sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Fuzeta: a barra do descontentamento

Movimenta-se em Olhão um grupo muito tenso, muito petulante e ostensivo, que acha que faz política ofendendo e disparando disparates à toa. O alvo da crítica é tudo o que mexa. Havendo zum-zum, fazem brado. Olhão no seu melhor pede meças a Gustave le Bon. Têm agora o bom pretexto de o Estado ter finalmente um plano de desenvolvimento para a Fuzeta. Os jornais dão-lhes eco e uma entidade abstracta que dá pelo nome de “pescadores da Fuzeta” serve-lhes de escudo invisível.

No Verão passado, as máquinas recuperaram cerca de mil metros de cordão dunar e abriram uma nova barra – no local previsto há longos anos. Tratou-se de uma intervenção de emergência para evitar que a continuação do mau tempo no corrente inverno viesse a destruir a belíssima ilha que dá praia e ria, abrigo e fonte de riqueza. A abertura da barra representa uma pequena parcela dos custos do conjunto da obra. Todavia, não houve tempo (na dupla acepção de clima e de cronologia) para consolidar a nova barra. Os vendavais têm fustigado a costa – estamos hoje sob uma forte suestada. Formaram-se cabeços de areia ou assoreamentos que dificultam a navegação. A sociedade Polis, que gere a obra, anunciou novos trabalhos para breve – que devem passar pelo reforço Nascente da ilha e pelo encerramento da barra natural que aí existe.

A Fuzeta precisa de uma barra operativa, se necessário com molhes de protecção. Mas todos compreendem que a construção de molhes é um trabalho difícil e moroso, que deve ser precedido da confirmação do bom funcionamento da barra a proteger. Assim se fez, há cem anos, com as barras de Faro/Olhão e de Tavira. Se a barra actual não funcionar, tem de procurar-se outro local; e se se confirmar, tem de estudar-se a eventual colocação dos molhes. Não basta “pôr pedra”, como tem sido dito irresponsavelmente. A pedra amontoada não resiste à força do mar. Os molhes são estruturas complexas que não se fazem com palavras.

Essa entidade abstracta “pescadores”, construída ao gosto da oportunidade jornalística, que ouve, mais ou menos antes ou depois do almoço, um ou outro sabichão, caindo no cerco que Gustave le Bon tão bem explicou, ouvindo zunir, urra, e de tanto querer uma barra com molhe, junta-se à molhada das vozes insanas de Olhão, ficando a gritar que o dinheiro aplicado na Fuzeta foi mal empregue. Estou certo que não sabem o que dizem, se o dizem mesmo ou se o papagaio não é uma invenção jornalística.

Admitindo um pescador ideal, puro e experiente, teremos de concluir que se especializou na pesca; logo, não é especialista em barras. Como ao longo dos anos a ilha foi variando em forma e feitio, a experiência que pode ter acumulado pela observação (se a memória não se lhe toldar depois do almoço), pouco pode saber do que deu causa à forma que a ilha actualmente tomou. Isto é: a descrição da história de um fenómeno não permite, por si, construir uma teoria que retroprojecte a formação anterior ou que projecte a evolução futura – salvo por aproximação. Logo a experiência não é um modelo, nem constitui um saber, para além do que permite descrever o passado. Acresce que a memória é muito traiçoeira, relevando no caso a falta de precisão da descrição das velocidades de avanço da barra, que não evoluiu por igual ao longo dos últimos 50 anos. Ora, tais problemas estão devidamente estudados. Pode perceber-se com maior rigor o que tem acontecido no local pelo estudo da cartografia e pelo estudo da dinâmica do mar e da ilha. Neste particular, Portugal tem alguns especialistas de renome. Os pescadores devem ouvi-los, antes de tomarem posição.

O grupo de Olhão insinuou que a Polis fechou a barra natural aberta pela fúria do mar no final do inverno passado apenas por temer que o mar pudesse vir a atingir os edifícios construídos recentemente na frente ribeirinha da Fuzeta. Querem dizer que, se não fossem os novos edifícios, nada havia a proteger? Das duas, uma: ou aquela barra podia afectar a Fuzeta, com ou sem casas, ou não podia. Na primeira hipótese, a barra tinha de ser fechada; na segunda, podia continuar aberta. Agora, relacionar o fecho da barra com os novos edifícios é de baixa política. Se acham que os edifícios estão a mais, mexam-se, protejam a Fuzeta; se acham que o mar podia afectar a Fuzeta, concordem com a decisão de fechar a barra.

Poderá talvez ter-se por assente que a barra progride naturalmente de Poente para Nascente, no sentido do vento dominante. Partindo desta premissa, parece evidente que não podia manter-se a barra onde o mar a abriu, mesmo em cima da zona balnear, em frente da Fuzeta. A praia seria permanentemente afectada pela instabilidade e insegurança das areias e das correntes. O trânsito de embarcações seria, mais tarde ou mais cedo, prejudicado pelos cordões dunares internos da ria. É importante notar que o canal de navegação existente seria assoreado pelo delta da enchente, enquanto a barra continuasse naquele lugar; e quando a barra se desviasse, não haveria canal algum. Pretende-se uma barra estável, que divague o mínimo possível. Daí a abertura actual.

A actual situação será transitória, espera-se, mas é desagradável. Cabe porém perguntar onde andava a turba olhanense e os seus pescadores arquétipos, tomados depois de almoço pelo microfone do jornalista, quando desde a prometida barra de Henrique Tenreiro e ,depois, de Mário Soares, assistiram à perda da frota pesqueira da Fuzeta, ao definhar da povoação, à morte por santa velhice dos intrépidos pescadores de outrora – esses sim, arquétipos heróicos – e aos ocasionais naufrágios que ceifaram vidas por causa da porra da barra que divaga, como divagam os tolos? Melhor: não se pergunte por onde andaram, pergunte-se por onde andam. Quedem-se, que destroem o resto.

Um bem haja à sociedade Polis Ria Formosa e aos seus administradores.

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