-te. A lista negra exige um coca-bichinho: um espírito recuado, fingido, oportunista, uma picha curtíssima, um ressabiado a saborear uma lenta vingança muito ocasional. E que, no entanto, cresce. Um golo de belo vinho entornado sobre uma mesa de requinte que se vai espalhando e infiltrando, ajavardando a madeira. A lista negra é uma doença. É um socialitismo tosco que se alambaza de um Estado dormente, mas envolvente como um lençol quente e húmido. O panasca da lista negra é um deficiente por falha de capacidade de renovação vital. Em vez de esquecer os sucessos, guarda-os; em vez de se recompor, recobra; em vez de se afirmar pelo que faz, afirma-se pelo que faz aos outros. Para ele não há história, há mesa de mistura e manetes estacionárias. É identificável pelos lábios inexpressivos, pelo olhar sempre indirecto, pela dobra do rosto quando confrontado, pela busca da posição de poder, ainda que agachado. E que, no entanto, cresce. Cada vez são mais. A lista negra alarga-se sob as suas mãos finas, quase secretas, onânicas. Dirias que também as há azuis, brancas, vermelhas e etc. Mas enganas-te. Todas as listas são negras. O panasca da lista negra é destituído da sensibilidade das cores, que também é a sensibilidade do amor (seria possível o amor sem o esquecimento?). Os indivíduos são registados a preto (preto memória, sem tinta) e apenas diferem entre si pela ordem das colunas e pelos itens castratórios. Tu, não tenhas ilusões, estás na lista negra, pelo menos numa. Olhos perscrutadores, prodígios da creche (ah, esse ressaibo inigualável dos tempos da creche que recalcitra perpetuamente os panascas da lista negra!), observam tudo e todos e catalogam, vigiam, aplicam e castigam. É a tarefa dos panascas da lista negra. São tantos e tão poderosos que apenas podemos esquecê-los. Esse, o dom que nos foi concedido. Como pardais, tenhamos porém presente a memória da perseguição: triste destino o dos pardais que o ignoram. A lista negra é uma arma de caça. Tem os seus guardas, os seus esbirros, os seus algozes, e os panascas pardacentos que, muito demoradamente, a elaboram. Carreira: palavra a abolir. De ora avante dir-se-á apenas caminho. Carreirismo passa a caminhismo. Não tropeçamos. Nunca apontes o pé que te rasteira. Olha em frente, segue, diminuído embora, não balbucies. Já estavas na lista negra, continuas pardal.
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