Não haverá terra mais bafejada pela natureza do que a Ria Formosa. Clima espectacular, praias longas, espelhos de água rica de vida comestível, pacatez, campo de frutos únicos, romãs celestiais e nêsperas cupidianas, figos entumescentes, que brotam de árvores morrendo sem cuidado algum do humano vegetante.
No entanto, conseguiu-se tornar a Campina numa das zonas mais poluídas da Europa por nitratos de origem agrícola (vide inag.pt). Perde-se a actividade agrícola, esquecem-se os primores que fizeram a fortuna do Algarve. Sabe que Eugénio de Almeida, o homem mais rico de Portugal de oitocentos, engrandeceu com o comércio de frutos secos destinado a América? Inesquecíveis amêndoas macias e doces hoje substituídas pelas californianas, dedosas, duronas, indigestas a partir da sétima.
A ria que limita Faro é um paraíso de canais encantatórios, bordejando as margens barrentas da cidadezinha, onde se acumula lixo e animais mortos. Botes anados labutam contra os cabeços da vazante, aguardando a esporádica pescaria no canal grande. Consideram-se privilegiados os que têm embarcação ancorada na marina fotogénica, embora não consigam sair ou entrar acima de meia maré por força da ferrovia centenária.
Os farenses, sempre avant la lettre, acham que é mais fácil arrancar a linha do comboio inteira do que imaginar uma solução para a passagem dos barquitos. Há cinquenta anos que o acham, intemeratos. Os derrotistas, assustados com as intempestivas proibições de circulação na ria e na ilha, acham que já não vale a pena ter barco. Os investidores alimentam, pelo contrário, planos de uma marina contada, coisa que em Portugal consiste nuns passeios largos com palmeiras, bancos de granito, esplanadas, um hotel de apoio, três concessões de restaurantes caros e alguns barcos duns tipos que a gente não conhece. Qual barcos, qual quê! Ao povo bastam os automóveis e a ria fica reservada.
Comparada com aquelas pequenas cidades de Trás-os Montes, tão ufanosas e apirolitadas, Faro assusta de atraso e degradação, ruínas, sujidade e caras trombudas de maus modos e olhar ostensivo. Tenha-se presente que, a seguir a Lisboa, Faro tem o maior indíce de pagamento de IRS por habitante do país. Será terra de gente rica, quiçá.
Quando parece que algo de novo a suplanta, como o bunker do teatro, logo se vão chegando às restrições, às exclusividades, às coisinhas giras, à música de boas intenções que não pára de prometer dias melhores. Até o raio do cartaz que pespegavam na gigantesca parede fronteira do teatro foi substituído por um placard publicitário electrónico que muda tão rapidamente que não se aproveita uma imagem, sequer de publicidade a pneus, um desconchavo que lá põem.
Deve ser uma terra desagradável para a maioria dos que cá vêm trabalhar, pois, logo que os deixam sair dos empregos, preferem meter-se na 125, à compita pelo direito de dominar as rotundas com os carritos adoráveis que conduzem. O exercício de tal direito dá-lhes um gozo tão grande que mantêm um ar paciente enquanto esperam longamente pela vez.
Nestes dias de calor ainda sem férias a praia de Faro enche-se de corpos lindos, garbosos, alegres, um must! Pena a porcaria da areia que de poeirenta se vai emporcalhando dia após dia. A não perder, a ronda de moto quatro que percorre a zona concessionada, por entre crianças brincando, jovens jogando e senhoras a caminho da toalha, com um marinheiro tipo Querelle acoplado num banhista condutor, ambos muito seráficos, compenetrados e incomodativos para os demais.
Um pouco mais longe, é obrigatória a Culatra, a aldeia da ilha de areia, com um povo sepilhado a vento e sol, agora ameaçado de destruição pela especulação imobiliária, que parece que não há quem não queira uma barraca de praia permanente. Se não forem destruídos por aí, são-no pelas regras de controlo: quem tem casa em terra, herdada ou não, perde a da ilha! Regra arbitrária e obviamente injusta, que ignora a comunidade. Lá se desenrascam a dividir famílias, a dizer que esta é só minha, ainda em sufoco, ignorando o dia de amanhã.
Faro, no entanto, resplandece. E não há estupefação que resista a uma ténue aragem de maresia, numa manhã quente mirando o mar, à espera do peixe assado, de que Faro é a verdadeira capital.
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