Um burguês culto, bem instalado na vida, artista e comentador, que não tem patrão, nem horário de trabalho, insurge-se contra o Governo por ter permitido a dispensa de serviço dos funcionários públicos, nos dias coincidentes com a visita do Papa a Portugal. Não se percebe qual o fundamento daquela preocupação. Desgosta-se da perda de produção, quando se sabe que os funcionários prestam serviços de regulação e assistência que não são fonte de produção propriamente dita? Perfilha-se um moralismo laborista, um rigor patronal, quando se sabe que a tolerância de ponto foi um instrumento do salazarismo? Teme-se pelos prejuízos que os particulares podem sofrer por inoperância dos serviços, quando o Estado e uma boa parte da sociedade reclamam a presença do mundo inteiro frente às missas campais do Papa? Protesta-se contra a desigualdade entre trabalhadores públicos e privados, quando o Estado exorta as empresas a facilitar as comemorações Papais? Não.
O comentador protestante dá-nos uma pista das suas razões, a par de brados contra supostas pontes de fim-de-semana, quando convoca em apoio da sua tese os protestos das centrais sindicais. Os trabalhadores querem trabalhar mas o Governo dispensa-os. Afaga-lhes a vida numa época de crise. Para o Papa, pede festa, quando se adivinham restrições, aumento da precariedade, baixa de remunerações e de impostos. Os sindicatos, pelos vistos, estarão dispostos a manter o grau de exigência, desde que não haja perda de direitos. Os funcionários, por seu turno, preferem aproveitar para já a falta paga ao trabalho, embora possam prestar serviço efectivo, seguindo o conselho dos sindicatos (como o próprio nome indica trata-se de uma tolerância de ponto e não de um encerramento do local de trabalho, que pode funcionar mediante a comparência de um mínimo de pessoal). Aproveitam a benesse, a contrapartida antecipada pelas restrições que aí vêm.
As razões do comentador percebem-se agora: quer ter razão mais tarde, quando disser: olhem como avisei, folgaram quando deviam trabalhar e aqui têm as consequências. É um puro oportunista reaça. Mas é um populista, pois deixa entrever (inconscientemente prepara) a resposta dos funcionários num cenário de crise: “fomos enganados! A nossa excelsa capacidade foi desaproveitada, o Estado é perdulário. Revoltemo-nos para salvarmos o que resta!”. Ou seja, salvo o exagero inconsequente da revolta, o regresso ao moralismo da disciplina, da produtividade, do mérito, da desigualdade, da hierarquização. Um funcionalismo ressurgido do caos, como fez o salazarismo.
Os funcionários estão hoje naquela contingência. O contínuo agravamento das condições económicas, com perda efectiva de rendimentos, desemprego e precariedade laboral, não se compagina com um estatuto de direitos quase perpétuos, boas remunerações, sistema de saúde de luxo e reformas celestiais. O Estado não pode manter dentro de si próprio uma classe privilegiada de funcionários, quando não consegue realizar um mínimo de justiça social. Os desequilíbrios futuros seriam astronómicos: reformados nababos versus velhos indigentes.
A fonte da desigualdade afigura-se aqui bem mais visível do que entre capitalistas e proletários. Os funcionários distinguem-se dos restantes cidadãos apenas pelos direitos que o Estado lhes confere. O direito enquanto fonte de desigualdade, como Marx apontou para a protecção do Estado ao direito de propriedade sobre o capital. Ora, um Estado democrático não carece de um funcionalismo fiel. Podem revoltar-se, fazer greve, manifestar-se, protestar. O Estado precisa, pelo contrário, de moral, de legitimação popular.
Aqui temos o populismo a clamar por justiça e a arraia-miúda a reclamar tratamento igualitário ao dos funcionários. Chegou a hora de apertarem o cinto. Não vale invocar que os direitos foram adquiridos (que só os tornam transitórios, por oposição a universais ou de origem divina). Será melhor táctica a ancestral subserviência, afagar o leão, submergir, à espera da recuperação económica ou de um regime que precise de funcionários fiéis.
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