“O Estado Novo em Questão”, livro organizado por Nuno Domingos e Victor Pereira (edições 70, 2010), reúne bons ensaios sobre o salazarismo, numa perspectiva limpa de antigos modelos ideológicos, muito bem escritos e bem documentados.
Sobre a emigração para França – aquela operação clandestina que levou para os bidons villes franceses um milhão de portugueses pobres – constata que, ao contrário do que se pensava anteriormente, Salazar não controlou pessoalmente a política de emigração, verificando-se uma espécie de “status quo tácito” entre o presidente do conselho e o presidente da junta de emigração (p. 58).
Notamos nós porém que aquele aspecto, se pode surpreender os que acreditavam na omnisciência do ditador ou os que se inclinam a apontar alguma fraqueza, representa um verdadeiro mecanismo do poder absoluto.
Foi a teocracia papal que instalou a técnica de delegação de poderes do soberano para o núncio, que decide sem necessidade de ordem expressa. A técnica chama-se vivae voce oraculo (Paolo Prodi, Uma História da Justiça, p. 314). Mesmo nos governos democráticos se assiste a tal mecanismo, sobretudo para a tomada de medidas inconvenientes para a imagem do poder. O representante actua na conformidade com o espírito do sistema ou com a “legalidade”.
Ora, o que interessa esclarecer no caso de Salazar é por que é que a emigração se fazia clandestinamente. Não poderiam ser fechadas as fronteiras? Como foram legalizados em França os sens papiers? Aqui, parece-nos que as explicações adiantadas no estudo supra referenciado – cuidados com as forças agrárias locais que pretendiam conservar mão-de-obra barata – são insuficientes.
A agricultura estava em declínio (por razões complexas que explicaremos noutro lugar), dispensava braços e inclusive agricultores. Era necessário agir paulatinamente para que não se instalassem rupturas e radicalismos. Assim, o que se fez foi assegurar um lento definhar do meio rural – que ainda continua.
Portugal estava em guerra colonial e tinha gente rural em excesso que não conseguia empregar. Se a conservasse no território nacional ou se a remetesse para as colónias, sofreria inevitavelmente uma crise social e política. A França precisava de braços, mas não podia celebrar um acordo oficial com um país fascista em guerra em matéria tão sensível. O que então fizeram, um e outro, foi fingir que não viam e colaborar tacitamente.
Os actos de governo de tal processo são, como se infere, muito simples. Salazar até podia estar relativamente senil e desactualizado (ob.cit. p.58). Uma espécie de papa.
Gostaríamos muito, permita-se a confissão, de poder colaborar com tão eméritos autores. A crítica é positiva.