Não se resiste a fazer a história dos conceitos universais (o Estado, o poder, as elites, a luta de classes) e seus paradigmas ideológicos (o comunismo, o fascismo, o capitalismo). Foucault desmontou o historicismo dos universais e desenvolveu uma chave interpretativa, a governamentalidade. Mas a tentação de verificar a correspondência ideológica dos regimes políticos com os seus avatares persiste – e não deixa de ter algum interesse. O fascismo conquistou muitos dos Estados europeus após a I Grande Guerra, da Suécia à Roménia, da Itália a Portugal. Assumiu diferentes modalidades e idiossincrasias de Estado para Estado.
O conceito foi empregue em plúrimos sentidos, confundindo-se com a ultra-direita, com o populismo e com a exploração capitalista. É justamente considerado uma dos termos mais polissémicos da política. Diferentes autores e diferentes escolas de pensamento elaboraram profundíssimas análises, quase sempre polémicas e contraditórias, dos diversos “fascismos”. Alguns consideram a Alemanha nazi, caracterizada por uma economia de guerra e por movimentos de massas que destruiram as estruturas tradicionais, um totalitarismo, outros um fascismo. Se não se considerar a ideologia de base, os termos são convertíveis de acordo com a corrente de opinião que se adopte.
Totalitarismo ou fascismo excedem os conceitos de ditadura (que se refere ao bloqueio do parlamento pelo Governo) e de Estado autoritário (que designa o modo de imposição da política do Governo, por oposição a Estado democrático). Não há ditadura que não seja autoritária, mas estes elementos são insuficientes para os caracterizar.
Franco Savarino (1) apresenta uma boa síntese dos estudos mais recentes sobre o tema e esforça-se por indicar os itens essenciais do fascismo. Em primeiro lugar, contrariamente ao que pretenderam os fascistas italianos (2), o fascismo não dispõe de um esquema doutrinário estandardizado, como o comunismo, nem pode ser visto como uma teoria política tradicional. Em segundo lugar, caracteriza-se pela adaptabilidade, ductilidade e capacidade sintética, mostrando-se capaz de fazer alianças e de conjugar estratégias com as forças dominantes nas sociedades em que se implantou. Em terceiro lugar, não se confunde com meros governos de direita, classistas, totalitários ou de fachada. Por último, identifica-se, apesar das diferentes formas que tomou, como “um movimento revolucionário de massas, principalmente nacionalista, dotado de una “cosmovisão” e uma ideologia própria, independente, situada entre a esquerda e a direita do espectro político, com a ambição de solucionar a crise da modernidade e com uma proposta de palingenesia político-cultural” (p. 13). Carisma do chefe, organização em pirâmide, elitismo, nacionalismo e idealismo metafísico, foram outros dos elementos do fascismo.
Mas se daquele modo identificamos uma ideologia, não conhecemos do seu desígnio último (acrescentamos nós) que foi a conquista do Estado, através do controlo dos mecanismos tecnocráticos modernos de que os governos passaram a beneficiar, designadamente do aparelho económico e policial. Foi precisamente a necessidade desse controlo que determinou as sucessivas alianças tácticas que teceu com os diversos poderes sociais, da Igreja à escola, dos grandes agrários à família burguesa culta e isenta. E daí resultou que o movimento se confundiu com o próprio Estado, como se fosse a vanguarda da grei, em comunhão plena com o interesse público, que afinal delimitava e continha.
O fascismo não pretendia destruir as tradições, os valores dominantes na sociedade (como a propriedade, a individualidade, a família), mas instalou-se nesses valores, fê-los seus, chamou a si a ética antiga, que não separava a consciência individual da vida social, e imiscuiu-se em todos os aspectos da vida pública e privada. É pois radicalmente anti-liberal, como o é anti-socialista. Reúne pontos em comum com o totalitarismo, podendo considerar-se uma das suas variantes, mas não institui um sistema absolutamente novo, revolucionário, totalmente dominador do privado e do indivíduo, como se verificou no estalinismo.
O governo fascista é conservador, assente no equilíbrio do sector externo, do nível das reservas e da taxa de inflação. A questão das contas públicas constitui o cerne da acção governativa. Todas as políticas de fomento lhe estão subordinadas. A população é tratada como um dado de segundo plano, de modo ostensivo designadamente quando se proclamava a humildade, as sãs virtudes e a tenacidade perante as adversidades. Neste plano, é um governo anti-popular, elitista e reservado à elite.
Nem sempre esta elite do poder se organiza em partido político. Nem sempre se apoia num movimento de massas. Mas, em todos os casos, o governo fascista resiste tenazmente, e até com brutalidade excessiva, a todas as eventuais hipóteses de poder ser derrubado, de ceder o lugar a outros políticos, inclusive correligionários, ou de permitir mudanças sociais expressivas. Reprime por antecipação, tenta moldar as consiências, afastar os insubmissos e castigar os adversários. Está aqui, portanto, a demonstração de que o fascismo não se confunde com o Estado, mas é um aparelho de captura do Estado, da sua governação – e que serve grupos políticos, porventura heterogéneos, interessados em exercer tal dominação.
NOTAS:
(1) La Ideología del Fascismo entre Pasado y Presente, http://www.paginasprodigy.com/savarino/fascismo2005.pdf)
(2) Baldi-Papini, um fascista italiano que estudou Portugal, defendia que “ o fascismo é um sistema de pensamento antes de ser um sistema de governo” (citado em António Costa Pinto, As elites políticas e a consolidação do salazarismo: o Nacional Sindicalismo e a União Nacional, in Análise Social, vol. xxvii (116-117), 1992 (2.°-3.°), 575-613
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