sexta-feira, 12 de junho de 2009

Como se reescreve a história


O episódio não merece a denúncia de Marc Ferro, na senda das desmistificações históricas que empreende, mas, na sua quase insignificância, é ilustrativo da composição oficial dos feitos dos políticos portugueses, do esquecimento dos factos à propaganda. Conta-se em breves palavras.


Na primeira eleição presidencial, de 1976, organiza-se um grande comício de Ramalho Eanes na Praça de Touros de Évora. Grupos de jovens esquerdistas apoiantes do candidato Otelo Saraiva de Carvalho, já habituados a tentar impedir as manifestações dos partidos de direita, concentram-se frente à entrada do recinto para vaiarem os adversários e, sobretudo, Eanes. Dezenas de seguranças privados com armas à cintura, que às vezes empunham, e alguns polícias criam uma zona de protecção em toda a envolvente, remetendo os manifestantes e os curiosos para o passeio junto ao jardim público. Num ambiente mexicanizado, alguns inocentes são estupidamente agredidos pela polícia (um homem que avisa um polícia de que um civil está armado; outro que pergunta pelo filho), enquanto pequenos grupos de manifestantes ganham fôlego para gritar. Terminado o comício, que teve grande participação, um carro abandona a Praça com Ramalho Eanes acenando através da abertura do tejadilho do banco traseiro, escoltado por seguranças a pé. Um coro de vaias e raras pedras repercutem-se na sua direcção. Eanes, herói da Guiné, eleva-se e chega a pôr-se de pé sobre o carro desafiando as pedras que, por sorte, não o atingem. Os seguranças desatam aos tiros, talvez meia dúzia de disparos. Os protestos suspendem-se e o carro parte. Um homem que, como tantos outros, assistia por curiosidade aos acontecimentos é atingido no abdómen e vem a falecer.


Aqueles factos foram presenciados por mim, também um curioso assistente, encontrando-me no tabuleiro central frente à Praça de Touros, junto a uma árvore e a um polícia, enquanto a vítima mortal estaria sentada no lado oposto, alguns metros adiante, sobre o muro do jardim. Ainda o vi ferido. Um forte pesar caiu sobre as gentes nos dias seguintes. Os disparos foram feitos na horizontal contra um magote de gente. Alguns acreditaram que seriam identificados os autores. A acção corajosa de Eanes, ostensiva, temerária e inconsequente foi a causa primeira. Não me apercebi de acções provocatórias de infiltrados ou de ajudas físicas a Eanes, como não recordo que os grupos esquerdistas tivessem apurado algum indício pertinente nesse sentido.

Com os fortes apoios políticos que reunia e a sólida campanha que desenvolveu, Ramalho Eanes ganhou a eleição, apesar do incidente, aliás abafado pelo ruído Matoso da campanha eleitoral. Consulte-se agora o Volume 8º da História de Portugal com direcção de José Mattoso, pp. 132-133, da autoria do Doutor José Medeiros Ferreira: “E será durante a campanha para as eleições presidenciais, no verão de 1976, que o então candidato general Ramalho Eanes ... se ergue sozinho numa viatura em andamento em pleno Alentejo para erradicar o medo que se viveria naquelas paragens... O gesto do futuro presidente da República destinava-se a ilustrar que, com ele, as leis se aplicariam em todo o país.” Da saída do comício, onde estivera rodeado de apoiantes, protegido pela segurança privada, frente a grupúsculos de jovens, passamos para o atravessamento do Alentejo inteiro, enquanto zona de opressão social e ofuscamento democrático!


Legitimada por tão errada interpretação dos factos – errada, mas não inocente – , e assente num diz que diz que ainda se encontra na net. A própria página da presidência da República (http://www.presidencia.pt/?idc=13&idi=24&action=7) assevera: Ramalho Eanes, “na tentativa de esbater divisões tão radicalizadas - ver os confrontos a tiro, de que resultou um morto, aquando da sua deslocação em campanha a Évora (18.6.1976) - afirma querer ser o "Presidente de todos os portugueses", mote que tem sido retomado pelos sucessores”. Os disparos dos seguranças do candidato passam a “confrontos a tiro”, emulação dos conflitos sociais que o Presidente resolveu. Na verdade, ter-se-á tratado apenas de uma reacção defensiva dos protectores pessoais de Eanes, perante o gesto inusitado e impulsivo que tomou, tão ao seu jeito. Se estivesse previamente delineada, deveria ter sido suspensa, para não causar maior animosidade social e para evitar, até, riscos físicos graves a Eanes.


Uma pequena mistificação, pouco importante, é verdade, mas que nos obriga a ponderar devidamente os textos de história e a autoridade dos historiadores. A história oficial serve.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Raça e racismo em Portugal: Três momentos

Claude Lévi-Strauss, no brilhante ensaiosinho “Race et Histoire”, de 1952, demonstrou que, mais do que formada por diversas raças, a humanidade é formada por diferentes culturas, em evolução e transformação constante: “duas culturas elaboradas por homens pertencentes à mesma raça podem diferir mais que duas culturas de grupos raciais distantes” (p.11). E acrescenta: “A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e perante nós” (p. 85), diversidade essa que deve ser preservada, compreendida e promovida, num espaço de liberdade e tolerância. A segregação racial, a ideia de que o outro é estranho, a rejeição dos “selvagens” pertence propriamente e caracteriza o relacionamento das tribos primitivas entre si. “O bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie” (p. 22). A ideia de humanidade surge posteriormente.


No magistral “Capitalismo e Esquizofrenia”, Gilles Deleuze e Félix Guattari explicam que “O racismo europeu como pretensão do homem branco nunca procedeu por exclusão, nem atribuição de alguém designado enquanto Outro” (II p. 232). “Não há exterior, não há gente de fora. Só há gente que devia ser como nós, e cujo crime é não o ser ... O racismo nunca detecta as partículas do outro, propaga as ondas do mesmo até à extinção do que não se deixa identificar” (II p. 233). Equacionando a dificuldade de obstar a que o tema da raça se transforme em racismo, em fascismo, em micro-fascismo ou mero folclore, apontam o critério pelo qual se manifesta o fenómeno: “A tribo-raça só existe ao nível de uma raça oprimida, e em nome de uma opressão a que se submete: só há raça inferior, minoritária, não há raça dominante, uma raça não se define pela sua pureza, mas, pelo contrário, pela impureza que um sistema de dominação lhe atribui. Bastardo e sangue misturado são os verdadeiros nomes da raça” (II p. 482).


Já em 1935 Edmund Husserl, pugnando embora por uma “humanidade europeia”, ensinava que “não há nenhuma zoologia dos povos” (p. 125) e rematava: “Todos os bem-queridos discursos sobre o espírito da comunidade, a vontade do povo, sobre ideais, sobre objectivos políticos das nações e coisas semelhantes, são romantismo e mitologia, provindos da transposição analógica de conceitos que só têm um sentido próprio na esfera pessoal individual (p. 146, in Europa: Crise e Renovação).


Quer-nos parecer que os ensinamentos daqueles grandes pensadores se enquadram neste país pequenino que partiu pelos mares em missão tribal. Povo feito de uma miríade de povos que se miscigenou e se fez ao mundo, querendo metê-lo dentro de si próprio. A identidade de Portugal é a sua multiplicidade, desdobrada pelas várias culturas que sufragou e transformou. Pouco ou nada conservamos hoje dos guerreiros que navegaram até à Índia, genética ou culturalmente. Faz-nos tanto mal o marialvismo serôdio dos nacionalistas do fim do século XIX, como o bafo de erudição que alguns estudiosos do saudosismo português vão continuando a projectar sobre a cultura (pensamos em especial nos mais cultos e estrangeirados, como Eduardo Lourenço). Não podemos orgulharmo-nos da Inquisição, como não podemos esconder os horrores da escravatura, da repressão religiosa ou do colonialismo. Aperfeiçoámo-nos ou, singelamente, pertencemos a uma cultura diferente, e em mudança. A história tem de ser revisitada, com os olhos do mundo, tomando as fontes universais.


O relacionamento dos portugueses com os povos africanos conhece três fases bem demarcadas: 1) a pré-colonial, caracterizada por contactos de comércio com povos nativos, inclusive por relações diplomáticas formais com os soberanos mais influentes, enquanto se estabeleceram colónias de portugueses em pontos fulcrais, sem ocupação da totalidade do território; 2) a fase colonial, caracterizada pelo domínio territorial militar sobre os nativos, com incursões violentas para destruição das estruturas tradicionais de poder, não obstante tivessem permanecido, nalgumas regiões, relações pré-coloniais; e 3) finalmente a fase da descolonização, com a retirada militar, o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos africanos e a assunção de um princípio geral de igualdade e de não discriminação por efeito da raça ou da origem étnica.
A primeira fase vai do início da expansão marítima até ao “mapa cor-de-rosa”; a segunda até ao 25 de Abril; a terceira até ao regresso dos “retornados”. Três episódios significativos ilustram cada uma daquelas fases, embora sejam tão envergonhadamente abordados pela historiografia portuguesa, que mais parece que não ultrapassámos ainda a fase da descolonização.


D. João II explorou pessoalmente o comércio com a Guiné, mormente fomentando a troca de ouro da Mina por conchas das Canárias (Maria Emília Madeira Santos, Os Africanos e o Mar, in Revista do Centro de estudos Africanos, São Paulo, 1997). Também o tráfico de escravos representava um aceso comércio entre os povos africanos e os mercadores portugueses. Os wolofs, povo que dominava uma vasta região que abrangia a Guiné, eram dos principais fornecedores de escravos, sequestrados das tribos vizinhas, de ouro e de outras riquezas. Tinham uma forte organização política, hierarquizada e assente numa monarquia. Em 1488, na sequência de dissidências e lutas internas, um príncipe wolof, Buumi Jeleen, apesar de derrotado, tenta formar uma aliança com D. João II para combater os adversários (Vd. Cabo Verde, Origens da sua Sociedade e do seu Crioulo, diversos autores). Vem então a Portugal com uma comitiva de 30 pessoas. É recebido com pompa e circunstância por D. João II, que lhe promete apoio. A 3 de Novembro de 1488 é baptizado, condição essencial para ser reconhecido como igual e indispensável para celebrar qualquer acordo. É armado cavaleiro e toma o nome de João Bemoim, príncipe dos jalofos, termo pelo qual os portugueses nomeavam os wolofs. Regressa a África com a impossível missão de evangelizar os wolofs, há muito convertidos ao muçulmanismo. Quando se iniciava a construção da fortaleza da foz do Senegal, por motivos não apurados, foi morto à punhalada pelo comandante português Pêro Vaz da Cunha (L. Adão da Fonseca, D. João II, pp. 134 e ss.). Temos pois um momento marcante da fase pré-colonial, que encaixa no conceito supra expendido de racismo europeu: a exigência de baptismo como condição de pertença à humanidade.


O segundo momento é bem conhecido, embora habitualmente narrado em tom de fervor patriótico, que não impede a profusão de erros. Em 1884 Mdungazwe, num ambiente de guerra civil, conquista o trono do império de Gaza, Moçambique, do povo nguni, que os portugueses denominam de vátuas. Toma então o nome de Ngungunhane, Gungunhana em português. Na sequência da política de partilha de África pelas grandes potências europeias, estabelecida na Conferência de Berlim de 1884-1885, Portugal tenta obter reconhecimento internacional para uma colónia gigantesca que ligava Moçambique a Angola. Neste quadro, promove inúmeras relações diplomáticas de protecção e vassalagem com os povos e reinos locais. A oposição de Inglaterra, que culminou no ultimato de 1890, forçou Portugal a quedar-se com os actuais territórios de Moçambique e de Angola, gerando uma onda de indignação nacionalista entre os portugueses. O território de Gaza fervilhava de incidentes militares, com incursões dos boers e de tribos desavindas. Gungunhana oferecia forte resistência aos portugueses, que, à força de metralha, conseguem derrotar os guerreiros ngunis em Coolela, a 7 de Novembro de 1895, e destroem Mandlakasi, capital do império de Gaza. Gungunhana retira-se para Chaimite, aldeia sagrada dos ngunis. Seguindo a política de pacificação, “o Governo deu por finda a expedição” e nomeou Mouzinho de Albuquerque Governador de Gaza. Porém, Mouzinho insubordinou-se e, reunindo uma força com alguns milhares de homens (cerca de 53 portugueses, alguns boers e muitos indígenas), ataca Chaimite e aprisiona Gungunhana. O feito inflama o patriotismo. Cerca de dois meses depois, a 13 de Março de 1896, Gungunhana e a família são ignominiosamente expostos numa jaula através das ruas de Lisboa, perante o gáudio medieval da população. Mouzinho não consegue autorização para os fuzilar, que Portugal havia abolido a pena de morte. Presos no forte de Monsanto, os homens acabam desterrados para a Ilha Terceira, separados das mulheres que são, por sua vez, desterradas para S. Tomé e Angola. Num gesto semelhante ao praticado com João Bemoim, Gungunhana é baptizado e é-lhe dado o nome de Reynaldo Frederico. Morre 10 anos depois.


A região de Gaza continuou a resistir militarmente à ocupação portuguesa, pelo menos até 1910. Mas, o patriotismo oco e cruel daquele momento é sustentado por longos anos, louvando-se Mouzinho de Albuquerque como um herói. O Estado Novo elege-o como símbolo do colonialismo e comemora o “dia de Mouzinho”, a partir de 1935. Em 1985, numa cerimónia oficial, algumas ossadas são atribuídas a Gungunhana e enviadas para Moçambique, onde se realiza uma cerimónia fúnebre (Fontes: Rui Ramos, in História de Portugal, Direcção de José Mattoso, VI, em especial p. 322; Wikipedia, em inglês e português, Gungunhana; Carlos Pinto Santos, in http://www.vidaslusofonas.pt/ngungunhane.htm; etc.).


Como se sabe, o terceiro momento ainda não está concluído. Não se aguarda apenas a integração plena dos africanos que vivem em Portugal ou o reconhecimento daqueles que serviram o exército português, questões que talvez se devam mais à pobreza em geral que a uma política orientada. É todo um discurso patriótico assente na guerra de África que, quando em vez, brota com autoridade. É o discurso oficial do estado que sobreleva os feitos coloniais remotos de Afonso de Albuquerque e outros, enquanto remete para um delicado limbo os feitos de Mouzinho de Albuquerque. É a exaltação de um heroísmo militar, afinal dependente da fraqueza do inimigo, que se projecta no discurso político oficial. Neste aspecto também o 25 de Abril fracassou e não parece conter já qualquer chispa de luz que permita apontar um caminho. Fomos libertados da guerra, mas não dos seus fantasmas. Não será com o 10 de Junho e com a tardia exortação daqueles que saíram da pátria para ganhar o pão que se suplantará esta falha (no sentido geológico do termo, diáclase). Camões não está aí.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Para uma biografia de D. João II

A história dos sujeitos é uma história da acção contingente. Mas será redundante reduzir a intervenção dos grandes protagonistas às relações pessoais com que se debateram para conquistar ou para assegurar posições de poder. O verdadeiro acontecimento que aí se expõe imediatamente é a abertura do sujeito às forças que se opõem no vasto quadro de uma sociedade em transformação: a luta pelo poder, o esmagamento dos rivais, os tratados de compromisso, o lançamento das grandes obras, as medidas de entesouramento e de investimento, tudo centrado num núcleo reduzido e elitista dirigido pelo rei, podem expor com maior claridade do que se supõe um jogo de forças muito mais amplo e muito mais poderoso que se trava nessa dada sociedade. O rei poderoso, quando vence um príncipe inimigo, fecha um plano de luta sobre si próprio e, como um íman, atrai para si as forças que, por serem forças, querem guerrear de modo independente. Matar um rival é um fechamento e um chamamento, não daquela crise de rivalidade, que até poderia ser solucionada de muitos outros modos, mas dos corpos estranhos, imagéticos e energéticos, que cruzam a sociedade e desafiam qualquer poder. Uma biografia do rei, com os seus adversários directos, as suas viagens, as vitórias e derrotas, as idiossincrasias pessoais, namoros e filiações, é uma história que não quer ver a história que ele conduziu. Para se compreender melhor este ponto é necessário questionar de que modo podemos atribuir ao soberano o sucesso de um feito historicamente relevante, por exemplo o dobramento do Bojador. Os navegadores, os simples marinheiros, os construtores, os mapeadores, os negociantes, os temerários podem eles ser reconduzidos à autoridade de um único homem? Claro que podem, desde que reconheçamos que poderiam por ele ter sido impedidos de realizar o feito (como D. João II cortou as vasas a Cristóvão Colombo e a Fernão de Magalhães). Já não parece plausível que reduzamos Bartolomeu Dias a mero fautor do rei.Os grandes movimentos das cidades (Lisboa, Porto, Aveiro, Viana do Castelo, Coimbra) conduziram o rei a Évora. Os sonhadores que partiam dos campos em busca de lugar nas naus em direcção ao desconhecido não estavam sob as ordens de um soberano. As forças que brotavam e cirandavam pelo reino criando exuberâncias na pedra das igrejas, no que veio a ser conhecido por manuelino, dificilmente poderiam ser contidas, embora se tivesse tentado aprisioná-las pela importação de um modismo italiano tardio, na transição do renascentismo para o maneirismo. O rei erigia o estado. O estado representa o redireccionamento daquelas forças, a desterritorialização, passando de acção livre a acção para o rei. Tal desiderato foi conseguido por uma gravidade e encenação permanentes. O palanque na praça central onde um familiar do rei é executado com requintes cerimoniosos e cruéis faz parte dessa mise-en-scène, do rei tecendo o estado e sendo por ele tecido, mesmo entretecido. Temos então o segundo momento da pesquisa biográfica: o modo como o rei condutor é aprisionado na teia que crê tecer, a absoluta necessidade da acção de que não pode fugir, os acontecimentos que exigem estritas medidas predeterminadas (diríamos hoje, pelo princípio da legalidade), preparadas para situações gerais mas não para aquela em concreto. O poder conduz o rei a ser rei de um modo irredutível, previsível e absolutamente terminal.O estado estrutura-se independentemente do seu titular. A cobrança de impostos rotinada e inquestionada é o seu grande ideário. Mais a cobrança das coimas ou melhor a montagem da grande máquina policial controladora de todos os movimentos. Tudo paga imposto, tudo carece de licença, todo o desvio é reprimido, isto é, taxado. O biógrafo refere-se a fontes de receita e com isto revela a sua ingenuidade – ou mesmo malevolência, se igualmente desqualifica a repressão atroz sobre as pessoas. A historicidade que vulgarmente se atribui à repressão esconde uma incapacidade de ver e revela uma concordância ideológica. O rei é inultrapassavelmente aquele homem jacente; o que o biógrafo na verdade ressalta é o seu apego ao estado. Para a máquina estatal é indiferente a lei que se aplica, sempre conjuntural, mas é-lhe imanente o domínio sobre o processo repressivo: o imposto, a coima, a pena, o crédito, a máquina desterritorializadora.Desde as grandes obras de J. Veríssimo Serrão e de H. Baquero Moreno, D. João II não tem merecido suficiente investigação historiográfica. As biografias de Luís Adão da Fonseca e de Manuela Mendonça, esta menos interessante, não conseguem tomar rumo dentro da historiografia contemporânea. Uma vida trágica, austera, um braço forte e firme sobre todas as intempéries, uma luta constante para construção de um trono, fraqueja perante o mecanismo, subliminar ainda, de um estado em processo implantação. Verdadeiramente, a coroa de glória deste estado central é Alcácer-Quibir com o derradeiro dilaceramento dos últimos heróis camonianos. Esta história continua por fazer.