domingo, 28 de fevereiro de 2010

Bem hajam madeirenses

Poucos vídeos exemplificam melhor: na sequência do sismo do Chile, um repórter bem parecido comenta as pilhagens a um supermercado, “isto é furto”, afirma perante um grupo que carrega um frigorífico; centenas de pessoas desesperam por água, mas a polícia bloqueia o acesso aos armazéns que a guardam. A loja está fechada, o teu desejo não pode realizar-se. A lei, isto é, o direito de propriedade, está acima da sede. O jornalista representa a consciência colectiva desse respeito à lei. A violência do Estado “apresenta-se sempre como já cometida” (disse-o Deleuze). Apenas releva a violência da tua sede. Não interessa que, em condições normais, a loja deva estar aberta ou que tenhas dinheiro para pagar.
Portugal distingue-se pelos donativos aos necessitados. Na crise do Haiti, superou os donativos da Itália, cinco vezes maior e mais rica. Não te interrogues: tanta pobreza que por aqui sobrevive não esgota os recursos dos abnegados corações dos doadores. Parece que reservam o excedente para desgraças bíblicas e alheias. Mais importante é observar que os doadores são, precisamente porque doam, isto é, porque dispõem, os principais beneficiários de um sistema que leva à acumulação improdutiva de recursos. Mas o que tens pode perecer num ápice.
Então carregas esse rancor da responsabilização. Afectado por uma calamidade, nada mais fácil e concretamente eficaz que apontares os erros do planeamento. Até já andas de antemão, ante as desgraças longínquas, de dedo em riste: a responsabilidade é de! Tu, um juiz que ninguém quer, um merdas, desculpa lá, ó amealhador. Sabes lá o que é o planeamento, esse monstro estatal (um exemplo da força da natureza contra a previsão dos especialistas, que também pondera as opiniões sobre os riscos, é contado em http://cefariazores.wordpress.com/2010/02/22/ordenamento-do-territorio-e-catastrofes/).
Vives num país desarticulado, votas nas decisões principais que nele se tomam, mas não baixas o dedo, nem perante a catástrofe da natura. O que chamas de responsabilidade, é ressentimento. Precisas de um sacerdote que te mude a direcção do dedo, como ensinou Nietzsche. O responsável és tu. Poderias lá eliminar-te a ti próprio para desafogares a natureza do empecilho da tua presença, da tua casa, do teu carro e do teu emprego!
É perante este povo de dedo em riste, que a Madeira se ergue da intempérie arrasadora (A densidade populacional da região do Funchal é de 1.500 hab./km², acantonada nas encostas de montanhas vulcânicas; a única região de Portugal que venceu o flagelo da emigração). Gente tenaz, destemida, abnegada, tomando nos braços o destino, mostrando ao mundo uma capacidade própria de regeneração difícil de ver. Bem hajam madeirenses!