sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Rever o laxismo dos políticos

O discurso político português apresenta-se tão pobre e repetitivo que suscita medidas de revisão e aprofundamento. Cremos que o debate, qualquer debate, pressupõe o conhecimento da denotação das palavras e das referências implícitas nas frases. Poucos termos colhem franca difusão da esquerda à direita como “laxismo”. Não há cidadão que, apontando a displicência da administração, não a acuse de laxista. E não haverá político que não se socorra do termo para exigir ou impor disciplina, para verberar contra alguma desordem. Em França e no Brasil não é muito diferente. Parece um pouco ridículo, vejamos porquê.


O laxismo ganhou o sentido de “tendência para fugir ao dever”, incúria, ou falta de respeito pelas normas morais depois de ter sido proibido pela Igreja Católica no final do século XVII. Tal extensão de sentido atingiu plena alforria no calor da luta que os déspotas europeus travaram contra os jesuítas, para lhes retirarem o controlo do ensino e a influência sobre o direito e o poder. O Marquês de Pombal expulsou-os em 1759, seguido poucos anos depois pelos reis de França e Espanha. O papa Clemente XIV acabou por ilegalizar os jesuítas em 1773. Segundo Paolo Prodi (Uma História da Justiça, Ed. Estampa), não é bem certo que os jesuítas fossem dominados pelo laxismo, sendo obsoletas tais classificações (p. 372).

Repare como hoje em dia associamos os jesuítas a autoridade pura e dura e laxismo a desprezo pelas leis e regras morais. Uma contradição que (para rimar) chama a atenção! É preciso chegar à denotação original e esquecer o sentido pejorativo que o poder (que nunca se esquece do poder das palavras) lhe acrescentou.

A partir do século XVI, o absolutismo começou a dominar o Estado e as técnicas de governo passaram a invadir cada vez mais a esfera privada. Simultaneamente, o direito, a moral social, os valores económicos começaram a separar-se da crença divina. Os textos sagrados foram progressivamente reservados à vida espiritual, desaparecia a consciência colectiva e ressurgia a consciência individual, a relação directa do indivíduo com a intermediação de um projecto de salvação – o que será um dos temas principais da Reforma luterana e calvinista, como da Contra-Reforma. O direito positivo, que advém directamente da lei escrita e esta do poder do Estado, afirmava-se enquanto direito nacional, o que o relativizava quando comparado Estado a Estado. Ora, o relativismo das normas (por exemplo, o que pode ser crime num Estado, pode ser consentido noutro) estava contra o projecto de uma cristandade única, ainda alimentado pelas igrejas. Por outro lado, os Estados impunham cada vez maior controlo sobre as consciências individuais, chamando a si a autoridade dos padres das igrejas, formando o que se conhece hoje como igrejas nacionais, católicas ou protestantes.

Naquele quadro, em que a profusão de situações de vida se vai multiplicando, bem como as leis e as doutrinas, nasce a tendência para buscar a solução do caso concreto por aplicação directa de princípios morais formulados a partir da interpretação dos textos sagrados, princípios esses que deveriam guiar a conduta dos homens ao longo da vida. A casuística dominará o pensamento jurídico até ao século XIX. Porém, é sujeita a diferentes entendimentos: os rigoristas defendiam normas gerais aplicáveis sem atender às particularidades de cada caso, nem mediadas pelas circunstâncias sociais; os laxistas reservavam as questões de consciência individual para a intimidade da relação com Deus e propunham o probabilismo, num certo sentido, uma “ética minimalista”, pela qual a norma não podia ser aplicada na sua dureza, se não correspondesse a um certo grau de culpa, a qual deveria ser apreciada caso a caso em conformidade com pareceres autorizados. Estas correntes tiveram numerosas variantes (em Portugal, quase todos os teóricos minoritários foram perseguidos e muitos foram mortos. As suas vidas foram relatadas em processos falsos com o propósito de os denegrir – ainda hoje há quem cite tais processos como verdades indiscutíveis sem se aperceberem do crime que cometem contra a memória daquelas vítimas).

Como encontrar o princípio moral mais adequado para julgar um homem que praticou uma acção punida num Estado com a morte, com o degredo noutro e consentida noutro ainda? Deve ou não distinguir-se aquele que comete um crime com intenção esclarecida daquele que comete crime idêntico por erro ou desmazelo? É possível construir um sistema moral único que regule todos os homens? A moral serve apenas para fundar as punições ou deve regular o comportamento dos homens de acordo com o Bem? São estas as questões fulcrais que atravessam aquelas polémicas e que actualmente exigem reponderação.

Evidentemente, os Estados nação, como o papado, não contemporizam com interpretações que diminuam e reexaminem o poder das suas leis e das suas autoridades. Perseguem os tolerantes. A igreja, de igual modo, perseguiu os laxistas, pois a moral que então defendia assentava numa “teologia papal” e em normas positivas que exigiam obediência a todos os crentes, em especial aos padres. “A ordem moral afasta-se definitivamente da ordem jurídica” (ob.cit., p. 376). Nasce o positivismo.

Laxismo não significa desregramento moral, mas busca continuada da moral. Logo, não é amoral, nem se confunde com a falta de restrições morais ou com permissividade. Dentro do casuísmo, difere do rigorismo por não assentar em dogmas e admitir que o sistema de normas possa evoluir, recebendo novos princípios e valores produzidos não pelo autoridade do soberano, mas pelo esforço de interpretação. No sentido político, é pois um sinónimo de tolerância

Tem piada que os políticos tragam a acusação de laxista na ponta da língua, pondo-se a defender o rigor do Estado, a aplicação firme das suas punições e que o povo, tantas vezes castigado, os aplauda, enquanto as leis e até os princípios enformadores do Estado se atropelam em alterações contraditórias, mudando ao sabor das correntes – e são tantas!

Viver na deriva e não dar por ela…

Sem comentários: