O capitalismo é um sistema que se resume numa frase: o dinheiro não chega. Há milhares de filmes com este tema: um casal apaixona-se e desavém-se porque lhe falta o essencial para o bem-estar (casa, trabalho, bens de consumo, viagens, liberdade). Ou então, anda feliz até encontrar uns tipos com falta de dinheiro que lhe fazem a vida negra. Os tribunais não versam sobre outra coisa: contas de telefone, perdas de património, chapadões caseiros e sacos azuis. Os ricos sofrem desalmadamente de carência financeira. Basta ver uma telenovela, com a família poderosa enrolada num problema sem solução. O supra sumo do capitalismo manifesta-se exemplarmente nos indigentes. Os que nada têm beneficiam de um programa de auxílio que os alimenta, no limiar de subsistência. Milhões de pessoas acantonadas em bairros sociais ou, bem pior, em campos de “refugiados” tomam a sopa e são seleccionados com pinças marcianas pelo sistema (um artola adopta uma criança, um cantor promove um single, um pau grande vai para a cidade, um meliante trafica, etc.). Os mais fortes vão para o exército ou para a polícia; os dóceis fazem trabalho comunitário, as mães criam, os pais fumam, a ONU queixa-se. Não há dinheiro. Os desempregados precisam que 23 buldozers destruam uma frente marítima ou um subúrbio para instalar um hotel ou um hipermercado. Cria-se emprego. Ganham acima do mínimo no primeiro ano. Um tipo inteligente selecciona o investimento graúdo, de acordo com o grau de destruição da natureza. Se criar suficiente emprego, o investidor pode ser subsidiado e tem carta amarela para eliminar os ratos das redondezas. As grandes empresas assim instaladas depressa descobrem: o dinheiro não chega. Ameaçam fechar e fecham. Subsidia-se a divisão do terreno para criar emprego. Nesta altura o governo é outro e tem uma política belíssima de renovação do emprego. A todos os desempregados, pensionistas e pobres a quem o dinheiro obviamente não chega, é prometido um futuro garantidamente flutuante, sobre um tapete de dinheiro insuficiente. As meninas da escola competem entre si em silêncio. São as únicas que sabem como podem escapar à dependência. A nota dá-lhes acesso a uma carreira, em posição vitalícia. Por isso marram e marram. Parecia a felicidade. Afinal, um dia, a nota não dá emprego. Tentam foder, mas não dá dinheiro. Vão para recepcionistas do congresso, fazem um estágio gratuito na UNESCO, conhecem dezenas de pirulas colocados na alta administração e nas empresas. Casam bem, têm três filhos de uma vez. Ah! Que bom. Um dia descobrem que o dinheiro não chega. O pirulas perde o emprego ou arranja outra. A grada função que têm desempenhado não retribui o bastante para suportar a escola privada do menino. Três outros pirulas andam só a papar, sem prometer nada. Um desespero. Por fim o preto, de ténis de marca americana. Ela perde a cabeça e entrega-se. Perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe. Disfarça. Os pirulas desaparecem, um para Angola onde arranjou um contrato que o vai tirar de agruras, outro para a terra, a gerir as heranças dos pais, dos avós e dos tios, absolutamente desenrascado mas murcho, o terceiro com uma estrangeira pobre que ama desalmadamente. O preto arranjou uma velha rica e dezasseis amigos do bairro social. É então que ela começa a fazer reiki, a gerir o tempo de trabalho com sisudez e a desconsiderar as colegas do serviço, aquelas tronças hipócritas, dito que remoçam de si para si umas para as outras. O administrador do condomínio pede obras no prédio. Cancela a viagem a Cabo Verde. Bolas, o dinheiro não chega. Olhando para toda a tua vida, nem as fodas escapam: o dinheiro esteve sempre presente enquanto problema. Até o Donald Trump, quando topou aquela miúda super gira, perdeu toneladas de massa. Não se pode tirar o olho do negócio. O rico precisa de tempo para conservar o dinheiro, que o mesmo é dizer, aumentar o pecúlio. O aumento dos ganhos é sempre relativo. Vem uma crise e o valor desce para metade. Fala-se com o Governo, subsidia-se as eleições, faz-se uma auto-estrada, aperta-se o cinto, obriga-se os outros a apertar o cinto, aumenta-se os preços, vende-se menos, compra-se menos, enfim, um sufoco. Vai-se para Veneza de paquete, a descansar. Veneza está pelas horas da morte. Caríssima. Até aquele empregadote dos quartos achou pouco a nota que a velha lhe deu. Não sei onde isto vai parar, para já. A pele envelhece, vou para a ginástica, aquela aula que frequentava, tão gira, já não se faz. Agora o sistema é outro, mais caro. Procuro cremes anti-rugas, os melhores claro. Há um com algas naturais de coral da ilha mais pura do Pacífico que custa quase o mesmo que um Fiat Panda. Ai, quem me dera tê-lo. Assim se vai o dinheiro. Não, preciso defender-me. Os empregados este ano não têm aumento. Besteira! Aumento-os, se trabalharem mais. Assim como assim, o dinheiro não chega. O empregado adestrado à cadeira progride pelo ascensor acima e volta para casa às 18h. A mulher chega depois, que vai buscar os filhos à escola. No final do dia, sentados frente ao televisor, disfarçam um beijo. O tipo diz, tou farto de ver ricos com problemas! E vai para o computador ver gajas esporradas, sem pretensão de tusa, mas de sono. A mulher suspira com uma visita à aldeia dos pais. Quem me dera a reforma, que aqui já não estava. Recebe o telefonema do filho que está no primeiro ano do primeiro emprego: o dinheiro não chega. Telefona para a Cofidis, para quem o dinheiro chega sempre e depressa. Pela manhã diz ao marido, como quem não quer a coisa, O João precisa de dinheiro, pensei na Cofidis. E ouve apenas, temos de pensar nisso. Os dias passam. A mulher opera sozinha com o telefone e desenrasca o filho. Um dia a conta bancária sofre um baque. O tipo, irado, barafusta: eu não tolero isto. E sai porta fora. Três meses depois estão divorciados. Duplicam a despesa, duas casas, dois carros, contas de telefone, água, luz, gás, namoros, jantares, etc. Felizmente o pai dele morre. Muda-se para a casa vazia, diminui a despesa. Dá-se conta que já não rende na cama, deixou de fumar, faz dieta, sobram-lhe uns trocos, e ajuda os filhos, em particular o João, agora a constituir família, com muitas dificuldades de dinheiro, que o emprego na Caixa é bom, mas não dá para tudo.
Nesta história já temos, pelo menos, três velhos. Velho é aquele que vive à conta do Estado sem trabalhar, mas com direito próprio a pensão. Com os descontos que fizeram, chega perfeitamente para as despesas. Viajam na INATEL. Vão aos bailes da associação. Apoiam muito o presidente da Câmara, sujeito atencioso. Um belo dia, um tropeça, outro sofre dum inchaço na barriga, outro tem um AVC. O dinheiro não chega. No hospital não prestam assistência suficiente. Sabem de uma clínica, caríssima em Barcelona que os põe como novos. Mas chegar lá! Tristes vidas, sempre a precisar de dinheiro e sem o ter. Donald Trump, pelo contrário, queixa-se dos cuidados em conservá-lo. Não pode passear no parque, com medo dos sequestros. Não pode falar à vontade sobre o Governo, com medo das represálias nos negócios. A mulher, lindíssima, não tem tempo para ele, mas montou um sistema de vigilância, a ver se o caça com outra. Passa o dia a dar ordens por telefone. Cada ordem é um Karma negativo na próxima vida. Logo agora que começou a acreditar nas reencarnações. Substitui o sistema de chefia directa, por administradores delegados bem pagos, que apenas reportam os resultados financeiros. No último ano perdeu metade da fortuna. Envelheceu, ou morreu ou vai morrer, caga bem ou com dificuldade, um bacano. Se dividir o dinheiro pelos conhecidos, cada um compra um Fiat Panda. Que diabo! O dinheiro não chega para um Rolls Royce. O dinheiro é um trauma. O sistema capitalista é isso mesmo, um dispêndio imenso de dinheiro, de energia, de natureza e de paisagem ecológica, uma morte anunciada. Se eu mandasse, acabava com o dinheiro.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
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