Um martelo. O instrumento de Heidegger. A instrumentalidade do martelo é imediatamente tomada enquanto a priori no instante em que o martelo é representado. O reconhecimento implica a aceitação irreflectida de valores que se manifestam de forma complacente em quem reconhece. A utilidade do martelo, a sua essência valorada conforme as possibilidades de acção, domina de modo tal que exclui a dúvida sobre as potencialidades da coisa e dispensa o juízo crítico. O martelo, a porta, o autocarro, a igreja, a televisão, um mundo infindável de significantes carregados de valores.
Os actos de reconhecimento, na trivialidade da lida diária, inspiram o conformismo (Deleuze). As considerações ditadas pelo bom senso (dimensão, balanço e firmeza do martelo) não escapam ao conformismo, sujeitas à instrumentalidade da coisa, à forma dos valores representados, assimilados para permitir o reconhecimento. A história da técnica está pejada de casos de estranhos conformismos que perduraram séculos até que uma pequena inovação, que afinal parecia fácil de adoptar, transforma radicalmente o objecto (o tear, a roda de oleiro, o arado, o fogareiro, etc.). O questionamento é operativo em certas circunstâncias particulares, mas não se dá generalizadamente a todos.
A era moderna é marcada pela abertura ao questionamento, à inovação, ao inconformismo. A governação na era moderna engloba, entre as demais acções clássicas, medidas de controlo da inovação e de difusão dos valores essenciais tendentes a adaptar os indivíduos à inovação ou à conformação. O modelo preferido desta política chama-se máquina ou aparelho, o ente maquínico que permite todas as figurações ideográficas, reais ou fantasmáticas, em permanente devir. A máquina, como o aparelho burocrático, está em constante evolução, crescimento e transmutação.
A indústria tem a função fundamental de produzir instrumentos, imediatamente reconhecidos enquanto tal, mas destituídos de instrumentalidade ou de instrumentalidade mitigada (as calças que descosem, os aditivos alimentares, o telefone que joga, o automóvel que massaja, o robot de cozinha, o convívio virtual). O conformismo manifesta-se quando se toma a produção inútil como um fenómeno de consumo. Os valores de reconhecimento não podem ser questionados em tempo real, e dominam pela profusão, multiplicação e omnipresença.
O indivíduo ponderado e reflectido, que defende os seus e procura agir segundo a razão, é o objecto da governação moderna. E é uma realização dela.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
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