sexta-feira, 12 de março de 2010

A notícia que você não leu e porque não a leu

O jornalismo tem uma função social de relevo tão evidente que podemos fazer skip sobre os considerandos. Mas o relevo (na denotação geográfica de inscrição e transformação do terreno) tanto pode ser exercido informando, com objectividade e sentido dos valores, como escamoteando os factos, enchendo as notícias de fait-divers ou de títulos e frases dúbias. Ora o que se faz em Portugal atingiu uma generalizada baixa qualidade.

Dão-se breves exemplos: os acidentes não “provocam mortos”, pois estes já não reagem ao que quer que seja; os mortos não são “resgatados” (que significa libertado a troco de dinheiro); não deve dizer-se o “alegado etarra” ou o “alegado violador” (alegado corresponde às alegações de factos, motivos e razões que sustentam um pedido), é um substantivo (ou particípio do verbo) e não um adjectivo; não se diz que fulano “fala em” tal assunto, mas “de tal” assunto, e se escreveu, não se diz que falou; “Espaço de tempo” briga com Einstein, é melhor dizer período; “no dia de hoje” é tão redundante como cair para baixo; etc., etc. O disparate chega ao ponto de o Expresso anunciar que adere ao novo acordo ortográfico mas que, por não ter ainda actualizado os correctores de texto, mistura na mesma notícia frases do acordo antigo e do novo (confirme em http://aeiou.expresso.pt/queda-de-viaduto-no-ip4-causa-8-feridos=f570187).

O problema agrava-se quando as notícias são mal abordadas, sem perspectiva social e política ou com tendência para a parvoeira imbecil. Por exemplo: quando uma vingança privada é tratada por alguns jornais como linchamento popular, passa-se algo de muito grave na cabeça dos jornalistas (DN), felizmente não de todos (JN). É ainda mais preocupante quando o “Público”, que foi há muitos anos considerado “um jornal de referência”, desce ao nível de pasquim para encabeçar a 1ª página com “Professor vítima de bullying preferiu morrer a voltar ao 9º-B”. Lida a notícia não mais se refere o dito bulingue, apenas barulho dos putos na aula de música, que por maior que fosse nada tem a ver com a gravidade do título, nem se indicam elementos suficientes para estabelecer uma relação de causalidade entre o suicídio e a indisciplina. Uma tontearia chocante para os alunos e famílias ou um braço do polvo a desviar as atenções do povinho das questões de credibilidade e de instabilidade que abalam os políticos e as finanças?

É muito importante compreender que não é plausível que tão diversos jornalistas em tantos órgãos de comunicação possam reproduzir idênticas parangonas sem juízo crítico distinto (salvo algumas colunas de opinião). A coincidência é sempre estatisticamente relevante. E deve ser explicada. Um dos factores será o da retransmissão da base da notícia a partir da Lusa ou dos gabinetes de imprensa dos políticos e das empresas, que são reproduzidos em cada jornal por um aprendiz de jornalista ameaçado pela falta de tempo e pela precariedade do vínculo de trabalho (1ª grilheta). Mas, se considerarmos que os jornais e televisões têm directores e editores de informação, não se percebe por que não evitam aquelas limitações, sendo certo que enviam repórteres para os locais das notícias e podem recolher novos factos de interesse. Aqui  a coincidência dá-se sob suspeição. É que na azáfama do dia a dia apenas algumas notícias podem ter tratamento de fundo, tanto pela disponibilidade como pelos custos que envolvem. Intervêm então os conselhos de administração e os políticos influentes sobre os directores e editores, como repetidamente é reconhecido em público (2ª grilheta). Daqui resulta um jornalismo de inferior qualidade não porque a maioria destes dobre a consciência, mas porque não tem oportunidade de a construir. Para os que a tiverem haverá porventura uma 3ª grilheta.

Seleccionamos a título de exemplo o caso do viaduto do IP4. Sem dúvida que a notícia era o fluxo de trânsito ter sido abruptamente interrompido pela derrocada do viaduto, ou seja, falta de protecção dos utentes, com um morto e 4 feridos (1), para quê mais um viaduto (2), quanto custava o corte do trânsito (3), que empresas fazem e fiscalizam as obras (4), qual o papel das autoridades e que regras existem (5). No entanto, o anúncio da morte foi deliberadamente atrasado para o dia seguinte, quando se descobriu o corpo; os títulos dos jornais confundem aquela morte com um acidente de trabalho, custando a perceber como foi provocada, e omitem os acidentes de trânsito consequentes (salvo numa linha ou outra no fim da notícia); a remoção dos escombros aparece como uma necessidade para a reabertura da estrada, esquecendo-se que lá se vão os vestígios das causas do sinistro; aponta-se o apuramento de responsáveis, sabendo-se que o erro de engenharia pode ter dado causa à queda, mas só indirectamente deu causa à morte do condutor (pois a norma violada é de segurança viária; a de engenharia releva apenas no contexto da obra). Não parecem combinados?

Compare o leitor as notícias disponíveis na net (designadamente em Expresso, “Queda de viaduto no IP4 causa 8 feridos”, DN “Viaduto caiu sobre o IP4 e fez um morto”, jornal I “Queda do viaduto do IP4 faz um morto e oito feridos. Aberto inquérito”, RTP “Governo quer apurar responsabilidades em queda de viaduto no IP4” e outras. Embora não faltem à verdade, não dizem a verdade. É fácil perceber porquê, não acha?

A notícia deveria ter sido dada assim no dia 11 de Março (texto nosso elaborado a partir do conjunto das notícias então publicadas):

"IP4: Condutor esmagado por queda de viaduto

Um BMW que circulava no IP4 próximo de Amarante foi esmagado pela queda de um viaduto em construção. O único ocupante teve morte imediata. Deram-se vários despistes de veículos que travaram bruscamente para evitar o embate nos destroços. Pelo menos 4 passageiros ficaram feridos. O trânsito no IP4 está cortado em ambos os sentidos.

O desabamento do viaduto deu-se quando se procedia ao enchimento do tabuleiro com betão. Oito trabalhadores sofreram ferimentos ligeiros ao serem arrastados na queda. Durante toda a noite, procedeu-se à remoção dos escombros da estrutura caídos sobre o IP4. Um especialista ouvido pelo nosso jornal alertou para o risco de a retirada dos escombros prejudicar a investigação das causas do acidente. A empresa responsável vedou o acesso dos jornalistas ao local. As autoridades ordenaram a realização do habitual inquérito para apuramento de responsabilidades.

Nos comentários dos nossos leitores à edição on-line desta notícia estão identificados os nomes das empresas envolvidas na construção e fiscalização do viaduto."

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