terça-feira, 24 de agosto de 2010

O conformismo na era moderna

Um martelo. O instrumento de Heidegger. A instrumentalidade do martelo é imediatamente tomada enquanto a priori no instante em que o martelo é representado. O reconhecimento implica a aceitação irreflectida de valores que se manifestam de forma complacente em quem reconhece. A utilidade do martelo, a sua essência valorada conforme as possibilidades de acção, domina de modo tal que exclui a dúvida sobre as potencialidades da coisa e dispensa o juízo crítico. O martelo, a porta, o autocarro, a igreja, a televisão, um mundo infindável de significantes carregados de valores.

Os actos de reconhecimento, na trivialidade da lida diária, inspiram o conformismo (Deleuze). As considerações ditadas pelo bom senso (dimensão, balanço e firmeza do martelo) não escapam ao conformismo, sujeitas à instrumentalidade da coisa, à forma dos valores representados, assimilados para permitir o reconhecimento. A história da técnica está pejada de casos de estranhos conformismos que perduraram séculos até que uma pequena inovação, que afinal parecia fácil de adoptar, transforma radicalmente o objecto (o tear, a roda de oleiro, o arado, o fogareiro, etc.). O questionamento é operativo em certas circunstâncias particulares, mas não se dá generalizadamente a todos.

A era moderna é marcada pela abertura ao questionamento, à inovação, ao inconformismo. A governação na era moderna engloba, entre as demais acções clássicas, medidas de controlo da inovação e de difusão dos valores essenciais tendentes a adaptar os indivíduos à inovação ou à conformação. O modelo preferido desta política chama-se máquina ou aparelho, o ente maquínico que permite todas as figurações ideográficas, reais ou fantasmáticas, em permanente devir. A máquina, como o aparelho burocrático, está em constante evolução, crescimento e transmutação.

A indústria tem a função fundamental de produzir instrumentos, imediatamente reconhecidos enquanto tal, mas destituídos de instrumentalidade ou de instrumentalidade mitigada (as calças que descosem, os aditivos alimentares, o telefone que joga, o automóvel que massaja, o robot de cozinha, o convívio virtual). O conformismo manifesta-se quando se toma a produção inútil como um fenómeno de consumo. Os valores de reconhecimento não podem ser questionados em tempo real, e dominam pela profusão, multiplicação e omnipresença.

O indivíduo ponderado e reflectido, que defende os seus e procura agir segundo a razão, é o objecto da governação moderna. E é uma realização dela.

O que é o fascismo

Não se resiste a fazer a história dos conceitos universais (o Estado, o poder, as elites, a luta de classes) e seus paradigmas ideológicos (o comunismo, o fascismo, o capitalismo). Foucault desmontou o historicismo dos universais e desenvolveu uma chave interpretativa, a governamentalidade. Mas a tentação de verificar a correspondência ideológica dos regimes políticos com os seus avatares persiste – e não deixa de ter algum interesse. O fascismo conquistou muitos dos Estados europeus após a I Grande Guerra, da Suécia à Roménia, da Itália a Portugal. Assumiu diferentes modalidades e idiossincrasias de Estado para Estado.

O conceito foi empregue em plúrimos sentidos, confundindo-se com a ultra-direita, com o populismo e com a exploração capitalista. É justamente considerado uma dos termos mais polissémicos da política. Diferentes autores e diferentes escolas de pensamento elaboraram profundíssimas análises, quase sempre polémicas e contraditórias, dos diversos “fascismos”. Alguns consideram a Alemanha nazi, caracterizada por uma economia de guerra e por movimentos de massas que destruiram as estruturas tradicionais, um totalitarismo, outros um fascismo. Se não se considerar a ideologia de base, os termos são convertíveis de acordo com a corrente de opinião que se adopte.

Totalitarismo ou fascismo excedem os conceitos de ditadura (que se refere ao bloqueio do parlamento pelo Governo) e de Estado autoritário (que designa o modo de imposição da política do Governo, por oposição a Estado democrático). Não há ditadura que não seja autoritária, mas estes elementos são insuficientes para os caracterizar.

Franco Savarino (1) apresenta uma boa síntese dos estudos mais recentes sobre o tema e esforça-se por indicar os itens essenciais do fascismo. Em primeiro lugar, contrariamente ao que pretenderam os fascistas italianos (2), o fascismo não dispõe de um esquema doutrinário estandardizado, como o comunismo, nem pode ser visto como uma teoria política tradicional. Em segundo lugar, caracteriza-se pela adaptabilidade, ductilidade e capacidade sintética, mostrando-se capaz de fazer alianças e de conjugar estratégias com as forças dominantes nas sociedades em que se implantou. Em terceiro lugar, não se confunde com meros governos de direita, classistas, totalitários ou de fachada. Por último, identifica-se, apesar das diferentes formas que tomou, como “um movimento revolucionário de massas, principalmente nacionalista, dotado de una “cosmovisão” e uma ideologia própria, independente, situada entre a esquerda e a direita do espectro político, com a ambição de solucionar a crise da modernidade e com uma proposta de palingenesia político-cultural” (p. 13). Carisma do chefe, organização em pirâmide, elitismo, nacionalismo e idealismo metafísico, foram outros dos elementos do fascismo.

Mas se daquele modo identificamos uma ideologia, não conhecemos do seu desígnio último (acrescentamos nós) que foi a conquista do Estado, através do controlo dos mecanismos tecnocráticos modernos de que os governos passaram a beneficiar, designadamente do aparelho económico e policial. Foi precisamente a necessidade desse controlo que determinou as sucessivas alianças tácticas que teceu com os diversos poderes sociais, da Igreja à escola, dos grandes agrários à família burguesa culta e isenta. E daí resultou que o movimento se confundiu com o próprio Estado, como se fosse a vanguarda da grei, em comunhão plena com o interesse público, que afinal delimitava e continha.

O fascismo não pretendia destruir as tradições, os valores dominantes na sociedade (como a propriedade, a individualidade, a família), mas instalou-se nesses valores, fê-los seus, chamou a si a ética antiga, que não separava a consciência individual da vida social, e imiscuiu-se em todos os aspectos da vida pública e privada. É pois radicalmente anti-liberal, como o é anti-socialista. Reúne pontos em comum com o totalitarismo, podendo considerar-se uma das suas variantes, mas não institui um sistema absolutamente novo, revolucionário, totalmente dominador do privado e do indivíduo, como se verificou no estalinismo.

O governo fascista é conservador, assente no equilíbrio do sector externo, do nível das reservas e da taxa de inflação. A questão das contas públicas constitui o cerne da acção governativa. Todas as políticas de fomento lhe estão subordinadas. A população é tratada como um dado de segundo plano, de modo ostensivo designadamente quando se proclamava a humildade, as sãs virtudes e a tenacidade perante as adversidades. Neste plano, é um governo anti-popular, elitista e reservado à elite.

Nem sempre esta elite do poder se organiza em partido político. Nem sempre se apoia num movimento de massas. Mas, em todos os casos, o governo fascista resiste tenazmente, e até com brutalidade excessiva, a todas as eventuais hipóteses de poder ser derrubado, de ceder o lugar a outros políticos, inclusive correligionários, ou de permitir mudanças sociais expressivas. Reprime por antecipação, tenta moldar as consiências, afastar os insubmissos e castigar os adversários. Está aqui, portanto, a demonstração de que o fascismo não se confunde com o Estado, mas é um aparelho de captura do Estado, da sua governação – e que serve grupos políticos, porventura heterogéneos, interessados em exercer tal dominação.

NOTAS:
(1) La Ideología del Fascismo entre Pasado y Presente, http://www.paginasprodigy.com/savarino/fascismo2005.pdf)
(2) Baldi-Papini, um fascista italiano que estudou Portugal, defendia que “ o fascismo é um sistema de pensamento antes de ser um sistema de governo” (citado em António Costa Pinto, As elites políticas e a consolidação do salazarismo: o Nacional Sindicalismo e a União Nacional, in Análise Social, vol. xxvii (116-117), 1992 (2.°-3.°), 575-613

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O castelo da melancia

Corta-se horizontalmente o topo e a base de uma melancia, expondo a polpa vermelha. Espeta-se uma faca quatro vezes no centro do topo, fazendo uma quadrícula. Talha-se a melancia sem tocar na área da quadrícula. Comem-se as talhadas reservando o centro, a que se dá o nome de castelo, a parte mais doce da melancia. O castelo reparte-se a final entre os comensais.

A melancia actual, como a maioria da fruta, é um produto modificado pelo homem. Perdeu mesocarpo e ganhou enorme capacidade de retenção de água (creio que superior aos normais 91%), com o que beneficia o agricultor na celeridade e o vendedor no peso, mas prejudica a formação do rendilhado criativo do castelo. A produção carece de enormes quantidades de água, que não abunda onde o sol aperta. A rega é feita, as mais das vezes, com água de má qualidade, proveniente de subaproveitamentos agrícolas, carregando detritos e elevadas concentrações de químicos e metais pesados. Algumas melancias transportam o cheiro da água com que foram criadas. Estes problemas são comuns a todas as culturas de verão e serão mais graves, pelo acréscimo de químicos, na meloa e nalgumas variedades de melão.

A boa melancia, quase um achado, perde pouca água quando aberta, rendilha com facilidade e tem textura firme que dá prazer mastigar. Estas qualidades são hoje absorvidas pela trivialidade: verde por fora, vermelha por dentro, doce e aquosa.

Antigamente fazia-se um “galo” – uma extracção quadrangular na lateral da melancia – para prova da qualidade do fruto. Os vendedores de hoje não aceitam tal sorte. Expõem metades e quartos de melancia sobre as bancas, cobertos de celofane. Deve ter-se cuidado com os sulfitos que alguns podem deitar sobre os frutos abertos para os manterem apetecíveis, mais os sulfitos do próprio celofane, e ainda com eventuais contaminações por bactérias e fungos. O melhor será comprá-las inteiras ou abertas na hora.

Enfim, se a melancia não fizer castelo, não se espante. Qualquer dia nem sequer haverá fruta, apenas produtos naturais ou assim assim.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Contribuição para acabar com a República

No Estado contemporâneo tudo é economia; a governamentalidade, o bom governo, sustenta-se no racionalismo económico, na optimização dos recursos. O justo reporta-se à equidade na distribuição da riqueza, mas é suplantado pelo critério da legitimidade dos ganhos e da acumulação. A coesão social, o interesse colectivo, assenta no ideal de enriquecimento individual e de melhoria do bem-estar geral.

O Estado actual, no modelo ocidental do pós-guerra, não é pois republicano. A República, no sentido clássico, é a sociedade baseada na ética, em que o cidadão encontra a máxima realização pessoal pela plena participação no colectivo. Aí, as leis, como a economia, estão subordinadas a princípios éticos e morais que configuram o bem colectivo. Este ideal formou-se a partir dos séculos XIV e XV, quando a política deixou de ser “uma função externa dirigida para a tutela da sociedade do “mal” que a agride, para assumir uma função interna que tende a formar e regulamentar a pessoa, o indivíduo” ( Paolo Prodi, Uma História da Justiça, Ed. Estampa, p. 173)

Enquanto no Estado actual a educação visa propiciar agentes económicos independentes e altamente produtivos, na República a educação formaria cidadãos livres orientados pela virtude. No primeiro, os cidadãos dependem das agruras ou do sucesso do mercado; no segundo, o Estado deve assegurar a liberdade dos indivíduos, libertando-os da opressão, de modo a não prejudicar a sua plena integração social.

O ideal republicano morreu na I Grande Guerra, onde milhares de jovens europeus, imbuídos do espírito da pátria republicana, se entregaram voluntariamente às ordens de generais obtusos e cruéis, verdadeiros precursores dos fascismos que se lhe seguiram (lembrar por exemplo Guillaume Apollinaire, o autor de “onze mil vergas”), cuja escola militar de imbecilidade grosseira deu larga margem de manobra aos exércitos de Hitler. Das cinzas da II Grande Guerra, brotou o neoliberalismo, o Estado mitigado pelos interesses económicos. O ideal subsequente é puramente niilista: a busca da espiritualidade no vazio meditativo, na experiência transcendente (eloquentemente figurado em O Fio da Navalha, de Somerset Maugham); ou o hedonismo consumista, incapaz de se relacionar com o plano superior da realidade (muito representado no cinema de Hollywood).

A I República portuguesa de 1910 tem sido tratada com panos quentes por muita da nossa historiografia. Teria um projecto de modernização e de democratização, oposto à “ditadura” franquista e ao rotativismo dos partidos monárquicos. Porém, se a monarquia excluía dos censos eleitorais cerca de 95% da população (os analfabetos, os não proprietários e as mulheres), as sucessivas reformas da República, não incluíram mais de 11%. Segundo Rui Ramos, seguramente o maior historiador português da contemporaneidade: “O Estado Novo tem muito mais a ver com a República de 1910 e a admiração da gente do PRP pelas ditaduras de “salvação nacional”, do que com o liberalismo da monarquia constitucional” (in "Oliveira Martins e a ética republicana, p. 168, http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_18/18_09_%20RRamos.pdf, texto fundamental de Rui Ramos, pouco conhecido). Na recente e premiada História de Portugal, Rui Ramos torna a explicar (como na História de Mattoso) que, apesar de minoritários, os republicanos, sobretudo do PRP, reservaram para si os cargos do Estado, não obstante as disputas acérrimas que travavam. Acrescentamos nós: Afonso Costa, tal como Salazar, apostava no equilíbrio orçamental, o que, na época, constituía um traço dos governos conservadores e, posteriormente, totalitários. Não foi à toa que idolatraram o Marquês de Pombal, o déspota violentíssimo, patrocinando o governo da elite iluminada.

O colonialismo foi um dos estandartes da I República, que aliás arvorou contra a monarquia, aquando da questão do Mapa Cor-de-Rosa e aquando do Ultimato. Uma ideia de império ultramarino que casava com um nacionalismo ideológico, apregoado nas comemorações camonianas e na celebração do Marquês de Pombal. Está bem expresso na construção do Panteão Nacional, reservado aos heróis da Pátria. E foi materializado na participação de Portugal na I Grande Guerra, exclusivamente justificada pela necessidade de preservar as colónias das ameaças de ocupação pelas potências beligerantes. O Estado Novo colheu aí, sem originalidade, os pressupostos e as restrições da política que aplicou às colónias. O modo aviltante como a República tratou os soldados de La Lys e a repressão absurda e brutal que abateu sobre os operários, com base numa GNR deliberadamente formada por beluários, ultrapassou a violência do fascismo português, mesmo nas suas fases mais duras. Deve ainda acrescentar-se que, sob o salazarismo, os republicanos, tendo à cabeça António Sérgio, não defenderam mais do que uma tecnocracia nacionalista, tendo pugnado por planos de controlo da população que, se aplicados, teriam tido efeitos desastrosos (como o projecto de “colonização do Alentejo” com deslocação forçada de camponeses do Norte). Aquele tipo de república de princípio de século XX, afinal uma técnica de conquista do poder, manchou na época toda a Europa e não houve país que não tivesse sofrido penosamente com ele.

Efectivamente, nada temos a comemorar da I República. As celebrações do centenário, promovidas por gente que acha que “a República instaurou a igualdade e a cidadania plena” (falácias toscas de comissionistas tout court, pois a monarquia constitucional já as assegurava nos moldes constitucionais que hoje conhecemos) são estranhas, muito estranhas. Falta de sentido crítico, promoção de um ideal pátrio esgotado (tal como o hino), engajamento político ao sistema neoliberal actual, invocação de uma ética republicana vazia de sentido, enfim, contradições…

O temor que os republicanos clássicos evidenciavam do capitalismo e do controlo do Estado pelos interesses económicos, tornou-se hoje a base da operatividade da política. O domínio público é assustadoramente concessionado à gestão privada e os bens colectivos são comercializados na óptica do utilizador-pagador (matéria que abordaremos num próximo artigo). A comunicação social que, na lógica republicana, deveria ilustrar e preparar os cidadãos para a participação pública, veicula o medo dos desastres e do agravamento da crise, numa linguagem conotativa que impede a percepção da realidade. Os assuntos elevados do Estado são, com laivos de “sentido de Estado”, retirados da “praça pública”, ou seja escondidos dos cidadãos (a crise da banca, a real situação das contas do Estado, do rating, dos submarinos, da imensidade de questões que nos afectam, incluindo a eventual falência de clubes de futebol, não pertencem ao conhecimento do povo). As questões políticas de fundo são subordinadas ao segredo da economia.

Estaremos muito longe da sociedade ficcionada no Robocop (o filme), em que todo o Estado estava privatizado e toda a gestão pública dependia do critério da maximização do lucro. Também não se descortinam alternativas sólidas ao constitucionalismo e à cartilha dos direitos do homem, embora sejam hoje largamente insuficientes e tenham perdido o fundo ético. Mas urge pensar a Europa, à luz dos princípios democráticos que o neoliberalismo absorveu, o que parece implicar, como ponto de partida, o enterramento da república do século XX (não nos referimos ao regime político, à organicidade do governo e à partilha de poderes). As novas tecnocracias e as redes, diríamos até, os rizomas, que entrelaçam o indivíduo no social e no político podem prescindir da privatização da gestão do bem público e podem alicerçar-se numa ética a fundar.

domingo, 8 de agosto de 2010

Mulheres na Justiça

“Mulheres em Atenas”, a tese de doutoramento, doutíssima aliás, da professora doutora Ana Lúcia Curado (Sá da Costa Editora, 2008), percorre as fontes escritas gregas que sobreviveram até os nossos dias reportadas à situação social, familiar e política das mulheres. Parece assumir um cariz marcadamente exegético. Não segue a antropologia, pelo que fica um pouco limitada ao teor dos textos. É omissa, por exemplo, sobre as questões da vida sexual, íntima, da reprodução e da saúde. Também não actualiza as obras de Foulcaut e outros sobre a sexualidade antiga. Constitui porém um importante manancial do direito, dos valores e do léxico da civilização mãe. Talvez se perca um pouco na discussão de casos, salvo no interessantíssimo “Contra Neera”, a mulher sedutora por excelência. Mas lê-se como tremoços, apesar da linguagem erudita, num estilo que parece tributário da grande, genial, superlativa Maria Helena da Rocha Pereira (se ainda não a leu, leia tudo o que encontrar com a assinatura dela), que prefacia Mulheres em Atenas.
Todavia encontramos um inesperado interesse nesta obra, pois a autora escuda a sua feminilidade nos rigores clássicos, enquanto expressa valores opinativos sobre a retórica judicial grega e actualiza a condição humana, socorrendo-se de Kafka e Lawrence, entre outros. Nalgumas passagens, não é fácil perceber se as considerações foram extraídas de Atenas ou se correspondem ao entendimento universal da autora. Supondo que “num discurso de índole judicial os elementos referenciados não são lançados ao acaso”, admite que visem “baralhar os factos em causa e o júri que os há-de julgar” (p. 419). As peças da acusação e da defesa “estão ao serviço de interesses privados”, pelo que as descrições podem estar afectadas de “exagero hiperbólico” (p. 457). A intérprete deve escrutinar o discurso em função do pedido formulado pelo orador, desmontando a argumentação, limando os excessos, sobrelevando as omissões (pp. 283, 341, 350) e os entinemas (p. 288, interessante conceito retórico). Busca a verdade, segundo um interesse maior, exterior ao litígio tal como as partes o apresentam. O julgamento das provas não se prende à comprovação das alegações, mas é elevado ao serviço dessa verdade superior a que só a intérprete tem acesso. A opinião final da intérprete é relativizada de acordo com a exiguidade das fontes e com a incerteza parcial dos factos.

Tergiversamos, sem pretender diminuir o notável mérito da autora, da esfera classicista e da análise retórica para aquele aspecto, que parece tão feminino, da faculdade de inferir com segurança a partir de meros indícios, inclusive em matérias para as quais as fontes de informação não estão direccionadas. A sociedade do nosso tempo organiza-se em torno de um método de inferências auto-justificantes que ganham expressão através de actos de poder. Que há de mais feminino do que aqueles generais à escovinha em permanente reunião numa enorme sala penumbrosa fazendo-se gestores dos céus do Iraque? Mas descendo à terra, não terá sido um golpe de génio prover os tribunais de mulheres juízes, formando-as aí desde jovens, enquanto meio de suprir as deficiências da investigação criminal e de aproximar os litígios da verdade última que é o puro consumo? Inclusive o consumo de informação estatística e esse consumo grosso das mulheres que é a classificação de serviço!

Derrida fez uma série de conferências sobre o fazer direito instantâneo das sentenças judiciais, quase se ajoelhou perante tal mistério. Na verdade, a sentença condenatória “é um puro acto instantâneo ou um atributo incorporal” que transforma o acusado em condenado (Deleuze, Capitalismo e Esquizofrenia 2, p. 114). A sentença, cumpridas as formalidades, nunca é arbitrária pois beneficia desse poder de fazer o justo, de dizer a verdade ou a verdade possível (a verdade é o que a sentença diz). Uma das formalidades desse dizer consiste na qualificação dos interesses: o interesse das partes não é o que eles alegam expressamente, mas o que resulta da interpretação do juiz. Também os factos que invocam têm de ser esquadrinhados em função da descoberta do fim último dos interesses, e realinhados de acordo com o interesse superior que é, simplesmente, a expressão da sentença. Os nórdicos não escondem o efeito de exclusão da sentença condenatória, tornam-no até o cerne da discussão, e não se enfeitam de vestes pesadas. A tradição românica é mais folclórica, mais expressiva, com muitos exórdios ao justo.

Um tipo normal, lendo kafka e Lawrence, sentiria náuseas dessas inferências judiciais, abominaria os juízos destrapaceados sobre o íntimo dos outros, abominaria supor “o que ele realmente quis foi enganar-me”, e fugiria desse mundo escuro, de vielas e trincheiras, onde o eterno feminino faz o direito e limpa a terra do seu esterco, a bem ou a mal. O golpe de génio que alterou as regras do jogo à escala mundial e suprimiu os juízes de condição inferior que outrora julgavam as baixezas, bem como dispensou o júri, essa expressão maior da cidadania, tornando a justiça prática, limpa e absorvente, assenta no facto de o feminino não tomar consciência de que não pode lavar as mãos que suja quando julga, quando simula a verdade, instituindo-a mesmo, ainda que acerte, mas ai quando falha! O feminino deixa-se levar pelo gosto da inferência, pelo olhar de espanto daquele que julga ter desmascarado.

O jardim-escola não permite, hoy por hoy, distinguir entre homens e mulheres no exercício da justiça. A regra da inferência fundadora da punição tornou-se comum, as mesmas regras do recreio, certinhas; uma certa desconsideração pelos estranhos, própria dos meninos e meninas.Juiz ou juíza, pelo menos a sentença é (quase) sempre feminina.