No Estado contemporâneo tudo é economia; a governamentalidade, o bom governo, sustenta-se no racionalismo económico, na optimização dos recursos. O justo reporta-se à equidade na distribuição da riqueza, mas é suplantado pelo critério da legitimidade dos ganhos e da acumulação. A coesão social, o interesse colectivo, assenta no ideal de enriquecimento individual e de melhoria do bem-estar geral.
O Estado actual, no modelo ocidental do pós-guerra, não é pois republicano. A República, no sentido clássico, é a sociedade baseada na ética, em que o cidadão encontra a máxima realização pessoal pela plena participação no colectivo. Aí, as leis, como a economia, estão subordinadas a princípios éticos e morais que configuram o bem colectivo. Este ideal formou-se a partir dos séculos XIV e XV, quando a política deixou de ser “uma função externa dirigida para a tutela da sociedade do “mal” que a agride, para assumir uma função interna que tende a formar e regulamentar a pessoa, o indivíduo” ( Paolo Prodi, Uma História da Justiça, Ed. Estampa, p. 173)
Enquanto no Estado actual a educação visa propiciar agentes económicos independentes e altamente produtivos, na República a educação formaria cidadãos livres orientados pela virtude. No primeiro, os cidadãos dependem das agruras ou do sucesso do mercado; no segundo, o Estado deve assegurar a liberdade dos indivíduos, libertando-os da opressão, de modo a não prejudicar a sua plena integração social.
O ideal republicano morreu na I Grande Guerra, onde milhares de jovens europeus, imbuídos do espírito da pátria republicana, se entregaram voluntariamente às ordens de generais obtusos e cruéis, verdadeiros precursores dos fascismos que se lhe seguiram (lembrar por exemplo Guillaume Apollinaire, o autor de “onze mil vergas”), cuja escola militar de imbecilidade grosseira deu larga margem de manobra aos exércitos de Hitler. Das cinzas da II Grande Guerra, brotou o neoliberalismo, o Estado mitigado pelos interesses económicos. O ideal subsequente é puramente niilista: a busca da espiritualidade no vazio meditativo, na experiência transcendente (eloquentemente figurado em O Fio da Navalha, de Somerset Maugham); ou o hedonismo consumista, incapaz de se relacionar com o plano superior da realidade (muito representado no cinema de Hollywood).
A I República portuguesa de 1910 tem sido tratada com panos quentes por muita da nossa historiografia. Teria um projecto de modernização e de democratização, oposto à “ditadura” franquista e ao rotativismo dos partidos monárquicos. Porém, se a monarquia excluía dos censos eleitorais cerca de 95% da população (os analfabetos, os não proprietários e as mulheres), as sucessivas reformas da República, não incluíram mais de 11%. Segundo Rui Ramos, seguramente o maior historiador português da contemporaneidade: “O Estado Novo tem muito mais a ver com a República de 1910 e a admiração da gente do PRP pelas ditaduras de “salvação nacional”, do que com o liberalismo da monarquia constitucional” (in "Oliveira Martins e a ética republicana, p. 168, http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_18/18_09_%20RRamos.pdf, texto fundamental de Rui Ramos, pouco conhecido). Na recente e premiada História de Portugal, Rui Ramos torna a explicar (como na História de Mattoso) que, apesar de minoritários, os republicanos, sobretudo do PRP, reservaram para si os cargos do Estado, não obstante as disputas acérrimas que travavam. Acrescentamos nós: Afonso Costa, tal como Salazar, apostava no equilíbrio orçamental, o que, na época, constituía um traço dos governos conservadores e, posteriormente, totalitários. Não foi à toa que idolatraram o Marquês de Pombal, o déspota violentíssimo, patrocinando o governo da elite iluminada.
O colonialismo foi um dos estandartes da I República, que aliás arvorou contra a monarquia, aquando da questão do Mapa Cor-de-Rosa e aquando do Ultimato. Uma ideia de império ultramarino que casava com um nacionalismo ideológico, apregoado nas comemorações camonianas e na celebração do Marquês de Pombal. Está bem expresso na construção do Panteão Nacional, reservado aos heróis da Pátria. E foi materializado na participação de Portugal na I Grande Guerra, exclusivamente justificada pela necessidade de preservar as colónias das ameaças de ocupação pelas potências beligerantes. O Estado Novo colheu aí, sem originalidade, os pressupostos e as restrições da política que aplicou às colónias. O modo aviltante como a República tratou os soldados de La Lys e a repressão absurda e brutal que abateu sobre os operários, com base numa GNR deliberadamente formada por beluários, ultrapassou a violência do fascismo português, mesmo nas suas fases mais duras. Deve ainda acrescentar-se que, sob o salazarismo, os republicanos, tendo à cabeça António Sérgio, não defenderam mais do que uma tecnocracia nacionalista, tendo pugnado por planos de controlo da população que, se aplicados, teriam tido efeitos desastrosos (como o projecto de “colonização do Alentejo” com deslocação forçada de camponeses do Norte). Aquele tipo de república de princípio de século XX, afinal uma técnica de conquista do poder, manchou na época toda a Europa e não houve país que não tivesse sofrido penosamente com ele.
Efectivamente, nada temos a comemorar da I República. As celebrações do centenário, promovidas por gente que acha que “a República instaurou a igualdade e a cidadania plena” (falácias toscas de comissionistas tout court, pois a monarquia constitucional já as assegurava nos moldes constitucionais que hoje conhecemos) são estranhas, muito estranhas. Falta de sentido crítico, promoção de um ideal pátrio esgotado (tal como o hino), engajamento político ao sistema neoliberal actual, invocação de uma ética republicana vazia de sentido, enfim, contradições…
O temor que os republicanos clássicos evidenciavam do capitalismo e do controlo do Estado pelos interesses económicos, tornou-se hoje a base da operatividade da política. O domínio público é assustadoramente concessionado à gestão privada e os bens colectivos são comercializados na óptica do utilizador-pagador (matéria que abordaremos num próximo artigo). A comunicação social que, na lógica republicana, deveria ilustrar e preparar os cidadãos para a participação pública, veicula o medo dos desastres e do agravamento da crise, numa linguagem conotativa que impede a percepção da realidade. Os assuntos elevados do Estado são, com laivos de “sentido de Estado”, retirados da “praça pública”, ou seja escondidos dos cidadãos (a crise da banca, a real situação das contas do Estado, do rating, dos submarinos, da imensidade de questões que nos afectam, incluindo a eventual falência de clubes de futebol, não pertencem ao conhecimento do povo). As questões políticas de fundo são subordinadas ao segredo da economia.
Estaremos muito longe da sociedade ficcionada no Robocop (o filme), em que todo o Estado estava privatizado e toda a gestão pública dependia do critério da maximização do lucro. Também não se descortinam alternativas sólidas ao constitucionalismo e à cartilha dos direitos do homem, embora sejam hoje largamente insuficientes e tenham perdido o fundo ético. Mas urge pensar a Europa, à luz dos princípios democráticos que o neoliberalismo absorveu, o que parece implicar, como ponto de partida, o enterramento da república do século XX (não nos referimos ao regime político, à organicidade do governo e à partilha de poderes). As novas tecnocracias e as redes, diríamos até, os rizomas, que entrelaçam o indivíduo no social e no político podem prescindir da privatização da gestão do bem público e podem alicerçar-se numa ética a fundar.
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