Em quase todas as questões somos empurrados para a bipolaridade de opiniões, antagonismo, dualismo, um processo redutor e manipulador que forma maniqueísmos e abafa o debate livre. A propósito do casamento gay, o vulgar cidadão é forçado a mostrar-se liberal ou conservador, mas, subliminarmente, é na verdade forçado a não ter posição sobre mais nada, e há muito a questionar sobre o casamento.
Dispõe o artigo 1577 do Código Civil que “casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”. A alteração que se pretende introduzir copia a já vigente em Espanha e consiste apenas na eliminação da expressão “de sexo diferente”. Ressuma à evidência que, com tal alteração, não se permite apenas o casamento gay, mas todas as uniões entre duas pessoas, independentemente da orientação sexual, inclusive de qualquer intenção sexual ou de qualquer exclusividade da relação sexual.
Actualmente, é permitido o casamento de duas pessoas de sexo diferente ainda que não pretendam ter relações sexuais, ou mesmo que as pretendam manter com outros (o dever de fidelidade tem natureza interna e não pode ser sindicado por estranhos, sendo completamente irrelevante o adultério se ambos os cônjuges nisso consentirem). A alteração proposta amplia o leque de opções.
Dois velhotes num lar, tendo um direito a pensão de reforma e outro não, podem ser tentados a casar para que um deles passe a beneficiar da pensão de viuvez. Hoje, estes casamentos são frequentes entre homem e mulher; amanhã, podem ser celebrados entre duas mulheres ou entre dois homens. De igual modo, o casamento pode ser celebrado para obter ganhos no IRS (compensação de rendimentos e benefícios), na nacionalidade (aquisição e residência), no trabalho (direito a faltas para cuidar da família), na habitação (descontos nos encargos, candidatura a casa social, transmissão por morte, etc.), nas sucessões (o cônjuge é herdeiro em concurso com os filhos). Também pode ser celebrado apenas para partilhar a casa, formar uma economia comum entre dois amigos ou amigas, ou, já hoje, entre uma amiga e um amigo.
Evidentemente, tais situações podem ser constituídas para defraudar a lei (redes casamenteiras para naturalizar estrangeiros, burlas para prejudicar a legítima nas heranças ou para obter ganhos ilícitos da segurança social, etc.). Daí que os Estados tenham vindo a implementar esquemas de fiscalização e controlo do casamento, actividade que implica necessariamente a devassa da vida interna do casal. É esta a grande novidade da alteração à lei do casamento: a generalização da fiscalização da vida privada à casa de cada casal, muito à semelhança do que cada vez mais acontece na fiscalização dos cuidados com os filhos, com os idosos, com as mulheres, com a doença, etc.
O Estado venceu a última barreira da privacidade: a família. O controlo deixou de ser exercido apenas sobre o pai ou sobre a mãe, para se estender à própria existência do casal em si mesmo. É por isso que o casamento gay apenas tem sido adoptado pelos Estados que têm já em vigor sistemas legais de fiscalização e de sanção da fraude no casamento. Teme-se todavia que tais sistemas se aperfeiçoem e invadam mais completamente a vida de cada um.
Não vale contra argumentar com a normalidade (é precisamente aquela senhora que nunca dizia a palavra merda que mais corre o risco de ser processada por injúria: chama a atenção). O facto de te achares tão normal, ao ponto de não perceberes a diferença, assusta quem é capaz de reflectir. Os primeiros visados vão ser precisamente os gays, pelo menos os que não forem suficientemente independentes dos circunstancialismos sociais.
Os grandes prejudicados no imediato serão todos os que vivem em união de facto, instituto que tenderá a perder reconhecimento social face ao casamento. A união de facto é definida pela lei como a comunhão de vida "em condições análogas à dos cônjuges" e são essas condições que estão em transmutação, sujeitas a reconhecimento caso a caso. Será mais vantajoso o casamento, que aliás permite hoje uma desvinculação bem mais fácil e rápida do que a união de facto, que, nos conflitos, pode transformar-se num inferno judicial.
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
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