“Mulheres em Atenas”, a tese de doutoramento, doutíssima aliás, da professora doutora Ana Lúcia Curado (Sá da Costa Editora, 2008), percorre as fontes escritas gregas que sobreviveram até os nossos dias reportadas à situação social, familiar e política das mulheres. Parece assumir um cariz marcadamente exegético. Não segue a antropologia, pelo que fica um pouco limitada ao teor dos textos. É omissa, por exemplo, sobre as questões da vida sexual, íntima, da reprodução e da saúde. Também não actualiza as obras de Foulcaut e outros sobre a sexualidade antiga. Constitui porém um importante manancial do direito, dos valores e do léxico da civilização mãe. Talvez se perca um pouco na discussão de casos, salvo no interessantíssimo “Contra Neera”, a mulher sedutora por excelência. Mas lê-se como tremoços, apesar da linguagem erudita, num estilo que parece tributário da grande, genial, superlativa Maria Helena da Rocha Pereira (se ainda não a leu, leia tudo o que encontrar com a assinatura dela), que prefacia Mulheres em Atenas.
Todavia encontramos um inesperado interesse nesta obra, pois a autora escuda a sua feminilidade nos rigores clássicos, enquanto expressa valores opinativos sobre a retórica judicial grega e actualiza a condição humana, socorrendo-se de Kafka e Lawrence, entre outros. Nalgumas passagens, não é fácil perceber se as considerações foram extraídas de Atenas ou se correspondem ao entendimento universal da autora. Supondo que “num discurso de índole judicial os elementos referenciados não são lançados ao acaso”, admite que visem “baralhar os factos em causa e o júri que os há-de julgar” (p. 419). As peças da acusação e da defesa “estão ao serviço de interesses privados”, pelo que as descrições podem estar afectadas de “exagero hiperbólico” (p. 457). A intérprete deve escrutinar o discurso em função do pedido formulado pelo orador, desmontando a argumentação, limando os excessos, sobrelevando as omissões (pp. 283, 341, 350) e os entinemas (p. 288, interessante conceito retórico). Busca a verdade, segundo um interesse maior, exterior ao litígio tal como as partes o apresentam. O julgamento das provas não se prende à comprovação das alegações, mas é elevado ao serviço dessa verdade superior a que só a intérprete tem acesso. A opinião final da intérprete é relativizada de acordo com a exiguidade das fontes e com a incerteza parcial dos factos.
Tergiversamos, sem pretender diminuir o notável mérito da autora, da esfera classicista e da análise retórica para aquele aspecto, que parece tão feminino, da faculdade de inferir com segurança a partir de meros indícios, inclusive em matérias para as quais as fontes de informação não estão direccionadas. A sociedade do nosso tempo organiza-se em torno de um método de inferências auto-justificantes que ganham expressão através de actos de poder. Que há de mais feminino do que aqueles generais à escovinha em permanente reunião numa enorme sala penumbrosa fazendo-se gestores dos céus do Iraque? Mas descendo à terra, não terá sido um golpe de génio prover os tribunais de mulheres juízes, formando-as aí desde jovens, enquanto meio de suprir as deficiências da investigação criminal e de aproximar os litígios da verdade última que é o puro consumo? Inclusive o consumo de informação estatística e esse consumo grosso das mulheres que é a classificação de serviço!
Derrida fez uma série de conferências sobre o fazer direito instantâneo das sentenças judiciais, quase se ajoelhou perante tal mistério. Na verdade, a sentença condenatória “é um puro acto instantâneo ou um atributo incorporal” que transforma o acusado em condenado (Deleuze, Capitalismo e Esquizofrenia 2, p. 114). A sentença, cumpridas as formalidades, nunca é arbitrária pois beneficia desse poder de fazer o justo, de dizer a verdade ou a verdade possível (a verdade é o que a sentença diz). Uma das formalidades desse dizer consiste na qualificação dos interesses: o interesse das partes não é o que eles alegam expressamente, mas o que resulta da interpretação do juiz. Também os factos que invocam têm de ser esquadrinhados em função da descoberta do fim último dos interesses, e realinhados de acordo com o interesse superior que é, simplesmente, a expressão da sentença. Os nórdicos não escondem o efeito de exclusão da sentença condenatória, tornam-no até o cerne da discussão, e não se enfeitam de vestes pesadas. A tradição românica é mais folclórica, mais expressiva, com muitos exórdios ao justo.
Um tipo normal, lendo kafka e Lawrence, sentiria náuseas dessas inferências judiciais, abominaria os juízos destrapaceados sobre o íntimo dos outros, abominaria supor “o que ele realmente quis foi enganar-me”, e fugiria desse mundo escuro, de vielas e trincheiras, onde o eterno feminino faz o direito e limpa a terra do seu esterco, a bem ou a mal. O golpe de génio que alterou as regras do jogo à escala mundial e suprimiu os juízes de condição inferior que outrora julgavam as baixezas, bem como dispensou o júri, essa expressão maior da cidadania, tornando a justiça prática, limpa e absorvente, assenta no facto de o feminino não tomar consciência de que não pode lavar as mãos que suja quando julga, quando simula a verdade, instituindo-a mesmo, ainda que acerte, mas ai quando falha! O feminino deixa-se levar pelo gosto da inferência, pelo olhar de espanto daquele que julga ter desmascarado.
O jardim-escola não permite, hoy por hoy, distinguir entre homens e mulheres no exercício da justiça. A regra da inferência fundadora da punição tornou-se comum, as mesmas regras do recreio, certinhas; uma certa desconsideração pelos estranhos, própria dos meninos e meninas.Juiz ou juíza, pelo menos a sentença é (quase) sempre feminina.
domingo, 8 de agosto de 2010
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