quinta-feira, 11 de junho de 2009

Raça e racismo em Portugal: Três momentos

Claude Lévi-Strauss, no brilhante ensaiosinho “Race et Histoire”, de 1952, demonstrou que, mais do que formada por diversas raças, a humanidade é formada por diferentes culturas, em evolução e transformação constante: “duas culturas elaboradas por homens pertencentes à mesma raça podem diferir mais que duas culturas de grupos raciais distantes” (p.11). E acrescenta: “A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e perante nós” (p. 85), diversidade essa que deve ser preservada, compreendida e promovida, num espaço de liberdade e tolerância. A segregação racial, a ideia de que o outro é estranho, a rejeição dos “selvagens” pertence propriamente e caracteriza o relacionamento das tribos primitivas entre si. “O bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie” (p. 22). A ideia de humanidade surge posteriormente.


No magistral “Capitalismo e Esquizofrenia”, Gilles Deleuze e Félix Guattari explicam que “O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca procedeu por exclusão, nem atribuição de alguém designado enquanto Outro” (II p. 232). “Não há exterior, não há gente de fora. Só há gente que devia ser como nós, e cujo crime é não o ser ... O racismo nunca detecta as partículas do outro, propaga as ondas do mesmo até à extinção do que não se deixa identificar” (II p. 233). Equacionando a dificuldade de obstar a que o tema da raça se transforme em racismo, em fascismo, em micro-fascismo ou mero folclore, apontam o critério pelo qual se manifesta o fenómeno: “A tribo-raça só existe ao nível de uma raça oprimida, e em nome de uma opressão a que se submete: só há raça inferior, minoritária, não há raça dominante, uma raça não se define pela sua pureza, mas, pelo contrário, pela impureza que um sistema de dominação lhe atribui. Bastardo e sangue misturado são os verdadeiros nomes da raça” (II p. 482).


Já em 1935 Edmund Husserl, pugnando embora por uma “humanidade europeia”, ensinava que “não há nenhuma zoologia dos povos” (p. 125) e rematava: “Todos os bem-queridos discursos sobre o espírito da comunidade, a vontade do povo, sobre ideais, sobre objectivos políticos das nações e coisas semelhantes, são romantismo e mitologia, provindos da transposição analógica de conceitos que só têm um sentido próprio na esfera pessoal individual (p. 146, in Europa: Crise e Renovação).


Quer-nos parecer que os ensinamentos daqueles grandes pensadores se enquadram neste país pequenino que partiu pelos mares em missão tribal. Povo feito de uma miríade de povos que se miscigenou e se fez ao mundo, querendo metê-lo dentro de si próprio. A identidade de Portugal é a sua multiplicidade, desdobrada pelas várias culturas que sufragou e transformou. Pouco ou nada conservamos hoje dos guerreiros que navegaram até à Índia, genética ou culturalmente. Faz-nos tanto mal o marialvismo serôdio dos nacionalistas do fim do século XIX, como o bafo de erudição que alguns estudiosos do saudosismo português vão continuando a projectar sobre a cultura (pensamos em especial nos mais cultos e estrangeirados, como Eduardo Lourenço). Não podemos orgulharmo-nos da Inquisição, como não podemos esconder os horrores da escravatura, da repressão religiosa ou do colonialismo. Aperfeiçoámo-nos ou, singelamente, pertencemos a uma cultura diferente, e em mudança. A história tem de ser revisitada, com os olhos do mundo, tomando as fontes universais.


O relacionamento dos portugueses com os povos africanos conhece três fases bem demarcadas: 1) a pré-colonial, caracterizada por contactos de comércio com povos nativos, inclusive por relações diplomáticas formais com os soberanos mais influentes, enquanto se estabeleceram colónias de portugueses em pontos fulcrais, sem ocupação da totalidade do território; 2) a fase colonial, caracterizada pelo domínio territorial militar sobre os nativos, com incursões violentas para destruição das estruturas tradicionais de poder, não obstante tivessem permanecido, nalgumas regiões, relações pré-coloniais; e 3) finalmente a fase da descolonização, com a retirada militar, o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos africanos e a assunção de um princípio geral de igualdade e de não discriminação por efeito da raça ou da origem étnica.
A primeira fase vai do início da expansão marítima até ao “mapa cor-de-rosa”; a segunda até ao 25 de Abril; a terceira até ao regresso dos “retornados”. Três episódios significativos ilustram cada uma daquelas fases, embora sejam tão envergonhadamente abordados pela historiografia portuguesa, que mais parece que não ultrapassámos ainda a fase da descolonização.


D. João II explorou pessoalmente o comércio com a Guiné, mormente fomentando a troca de ouro da Mina por conchas das Canárias (Maria Emília Madeira Santos, Os Africanos e o Mar, in Revista do Centro de estudos Africanos, São Paulo, 1997). Também o tráfico de escravos representava um aceso comércio entre os povos africanos e os mercadores portugueses. Os wolofs, povo que dominava uma vasta região que abrangia a Guiné, eram dos principais fornecedores de escravos, sequestrados das tribos vizinhas, de ouro e de outras riquezas. Tinham uma forte organização política, hierarquizada e assente numa monarquia. Em 1488, na sequência de dissidências e lutas internas, um príncipe wolof, Buumi Jeleen, apesar de derrotado, tenta formar uma aliança com D. João II para combater os adversários (Vd. Cabo Verde, Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo, diversos autores). Vem então a Portugal com uma comitiva de 30 pessoas. É recebido com pompa e circunstância por D. João II, que lhe promete apoio. A 3 de Novembro de 1488 é baptizado, condição essencial para ser reconhecido como igual e indispensável para celebrar qualquer acordo. É armado cavaleiro e toma o nome de João Bemoim, príncipe dos jalofos, termo pelo qual os portugueses nomeavam os wolofs. Regressa a África com a impossível missão de evangelizar os wolofs, há muito convertidos ao muçulmanismo. Quando se iniciava a construção da fortaleza da foz do Senegal, por motivos não apurados, foi morto à punhalada pelo comandante português Pêro Vaz da Cunha (L. Adão da Fonseca, D. João II, pp. 134 e ss.). Temos pois um momento marcante da fase pré-colonial, que encaixa no conceito supra expendido de racismo europeu: a exigência de baptismo como condição de pertença à humanidade.


O segundo momento é bem conhecido, embora habitualmente narrado em tom de fervor patriótico, que não impede a profusão de erros. Em 1884 Mdungazwe, num ambiente de guerra civil, conquista o trono do império de Gaza, Moçambique, do povo nguni, que os portugueses denominam de vátuas. Toma então o nome de Ngungunhane, Gungunhana em português. Na sequência da política de partilha de África pelas grandes potências europeias, estabelecida na Conferência de Berlim de 1884-1885, Portugal tenta obter reconhecimento internacional para uma colónia gigantesca que ligava Moçambique a Angola. Neste quadro, promove inúmeras relações diplomáticas de protecção e vassalagem com os povos e reinos locais. A oposição de Inglaterra, que culminou no ultimato de 1890, forçou Portugal a quedar-se com os actuais territórios de Moçambique e de Angola, gerando uma onda de indignação nacionalista entre os portugueses. O território de Gaza fervilhava de incidentes militares, com incursões dos boers e de tribos desavindas. Gungunhana oferecia forte resistência aos portugueses, que, à força de metralha, conseguem derrotar os guerreiros ngunis em Coolela, a 7 de Novembro de 1895, e destroem Mandlakasi, capital do império de Gaza. Gungunhana retira-se para Chaimite, aldeia sagrada dos ngunis. Seguindo a política de pacificação, “o Governo deu por finda a expedição” e nomeou Mouzinho de Albuquerque Governador de Gaza. Porém, Mouzinho insubordinou-se e, reunindo uma força com alguns milhares de homens (cerca de 53 portugueses, alguns boers e muitos indígenas), ataca Chaimite e aprisiona Gungunhana. O feito inflama o patriotismo. Cerca de dois meses depois, a 13 de Março de 1896, Gungunhana e a família são ignominiosamente expostos numa jaula através das ruas de Lisboa, perante o gáudio medieval da população. Mouzinho não consegue autorização para os fuzilar, que Portugal havia abolido a pena de morte. Presos no forte de Monsanto, os homens acabam desterrados para a Ilha Terceira, separados das mulheres que são, por sua vez, desterradas para S. Tomé e Angola. Num gesto semelhante ao praticado com João Bemoim, Gungunhana é baptizado e é-lhe dado o nome de Reynaldo Frederico. Morre 10 anos depois.


A região de Gaza continuou a resistir militarmente à ocupação portuguesa, pelo menos até 1910. Mas, o patriotismo oco e cruel daquele momento é sustentado por longos anos, louvando-se Mouzinho de Albuquerque como um herói. O Estado Novo elege-o como símbolo do colonialismo e comemora o “dia de Mouzinho”, a partir de 1935. Em 1985, numa cerimónia oficial, algumas ossadas são atribuídas a Gungunhana e enviadas para Moçambique, onde se realiza uma cerimónia fúnebre (Fontes: Rui Ramos, in História de Portugal, Direcção de José Mattoso, VI, em especial p. 322; Wikipedia, em inglês e português, Gungunhana; Carlos Pinto Santos, in http://www.vidaslusofonas.pt/ngungunhane.htm; etc.).


Como se sabe, o terceiro momento ainda não está concluído. Não se aguarda apenas a integração plena dos africanos que vivem em Portugal ou o reconhecimento daqueles que serviram o exército português, questões que talvez se devam mais à pobreza em geral que a uma política orientada. É todo um discurso patriótico assente na guerra de África que, quando em vez, brota com autoridade. É o discurso oficial do estado que sobreleva os feitos coloniais remotos de Afonso de Albuquerque e outros, enquanto remete para um delicado limbo os feitos de Mouzinho de Albuquerque. É a exaltação de um heroísmo militar, afinal dependente da fraqueza do inimigo, que se projecta no discurso político oficial. Neste aspecto também o 25 de Abril fracassou e não parece conter já qualquer chispa de luz que permita apontar um caminho. Fomos libertados da guerra, mas não dos seus fantasmas. Não será com o 10 de Junho e com a tardia exortação daqueles que saíram da pátria para ganhar o pão que se suplantará esta falha (no sentido geológico do termo, diáclase). Camões não está aí.

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