sábado, 19 de junho de 2010

A derrelicção de Saramago

Bem repetiu que a morte esgotava derradeiramente a vida. Acreditava na derrelicção. No entanto, assenta-lhe bem a sentença de Kierkegaard: “num belo dia a morte chega – e, de repente, o homem torna-se imortal”. A sua obra literária conseguiu saltar a fronteira do portugalismo e conviverá longamente com os grandes do mundo. Não pode dizer-se que por mero acaso. Saramago buscou um caminho novo para o homem ocidental: liberto da religião, senhor do seu destino, mas comprometido com o seu semelhante, segundo uma ética igualitária. Abalançou-se a pensar originalmente a problemática da bíblia – um luxo dos artistas consagrados, inclusive de cineastas como Godard e Scorcese. Não se coibiu de empregar a sua escrita encantatória, prolixa, urdida, nessa tarefa mais adequada à filosofia que à literatura.

Fez-se herege. Em boa verdade, não provocou polémica alguma, que no Ocidente a religião está razoavelmente domesticada. Esteve longe dos riscos que afectam Salman Rushdie e pôde ascender aos altares profanos do Nobel e das academias. Incorreu em heresia porque ignorou Bento Espinosa, o génio que retirou carácter divino ao Pentateuco, separou a filosofia da teologia e fundou uma ética de libertação. Escamoteou Goethe e o seu Fausto, o homem que tomou nas mãos o próprio destino, guiado apenas pela ciência e pelo temor, fundando o homem contemporâneo. Teorizou sobre Caim, falhando o drama do Abraão de Kierkegaard. Afinal, soçobrou na fé, na paixão existencialista. Fez-se, por isso, grande, num mundo de descrentes temerosos. É justamente enaltecido pelos poderosos, ele, que protestou contra a fome e a opressão.

Saramago atingiu o auge com “Levantados do Chão”, um romance extraordinário, com estrutura arrojada e escrita soberba, que ficciona um purgatório existencial onde os oprimidos forjam as próprias almas e, com elas, alcançam a liberdade. Não pode tomar-se como testemunho da realidade dos rurais alentejanos, que aparece muito distorcida em vista do fim literário, mas pode ler-se aí o início da saga que marcará as suas obras seguintes.

O tema apresenta-se mais concretizado no “Memorial do Convento” que, num cenário mafrense, repleto de questões liberais de oitocentos (igualdade, liberdade, fraternidade) encena uma conversão religiosa (que acaba falhada) de tipo existencialista, “baseada não na aceitação de Deus, mas na liberdade absoluta da vontade de rejeitar o mal” e de conferir um significado próprio à vida. Até parece que transporta para Portugal o romance “Sartor Resartus” de Thomas Carlyle, de 1833, não só no tema, mas também no emprego do realismo mágico, na heroína (Blimunda no Memorial e Blumine no Sartor) de olhos lindos e de poderes extra-sensoriais.

Saramago apela ao sentimento, faz chorar, comove. É um opressor. A comiseração impede a libertação. Acudam aos pobres e necessitados, diz ele, tal como um padre. Dois mil anos de pedidos de ajuda, toneladas infindáveis de literatura – e nada!

É cedo para comparações, mas não se retire ainda da mesinha de cabeceira o Camilo de “Memórias do Cárcere” ou o Pessoa do “Livro do Desassossego”. Saramago, no entanto, merece uma feliz despedida: Sit tibi terra levis.