segunda-feira, 24 de maio de 2010

Um Mourinho que é futebol e um Queiroz que não é Eça

O futebol é das raras disciplinas técnicas que ainda vive de segredos bem guardados. Enquanto as ciências, as tecnologias e as artes estão protegidas por direitos de autor, propriedade industrial e royalties, no futebol, como no direito ou na gastronomia, o saber tem de refugiar-se dos olhares cobiçosos. Não se encontram manuais úteis nas livrarias e os cursos de treinadores estão ao nível da formação profissional do IEFP. Por se desconhecer as suas artes, se admira tanto os que vencem, como se fossem prestidigitadores. E também por isso se lhes atribui capacidades mágicas de sedução (Mourinho que seduz os jogadores e outros imaginários), quando afinal os seduzidos somos nós, num jogo estranho em que o rude adepto se projecta no ídolo, qual menina perante os Beatles.

Basta rememorar o fantástico jogo do passado sábado entre o Inter e o Bayern para perceber que não fazem qualquer sentido as frases que os comentadores futebolísticos repetem jogo após jogo: a posse de bola não dá domínio do jogo; a equipa que mais ataca não é a que mais merece vencer; os tentos falhados não são quase golos; os cantos não se ganham, mas resultam de lances de ataque perdidos; os espaços não se ocupam, como soldados num teatro de guerra, pois joga-se a quatro dimensões, numa combinação de movimento, corpos extensos e tempo; que não há ânimo que resista ao desnorte táctico e que, pelo contrário, a disciplina, a segurança das informações disponíveis e a pujança física potenciam o ânimo.

Não deve ser difícil descobrir jovens promessas ou craques nascentes. As qualidades dos atletas são visíveis a olho nu, daí chamar-se "olheiros" aos que desempenham tal tarefa. Os testes médicos permitem avaliar as capacidades de progressão e resistência, e os exames psicológicos, as capacidades de disciplina e inteligência. Se se observar tantos jogos de um jogador, pode-se saber se é promissor. Mas tem-se apenas um diamante em bruto. Para que evolua, é preciso um treinador que, sabendo previamente o que pretende pôr em jogo, o conduza a enquadrar-se nesse jogo, num trabalho específico. E tal tarefa não se revela a todos. É exclusiva dos grande treinadores (que sabem, por exemplo, que a um jogador que ganha uma disputa difícil nem sempre é exigível que esteja simultaneamente a ler o jogo para o lance seguinte, pelo que precisa de um jogador de apoio, que por sua vez se socorre dos outros num trabalho em rede, e que o funcionamento dessa rede tem de estar devidamente medido e calculado, com objectivos precisos em cada ponto).

Carlos Queiroz deixou a televisão filmar, há dias, o processo de preparação e selecção dos jogadores nacionais. Fez uma base de dados em que registou as jogadas dos seleccionáveis nos diversos campeonatos (tantas jogadas à esquerda, tantos remates para o ar, quedas, fintas, etc.). No final, obteve um somatório de informações que terão servido para formar a actual equipa de Portugal.

O esquema ilude. Baseia-se num taylorismo dificilmente concretizável. Como as tarefas a desempenhar não são rígidas, nem pré-determinadas e os jogos observados não são os da selecção, a base de dados não se torna operativa sem recurso a modelos matemáticos altamente complexos. Qualquer pessoa que tenha de processar grande quantidade de informação produzida de modo aleatório tem de recorrer à intuição, ou tem de desenvolver algoritmos pesados, que têm de incorporar todas as técnicas e artes envolvidas. Trata-se de uma dificuldade que as ciências sociais ainda não resolveram e, por isso, se ficam as mais das vezes pela estatística.

Vendo agora o jogo Portugal - Cabo Verde, acho que Queiroz não tem intuição nem matemática, e que lhe falta transmitir aos jogadores qualquer coisa para fazer dentro do campo. Podia telefonar ao Mourinho...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O problema dos juízes

Alguns jovens parecem conseguir abarcar todo o saber numa área de conhecimento. Não se percebe como o conseguem. No entanto, tornam-se lúcidos ou translúcidos perante a escola. Absorvem e sintetizam. Na universidade, aprendi com eles mais do que com os professores. Alumiaram as minhas dúvidas e segui as parcas palavras que captei. Se o leitor não se apercebeu de nenhum, saiba que são raros. Atirados para o mundo burocrático, perdem-se nas agruras armadilhadas que servem os velhos e os oportunistas. São ainda mais raros os que singram ou que se tornam conhecidos.


Um princípio de mérito aconselharia que lhes fosse aberta a porta dos lugares mais distintos da sociedade. Todavia, a experiência mostra que nem sempre se cumpre uma cabal realização do seu génio. Ora, numa sociedade livre e aberta, deve acreditar-se que os melhores conseguem sustentar-se por si bastantemente.

Perante tal dilema, parece que não se deve exigir dos jovens uma responsabilidade comparável à dos velhos. A carreira é um contra-senso do mérito e a burocracia é uma convulsão do génio.

Por outro lado, não se conhece processo de selecção algum que evite que os oportunistas tomem o lugar dos seres geniais. Precisamente, a selecção tem de ser feita por quem é meramente banal, sério, velho (pensemos na incompetência fundamental do júri do concurso das pontes suspensas).

Concluindo: os lugares de destaque devem ser assumidos pelos mais velhos, quando dependem de uma carreira, isto é, de um caminho submetido a escrutínio. Não deve haver juízes jovens.


O escrutínio é duplo ou triplo: de satisfação do direito, de satisfação jurisprudencial e de satisfação socio-económica. Batalha-se pelo ganho de causa e dessa batalha faz-se o direito e, quantas vezes, a lei. Ora, quem batalha não pode escrutinar os juízes. Não pode morder a cauda. E as influências que muitos trazem para a batalha não podem chegar à independência dos decisores. Os advogados e os políticos têm de ficar de fora dos sistemas de controlo de qualidade das decisões dos juízes. O melhor argumento que pode colher-se no exterior neste mesmo sentido é a cavalgação que os advogados da Ordem dos Advogados e da Assembleia da República têm vindo a fazer para sindicar e controlar os juízes.

Por último, o trabalho do juiz é o pensamento, uma busca quase sempre inconsequente da razão. A decisão do juiz, por ser necessariamente conjuntural, tende a estar errada. Daí a evolução da jurisprudência (examine-se a que foi proferida a propósito do Código da Estrada desde os anos 40 e perceber-se-á quão serôdios foram os de ontem aos olhos de hoje, e os de hoje serão para os de amanhã). Tal exercício de intelectualidade não se compadece com prolixismos produtivistas ou com horários laborais. Um juiz não trabalha, elabora, raciocina, historicisa-se.

Assim, propomos que, em vista de uma sociedade justa, não se faça carreira da judicatura, que os juízes sejam escolhidos de entre os mais velhos, que não sejam sindicados pelos advogados ou pelos políticos e que não estejam submetidos a horário de trabalho, nem a critérios de produtividade estrita.

Teste qualitativo

Leia atentamente a seguinte frase colhida do manifesto de candidatura do Dr. Fragoso Marques a Bastonário da Ordem dos Advogados:
“A defesa dos Valores nunca nos impedirá de alterar tudo quanto careça de alteração.”

Num teste americano, indique qual das seguintes asserções melhor traduz o sentido da frase que acabou de ler:

1. Os valores podem carecer de alteração.

2. Deve alterar-se tudo o que não respeita os valores.

3. A defesa dos valores não prejudica a criação de outros valores.

4. Deve impedir-se as alterações dos valores.

Elabore um pequeno texto explicativo do conceito de “valores”.

Envie o seu trabalho para um e-mail à sua escolha e aguarde o resultado.

Direitos adquiridos e tolerância de ponto

Um burguês culto, bem instalado na vida, artista e comentador, que não tem patrão, nem horário de trabalho, insurge-se contra o Governo por ter permitido a dispensa de serviço dos funcionários públicos, nos dias coincidentes com a visita do Papa a Portugal. Não se percebe qual o fundamento daquela preocupação. Desgosta-se da perda de produção, quando se sabe que os funcionários prestam serviços de regulação e assistência que não são fonte de produção propriamente dita? Perfilha-se um moralismo laborista, um rigor patronal, quando se sabe que a tolerância de ponto foi um instrumento do salazarismo? Teme-se pelos prejuízos que os particulares podem sofrer por inoperância dos serviços, quando o Estado e uma boa parte da sociedade reclamam a presença do mundo inteiro frente às missas campais do Papa? Protesta-se contra a desigualdade entre trabalhadores públicos e privados, quando o Estado exorta as empresas a facilitar as comemorações Papais? Não.


O comentador protestante dá-nos uma pista das suas razões, a par de brados contra supostas pontes de fim-de-semana, quando convoca em apoio da sua tese os protestos das centrais sindicais. Os trabalhadores querem trabalhar mas o Governo dispensa-os. Afaga-lhes a vida numa época de crise. Para o Papa, pede festa, quando se adivinham restrições, aumento da precariedade, baixa de remunerações e de impostos. Os sindicatos, pelos vistos, estarão dispostos a manter o grau de exigência, desde que não haja perda de direitos. Os funcionários, por seu turno, preferem aproveitar para já a falta paga ao trabalho, embora possam prestar serviço efectivo, seguindo o conselho dos sindicatos (como o próprio nome indica trata-se de uma tolerância de ponto e não de um encerramento do local de trabalho, que pode funcionar mediante a comparência de um mínimo de pessoal). Aproveitam a benesse, a contrapartida antecipada pelas restrições que aí vêm.

As razões do comentador percebem-se agora: quer ter razão mais tarde, quando disser: olhem como avisei, folgaram quando deviam trabalhar e aqui têm as consequências. É um puro oportunista reaça. Mas é um populista, pois deixa entrever (inconscientemente prepara) a resposta dos funcionários num cenário de crise: “fomos enganados! A nossa excelsa capacidade foi desaproveitada, o Estado é perdulário. Revoltemo-nos para salvarmos o que resta!”. Ou seja, salvo o exagero inconsequente da revolta, o regresso ao moralismo da disciplina, da produtividade, do mérito, da desigualdade, da hierarquização. Um funcionalismo ressurgido do caos, como fez o salazarismo.

Os funcionários estão hoje naquela contingência. O contínuo agravamento das condições económicas, com perda efectiva de rendimentos, desemprego e precariedade laboral, não se compagina com um estatuto de direitos quase perpétuos, boas remunerações, sistema de saúde de luxo e reformas celestiais. O Estado não pode manter dentro de si próprio uma classe privilegiada de funcionários, quando não consegue realizar um mínimo de justiça social. Os desequilíbrios futuros seriam astronómicos: reformados nababos versus velhos indigentes.

A fonte da desigualdade afigura-se aqui bem mais visível do que entre capitalistas e proletários. Os funcionários distinguem-se dos restantes cidadãos apenas pelos direitos que o Estado lhes confere. O direito enquanto fonte de desigualdade, como Marx apontou para a protecção do Estado ao direito de propriedade sobre o capital. Ora, um Estado democrático não carece de um funcionalismo fiel. Podem revoltar-se, fazer greve, manifestar-se, protestar. O Estado precisa, pelo contrário, de moral, de legitimação popular.

Aqui temos o populismo a clamar por justiça e a arraia-miúda a reclamar tratamento igualitário ao dos funcionários. Chegou a hora de apertarem o cinto. Não vale invocar que os direitos foram adquiridos (que só os tornam transitórios, por oposição a universais ou de origem divina). Será melhor táctica a ancestral subserviência, afagar o leão, submergir, à espera da recuperação económica ou de um regime que precise de funcionários fiéis.