A necessidade de reciclagem do lixo doméstico é hoje uma consequência da sociedade de consumo e da comercialização desregulada de produtos industriais. As técnicas que promove são meras panaceias para um mal gigantesco. Não se trata de uma adaptação entre um utensílio e o desperdício que gera, mas de uma nova actividade comercial que nasce do facto de grande parte do utensílio constituir, logo de início, um desperdício. Se os bens de consumo pudessem voltar a ser vendidos a granel, dispensar-se-iam inúmeras toneladas de plástico e de papel. E são vendidas em pequenas embalagens individuais apenas para corresponder a um padrão de custo aparentemente atractivo para o consumidor. A empresa que vende água ou bolachas acaba por vender também a embalagem, auferindo aí um lucro referenciado ao aumento do volume de negócios. Trata-se pois de engenharia em benefício do sector financeiro. É uma questão de estratégia em sentido estrito.
O que a actual campanha de reciclagem tem de original consiste no facto de remeter para o consumidor o custo do tratamento do desperdício, eufemisticamente chamado de resíduo. Além de suportar com o seu próprio trabalho a separação e depósito do lixo, tem ainda de perder parte do orçamento público que lhe poderia ser destinado, pois é desviado para subsidiar a indústria de reprocessamento. Esta última representa o último grito de modernidade da parceria público/privado, mas é também um peso pesado, na realidade improdutivo (improdutivo no sentido da boa utilização dos recursos e também no sentido de produção industrial, que só gera riqueza quando gera bem-estar efectivo, sendo irrelevante (mera massa monetária) todo o processo de fabrico que a ele não conduza).
Colocada assim a questão, compreende-se a luta dos ambientalistas nas últimas décadas. Não se trata de propor um regresso às origens, mas de orientar a produção e o consumo num sentido amigo da natureza, que parece tão fácil como as associações entre fungos e árvores ou entre peixes limpadores e peixes carnívoros.
Quando se promove a reciclagem desligada daquele cuidado no consumo e na produção, promove-se efectivamente o desregramento da indústria, a sua dependência dos grupos financeiros e a estratégia de aumento de custos para o consumidor, além de se desrespeitar a natureza.
É aqui que a campanha da Quercus na televisão (noticiários matinais da RTP1; é a segunda vez que a ela voltamos neste blog) se afigura muito estranha, duvidosa mesmo, se se considerar a natureza de associação ambientalista que propagandeia. Reveste já uma gravidade que excede em muito a baboseira de sugerir às famílias que adoptem a tarifa bi-horária da EDP para pouparem na despesa da electricidade na lavagem da roupa, roubando o sono à vizinhança e o descanso à dona de casa, enquanto consomem exactamente a mesma energia.
A Quercus chegou agora ao ponto de publicitar umas cápsulas de alumínio comercializadas pela Nestlé destinadas a fazer café expresso com uma maquineta específica, apesar de o mercado facultar inúmeros processos de beber café em casa sem embalagens inúteis nem maquinetas abstrusas. Não se percebe como pode promover a compra de embalagens de alumínio, que é isso que efectivamente faz quando se põe ao lado do balcão de vendas da Nestlé e difunde a mesma notícia em dois dias diferentes, apenas para aconselhar os consumidores daquele produto a guardarem as cápsulas após a utilização e transportá-las de novo para o posto de venda onde aí serão supostamente encaminhadas para a reciclagem. Se isto não é publicidade à Nestlé, não sei o que é, olé.
Mas a questão ainda não se queda neste ponto. O contacto directo do alumínio com alimentos destinados ao consumo ou com o corpo humano tem sido posto em dúvida por alguns estudos que, bem ou mal, o ligam ao alzheimer e a outras doenças do sistema nervoso ou mesmo ao cancro. Por outro lado, a extracção e o processamento industrial do alumínio são altamente poluentes, tanto que se fica praticamente pelo terceiro mundo, ali para os lados do Egipto e outros.
A promoção da reciclagem do alumínio de umas cápsulas irrisórias, quando comparadas com a quantidade necessária para fazer uma porta, e há tantas portas velhas a pedir reciclagem, cheira a esturro.
É preciso relançar o debate da reciclagem, desde a origem, no problema do excesso de embalagem, mas para tanto parece que é preciso reciclar primeiramente a Quercus. Ou mesmo, se necessário, retirar-lhe o estatuto de associação ambientalista.
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