quarta-feira, 29 de abril de 2009

A escort da Compal

O texto panfletário sobre o 25 de Abril exige explicação, que está ideada. Mas a graça da publicidade impele-me ainda para um comentário aparentemente distante (uma citação de Duverger no próximo artigo demonstrará a grandeza da aparência).

O anuncio passa exaustivamente na TV, por ora. Pode vê-lo melhor em http://www.youtube.com/watch?v=s8Bq4bdgJcw&eurl=http%3A%2F%2Fchaparralblog.wordpress.com%2Fcategory%2Fanuncios-da-tv%2F&feature=player_embedded.

Uma mulher jovem e bonita dança ao som de Katrina And The Waves - Walking On Sunshine Lyrics. O apartamento é luxuoso, num arranha-céus de Manhattan. Sai do duche com uma simples toalha e, tomando a embalagem da canção, rodopia despreocupadamente pela sala. Empregados de escritório de um edifício fronteiro extasiam-se com a cena. A jovem apercebe-se, olha-os de frente e deixa cair a toalha. E bebe provocadoramente o sumo de ananás da Compal.

Interpretando: a decoração do apartamento, pela exuberância, exclui a possibilidade de pertencer a um hotel e, pela frieza dos elementos, exclui também a possibilidade de se tratar da residência da jovem (note-se, além do mais, a casa de banho despojada). Por se deixar surpreender pelos vizinhos cuscos, podemos concluir que desconhecia que poderia ser observada tão facilmente. Pela pobreza dos alimentos, apenas sumo Compal e ananás, adivinhamos que não toma o pequeno almoço, nem um lanche, mas uma simples bebida. Os rolos de projectos de arquitectura e a maquete, no centro, e ainda os desenhos emoldurados, sob as janelas, revelam que o apartamento pertence a um projectista ou executivo da área. A sobriedade do estilo, o cuidado viril e a profusão de riquismos indiciam que o dono do apartamento é um homem. Conjectura-se que a jovem não mora no apartamento, que está de passagem e que o dono talvez esteja no quarto. Sentindo-se surpreendida pelos mirones, a reacção da jovem é ostensiva.

Trata-se de um caso de publicidade dentro da publicidade. A Compal aproveita a publicidade (promoção) que a jovem faz de si própria, para se promover, exibindo reforçadamente a marca do sumo. A questão que se levanta é a de apurar a validade de tal posicionamento no mercado: provavelmente nulo.

Quando Paulo Rangel, no recente livro, questiona o estilhar do Estado por uma miríade de poderes divergentes e "assimétricos" (termo infeliz que não derivará de uma geometria, mas de uma árvore de Chomsky), faz-nos, em primeiro lugar, pensar no estilhar dos poderes da publicidade e do marketing, que deixaram de depender do controlo da empresa, para servir interesses específicos das agências ou até dos gestores de topo. Em segundo lugar, não pode deixar de surgir, como crítica, que ver-se nesse ou naquele estilhaçar uma perda de poderes do Estado ou da empresa revela uma profunda ingenuidade.

A Compal precisa tanto da escort, como o Estado precisa dos observatórios, ainda que não acedamos a beber o sumo, nem venhamos a aproveitar da observação. O Estado propaga-se, a empresa dilui-se.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Para acabar de vez com o 25 de Abril




Comemoremos o futuro. Suplantemos os atavismos do passado. Libertemos as crianças e os jovens do peso dos avós. A mensagem transformadora da história consiste na radical projecção dos acontecimentos: sempre esquecidos, mais tarde ou mais cedo, sempre suplantados. Comemorar a revolução francesa? Que banalidade. Nós somos ainda aos filhos da bandeira da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Trazemos no ventre os crimes dos jacobinos e os vícios burgueses, mal aprendidos e mal digeridos. Plebe que afoga os corações puros. Gente subsidiada. Ressabiados, a fazer carreira. Ignaros sobre o sofrimento alheio. A vossa solidariedade, o tanas!

Suplantemo-nos, a nada mais podemos honrosamente aspirar. A esse soldado merdoso que deixou crescer o cabelo sobre a farda, um grandessíssimo tchau! E também ao aparadinho. À merda com as medalhas! Messes refinadas de bebedores de uisquies. Respirais sobre o sangue de gerações famintas, de homens roubados à terra, mandados para a mata do medo, sem protecção alguma, bravos braços cheios de vento e de força de alma, que comungaram do mesmo suor que o moleque impúbere da aldeia inóspita. Aqueles capitães reivindicativos, afinal, salvaram da guerra a fornada seguinte. E que tem isso? A fornada seguinte teria acabado com o regime salazarista com um simples peido, não precisaríamos para nada de capitães, de subsidiados, de comendas, de revolucionários de pacotilha, a beberem do orçamento, da Alemanha, da Rússia, da América, de Angola, da prima! Quero hoje, finalmente, liberdade. Ide-vos, palavrosos da messe, que sois os primeiros a merecê-lo.

Se a liberdade do povo pode ser revisitada na independência do Estado, então basta-nos o 1º de Dezembro, à falta de data da independência original, ou Aljubarrota. Mas uma data não pode ser comemorada com alegria, pois pertence à história. O passado não nos impele, impele-nos o futuro, o medo de quedar, a força que os nossos filhos devem poder largar sobre o mundo. Nunca deixes que te recordem que foste escravo! E, se o fizeres, nunca reconheças o libertador. Spartacus é, por natureza, um vencido: liberta, mas não pode conduzir. A libertação impõe a igualdade e esta proíbe o reconhecimento. Mas mantém o alerta geral contra a submissão, peçonha congénita, e contra as oferendas de coragem alheia, ardil dos oportunistas. Será longa ainda a caminhada e traiçoeiro o caminho.

Hoje, lamentemos aquele sucesso, por um breve dia. O castigo imenso que recai sobre os vindouros, os nossos filhos, de suportar uma geração subsidiada, os abrilistas. Relapsos fantasiosos, pouco dados ao mérito, cultores de todas as adiposidades, refastelando-se no Estado. Do pelintra coxo, reformado por invalidez, ao político salvo seja, reformado por labreguice, que continua a tagarelar. Do jornalista subserviente, armado em negociante de marquetingue, baboso, a arranjar tachos para a família, ao empresário sorrateiro, a comprar casa no Brasil, a ofechorizar, a choramingar por verbas. Um orçamento de Estado magnífico que dá para trocar de carro e descontar no IRC e que faz carreiras públicas garantidas do secundário até ao caixão: tantos subsidiados inúteis, reivindicativos, ufanosos, burricóides, a clamar por dignidade. À merda com a dignidade, seus burlões. Os vossos empregos são tachos.

Esta página da história tem de ser esquecida. Libertemo-nos, por fim. Suplantemo-nos. Não tenhais medo. Fazei como os abrilistas. É preciso que entremos também na história, enquanto geração, se quisermos ser perdoados pelos vindouros. Quereis um programa de acção? Aqui tendes: é proibido latir! Nada de foguetes, que são ainda rescaldo da submissão. E que à meia-noite se solte dos peitos um uivo libertador, largado sobre o silêncio, abrindo a alma para o futuro.