Manuel Alegre tem vindo a assumir-se, sobretudo nas campanhas presidenciais, como um lídimo resistente anti-fascista. É um título que não enobrece a esmagadora maioria dos eleitores actuais, pois os compagnons de route que deram o braço a Alegre perderam há muito o direito à vida, e os jovens não têm, felizmente, tantos anos. Aquela atitude de Alegre ganha assim um certo sabor amargo, que recai sobre a morte dos outros.
Alegre antes de Abril de 1974 estava em Argel, onde era locutor de uma rádio que emitia para Portugal cerca de 1 hora de informação contra o Estado Novo. Acho que o ouvi – demasiado jovem para o precisar – uma ou outra vez, no transístor do Manuel Torradinho, na Praia dos Tesos, em noites de Primavera. (neste parágrafo cito de memória, erro que procuro não repetir nos seguintes)
Entrou para o PS no final de 1974 e tornou-se um acólito de Mário Soares, de quem nunca dissentiu ao longo do PREC, em todas as convulsões que afastaram ou geraram oposições internas de tantos quadros do PS. Acolitou-o depois de 1976 nas medidas de eliminação das assim chamadas “conquistas de Abril” e na instauração do regime e sistema económico actuais.
Os cérebros do PS naquele tempo revolucionário foram Mário Soares, obviamente, e Sottomayor Cardia, um dos que a morte ceifou. Não se conhece a Alegre uma posição autónoma naquele período. Seria um porta-voz do PS, fiel à estratégia do núcleo duro.
A história do PREC tem sido resumida como um combate pela liberdade contra os comunistas e, em menor porção, contra os direitistas. O PS foi o garante da democracia actual. Porém, alguns aspectos de Abril não estão esclarecidos. Algumas nuvens penumbrosas pairam sobre algumas cabeças. Alegre, candidato presidencial e velho democrata, parece especialmente obrigado a esclarecer as dúvidas, naquela parte em que tomou intervenção – obrigação que advém do facto de se pôr agora a mandar piçadas antifascistas a todos quanto lhe fazem frente.
Para este blogue, destas questões depende a imagem que se pode construir de Alegre:
Como se sabe – e hoje é unanimemente aceite pelos historiadores – Spínola tentou 3 golpes de Estado. Cada derrota de Spínola potenciou o poder dos comunistas e reforçou a organização do MFA. O primeiro foi um golpe palaciano protagonizado por Palma Carlos (também um grande democrata, por acaso director da companhia de electricidade que recebia informações da PIDE, que lhe chegavam por via do chefe de segurança (vide Conversas com Adelino da Palma Carlos, p. 13), que queria fazer um Governo à sua medida, uma constituição à medida de Spínola e um eleição superrápida de Spínola. O segundo foi o golpe de 28 de Setembro, que contribuiu para a moda das barricadas e das manifestações surpresa. O terceiro foi o 11 de Março, uma palhaçada perigosa que ressuscitou todas as forças negativas do fascismo e do stalinismo, que desde aí passaram a andar à paulada, com perseguições terroristas a Norte e ocupações em Lisboa e no Alentejo – o caldo de instabilidade que propiciou o controlo dos militares logo em Agosto de 1975 (embora não se diga, acabou aí o MFA), mantendo-se estrategicamente alguns focos de instabilidade militar até ao arrumar da casa em 25 de Novembro.
Ora, onde estava Alegre? Era visita de Spínola na casa de Massamá, onde foi preparado o 11 de Março (vide Maria Inácia Rezola, Os Militares na Revolução de Abril, p. 126). Os socialistas dirão que o faziam para tirar nabos da púcara de Spínola, mas, se os tiraram, não os tornaram públicos, e não parece que tenham tentado impedir o golpe.
Dir-se-á que calhou assim. Porém, onde está Alegre a 1 de Outubro? A denunciar a iminência de um golpe de militares de esquerda para o dia 2, anúncio que, por mero acaso, se revelou completamente falso e sem qualquer fundamento (nem o PS o tentou justificar) (vide Cesário Borga e outros, Abril nos Quartéis de Abril, 131, 132). Todavia, enquadrou-se no conjunto de "manobras controladas" que os moderados atiraram aos esquerdistas e comunistas e que vieram a contribuir para o 25 de Novembro (vide Sousa e Castro). Os anúncios de golpes, incluindo o de Alegre, mereceram até, imagine!, uma conversa entre Henry Kissinger e Deng XiaoPing, a 21 de Outubro de 1975, em que este constatou: "informações assim tão precisas não podem ser fidedignas"; e Kissinger corroborou: "nós também não acreditamos" (vide Nuno Simas, Portugal Classificado, Documentos Secretos Norte-Americanos 1974-1975, p. 142).
Sr. Candidato Manuel Alegre, que tal contribuir para a história do 25/04 revelando algo de útil, e os documentos atinentes? Agiu a favor do MFA ou contra?
sábado, 18 de dezembro de 2010
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Fuzeta: a barra do descontentamento
Movimenta-se em Olhão um grupo muito tenso, muito petulante e ostensivo, que acha que faz política ofendendo e disparando disparates à toa. O alvo da crítica é tudo o que mexa. Havendo zum-zum, fazem brado. Olhão no seu melhor pede meças a Gustave le Bon. Têm agora o bom pretexto de o Estado ter finalmente um plano de desenvolvimento para a Fuzeta. Os jornais dão-lhes eco e uma entidade abstracta que dá pelo nome de “pescadores da Fuzeta” serve-lhes de escudo invisível.
No Verão passado, as máquinas recuperaram cerca de mil metros de cordão dunar e abriram uma nova barra – no local previsto há longos anos. Tratou-se de uma intervenção de emergência para evitar que a continuação do mau tempo no corrente inverno viesse a destruir a belíssima ilha que dá praia e ria, abrigo e fonte de riqueza. A abertura da barra representa uma pequena parcela dos custos do conjunto da obra. Todavia, não houve tempo (na dupla acepção de clima e de cronologia) para consolidar a nova barra. Os vendavais têm fustigado a costa – estamos hoje sob uma forte suestada. Formaram-se cabeços de areia ou assoreamentos que dificultam a navegação. A sociedade Polis, que gere a obra, anunciou novos trabalhos para breve – que devem passar pelo reforço Nascente da ilha e pelo encerramento da barra natural que aí existe.
A Fuzeta precisa de uma barra operativa, se necessário com molhes de protecção. Mas todos compreendem que a construção de molhes é um trabalho difícil e moroso, que deve ser precedido da confirmação do bom funcionamento da barra a proteger. Assim se fez, há cem anos, com as barras de Faro/Olhão e de Tavira. Se a barra actual não funcionar, tem de procurar-se outro local; e se se confirmar, tem de estudar-se a eventual colocação dos molhes. Não basta “pôr pedra”, como tem sido dito irresponsavelmente. A pedra amontoada não resiste à força do mar. Os molhes são estruturas complexas que não se fazem com palavras.
Essa entidade abstracta “pescadores”, construída ao gosto da oportunidade jornalística, que ouve, mais ou menos antes ou depois do almoço, um ou outro sabichão, caindo no cerco que Gustave le Bon tão bem explicou, ouvindo zunir, urra, e de tanto querer uma barra com molhe, junta-se à molhada das vozes insanas de Olhão, ficando a gritar que o dinheiro aplicado na Fuzeta foi mal empregue. Estou certo que não sabem o que dizem, se o dizem mesmo ou se o papagaio não é uma invenção jornalística.
Admitindo um pescador ideal, puro e experiente, teremos de concluir que se especializou na pesca; logo, não é especialista em barras. Como ao longo dos anos a ilha foi variando em forma e feitio, a experiência que pode ter acumulado pela observação (se a memória não se lhe toldar depois do almoço), pouco pode saber do que deu causa à forma que a ilha actualmente tomou. Isto é: a descrição da história de um fenómeno não permite, por si, construir uma teoria que retroprojecte a formação anterior ou que projecte a evolução futura – salvo por aproximação. Logo a experiência não é um modelo, nem constitui um saber, para além do que permite descrever o passado. Acresce que a memória é muito traiçoeira, relevando no caso a falta de precisão da descrição das velocidades de avanço da barra, que não evoluiu por igual ao longo dos últimos 50 anos. Ora, tais problemas estão devidamente estudados. Pode perceber-se com maior rigor o que tem acontecido no local pelo estudo da cartografia e pelo estudo da dinâmica do mar e da ilha. Neste particular, Portugal tem alguns especialistas de renome. Os pescadores devem ouvi-los, antes de tomarem posição.
O grupo de Olhão insinuou que a Polis fechou a barra natural aberta pela fúria do mar no final do inverno passado apenas por temer que o mar pudesse vir a atingir os edifícios construídos recentemente na frente ribeirinha da Fuzeta. Querem dizer que, se não fossem os novos edifícios, nada havia a proteger? Das duas, uma: ou aquela barra podia afectar a Fuzeta, com ou sem casas, ou não podia. Na primeira hipótese, a barra tinha de ser fechada; na segunda, podia continuar aberta. Agora, relacionar o fecho da barra com os novos edifícios é de baixa política. Se acham que os edifícios estão a mais, mexam-se, protejam a Fuzeta; se acham que o mar podia afectar a Fuzeta, concordem com a decisão de fechar a barra.
Poderá talvez ter-se por assente que a barra progride naturalmente de Poente para Nascente, no sentido do vento dominante. Partindo desta premissa, parece evidente que não podia manter-se a barra onde o mar a abriu, mesmo em cima da zona balnear, em frente da Fuzeta. A praia seria permanentemente afectada pela instabilidade e insegurança das areias e das correntes. O trânsito de embarcações seria, mais tarde ou mais cedo, prejudicado pelos cordões dunares internos da ria. É importante notar que o canal de navegação existente seria assoreado pelo delta da enchente, enquanto a barra continuasse naquele lugar; e quando a barra se desviasse, não haveria canal algum. Pretende-se uma barra estável, que divague o mínimo possível. Daí a abertura actual.
A actual situação será transitória, espera-se, mas é desagradável. Cabe porém perguntar onde andava a turba olhanense e os seus pescadores arquétipos, tomados depois de almoço pelo microfone do jornalista, quando desde a prometida barra de Henrique Tenreiro e ,depois, de Mário Soares, assistiram à perda da frota pesqueira da Fuzeta, ao definhar da povoação, à morte por santa velhice dos intrépidos pescadores de outrora – esses sim, arquétipos heróicos – e aos ocasionais naufrágios que ceifaram vidas por causa da porra da barra que divaga, como divagam os tolos? Melhor: não se pergunte por onde andaram, pergunte-se por onde andam. Quedem-se, que destroem o resto.
Um bem haja à sociedade Polis Ria Formosa e aos seus administradores.
No Verão passado, as máquinas recuperaram cerca de mil metros de cordão dunar e abriram uma nova barra – no local previsto há longos anos. Tratou-se de uma intervenção de emergência para evitar que a continuação do mau tempo no corrente inverno viesse a destruir a belíssima ilha que dá praia e ria, abrigo e fonte de riqueza. A abertura da barra representa uma pequena parcela dos custos do conjunto da obra. Todavia, não houve tempo (na dupla acepção de clima e de cronologia) para consolidar a nova barra. Os vendavais têm fustigado a costa – estamos hoje sob uma forte suestada. Formaram-se cabeços de areia ou assoreamentos que dificultam a navegação. A sociedade Polis, que gere a obra, anunciou novos trabalhos para breve – que devem passar pelo reforço Nascente da ilha e pelo encerramento da barra natural que aí existe.
A Fuzeta precisa de uma barra operativa, se necessário com molhes de protecção. Mas todos compreendem que a construção de molhes é um trabalho difícil e moroso, que deve ser precedido da confirmação do bom funcionamento da barra a proteger. Assim se fez, há cem anos, com as barras de Faro/Olhão e de Tavira. Se a barra actual não funcionar, tem de procurar-se outro local; e se se confirmar, tem de estudar-se a eventual colocação dos molhes. Não basta “pôr pedra”, como tem sido dito irresponsavelmente. A pedra amontoada não resiste à força do mar. Os molhes são estruturas complexas que não se fazem com palavras.
Essa entidade abstracta “pescadores”, construída ao gosto da oportunidade jornalística, que ouve, mais ou menos antes ou depois do almoço, um ou outro sabichão, caindo no cerco que Gustave le Bon tão bem explicou, ouvindo zunir, urra, e de tanto querer uma barra com molhe, junta-se à molhada das vozes insanas de Olhão, ficando a gritar que o dinheiro aplicado na Fuzeta foi mal empregue. Estou certo que não sabem o que dizem, se o dizem mesmo ou se o papagaio não é uma invenção jornalística.
Admitindo um pescador ideal, puro e experiente, teremos de concluir que se especializou na pesca; logo, não é especialista em barras. Como ao longo dos anos a ilha foi variando em forma e feitio, a experiência que pode ter acumulado pela observação (se a memória não se lhe toldar depois do almoço), pouco pode saber do que deu causa à forma que a ilha actualmente tomou. Isto é: a descrição da história de um fenómeno não permite, por si, construir uma teoria que retroprojecte a formação anterior ou que projecte a evolução futura – salvo por aproximação. Logo a experiência não é um modelo, nem constitui um saber, para além do que permite descrever o passado. Acresce que a memória é muito traiçoeira, relevando no caso a falta de precisão da descrição das velocidades de avanço da barra, que não evoluiu por igual ao longo dos últimos 50 anos. Ora, tais problemas estão devidamente estudados. Pode perceber-se com maior rigor o que tem acontecido no local pelo estudo da cartografia e pelo estudo da dinâmica do mar e da ilha. Neste particular, Portugal tem alguns especialistas de renome. Os pescadores devem ouvi-los, antes de tomarem posição.
O grupo de Olhão insinuou que a Polis fechou a barra natural aberta pela fúria do mar no final do inverno passado apenas por temer que o mar pudesse vir a atingir os edifícios construídos recentemente na frente ribeirinha da Fuzeta. Querem dizer que, se não fossem os novos edifícios, nada havia a proteger? Das duas, uma: ou aquela barra podia afectar a Fuzeta, com ou sem casas, ou não podia. Na primeira hipótese, a barra tinha de ser fechada; na segunda, podia continuar aberta. Agora, relacionar o fecho da barra com os novos edifícios é de baixa política. Se acham que os edifícios estão a mais, mexam-se, protejam a Fuzeta; se acham que o mar podia afectar a Fuzeta, concordem com a decisão de fechar a barra.
Poderá talvez ter-se por assente que a barra progride naturalmente de Poente para Nascente, no sentido do vento dominante. Partindo desta premissa, parece evidente que não podia manter-se a barra onde o mar a abriu, mesmo em cima da zona balnear, em frente da Fuzeta. A praia seria permanentemente afectada pela instabilidade e insegurança das areias e das correntes. O trânsito de embarcações seria, mais tarde ou mais cedo, prejudicado pelos cordões dunares internos da ria. É importante notar que o canal de navegação existente seria assoreado pelo delta da enchente, enquanto a barra continuasse naquele lugar; e quando a barra se desviasse, não haveria canal algum. Pretende-se uma barra estável, que divague o mínimo possível. Daí a abertura actual.
A actual situação será transitória, espera-se, mas é desagradável. Cabe porém perguntar onde andava a turba olhanense e os seus pescadores arquétipos, tomados depois de almoço pelo microfone do jornalista, quando desde a prometida barra de Henrique Tenreiro e ,depois, de Mário Soares, assistiram à perda da frota pesqueira da Fuzeta, ao definhar da povoação, à morte por santa velhice dos intrépidos pescadores de outrora – esses sim, arquétipos heróicos – e aos ocasionais naufrágios que ceifaram vidas por causa da porra da barra que divaga, como divagam os tolos? Melhor: não se pergunte por onde andaram, pergunte-se por onde andam. Quedem-se, que destroem o resto.
Um bem haja à sociedade Polis Ria Formosa e aos seus administradores.
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Sá Carneiro - a biografia
Miguel Pinheiro publicou recentemente “Sá Carneiro – Biografia” (Esfera dos Livros, Lisboa, 2010).
O livro está muito bem documentado, com acesso a arquivos pessoais e familiares, embora não indique a fonte de cada passagem ou referência. Representa um esforço enormíssimo - e conseguido.
Sá Carneiro sofrerá de perturbação bipolar (a depressão explica o interregno político de 1975; a euforia fá-lo regressar, conflituoso, em Setembro), chega a ser acusado pelos próximos de histeria e de comportamentos erráticos, sem estofo ideológico e ultra-direitista (o anti-comunismo seria permanente). Mas tem imbatíveis qualidades de liderança, de ser seguido pelos amigos e de prosseguir incansavelmente o seu projecto pessoal .
O autor procura sustentar que Sá Carneiro batalharia intransigentemente contra a interferência militar na política civil, defendendo uma democracia europeia. Porém, o grosso do livro passa a mensagem oposta: Sá Carneiro esteve mancomunado com Spínola no projecto pessoal deste para fazer um regime à sua imagem (presidente plebiscitado, autoritário, com poderes executivos, conservando o que se pudesse aproveitar do Estado Novo); depois, pelo menos indirectamente, comprometeu-se nos ataques terroristas contra civis e militares, que submergem o Norte em 1975 e 1976. O livro ainda não esclarece como é que um antimilitarista se deixa seduzir pelo general Soares Carneiro, apresentando-o como candidato a presidente da República ultradireitista (mais uma vez, como em 1975, em ruptura com a social-democracia e com as personalidades proeminentes do partido). Continua misteriosa a tragédia da sua morte.
Se se confirmar a versão de Miguel Pinheiro, será necessário rever a história dos partidos no período do 25 de Abril – e tão necessário é rever todo esse período quanto se impõe dizer “adeus Rezola”. Votos para que outros políticos se submetam à biografia, sem subterrefúgios. E Parabéns a Miguel Pinheiro.
O livro está muito bem documentado, com acesso a arquivos pessoais e familiares, embora não indique a fonte de cada passagem ou referência. Representa um esforço enormíssimo - e conseguido.
Sá Carneiro sofrerá de perturbação bipolar (a depressão explica o interregno político de 1975; a euforia fá-lo regressar, conflituoso, em Setembro), chega a ser acusado pelos próximos de histeria e de comportamentos erráticos, sem estofo ideológico e ultra-direitista (o anti-comunismo seria permanente). Mas tem imbatíveis qualidades de liderança, de ser seguido pelos amigos e de prosseguir incansavelmente o seu projecto pessoal .
O autor procura sustentar que Sá Carneiro batalharia intransigentemente contra a interferência militar na política civil, defendendo uma democracia europeia. Porém, o grosso do livro passa a mensagem oposta: Sá Carneiro esteve mancomunado com Spínola no projecto pessoal deste para fazer um regime à sua imagem (presidente plebiscitado, autoritário, com poderes executivos, conservando o que se pudesse aproveitar do Estado Novo); depois, pelo menos indirectamente, comprometeu-se nos ataques terroristas contra civis e militares, que submergem o Norte em 1975 e 1976. O livro ainda não esclarece como é que um antimilitarista se deixa seduzir pelo general Soares Carneiro, apresentando-o como candidato a presidente da República ultradireitista (mais uma vez, como em 1975, em ruptura com a social-democracia e com as personalidades proeminentes do partido). Continua misteriosa a tragédia da sua morte.
Se se confirmar a versão de Miguel Pinheiro, será necessário rever a história dos partidos no período do 25 de Abril – e tão necessário é rever todo esse período quanto se impõe dizer “adeus Rezola”. Votos para que outros políticos se submetam à biografia, sem subterrefúgios. E Parabéns a Miguel Pinheiro.
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domingo, 14 de novembro de 2010
Ordem dos Advogados: o que está em causa
Em Novembro de 1974, o advogado Luís de Carvalho e Oliveira explicava que as profissões liberais tendiam para a proletarização e que o advogado generalista tinha os dias contados. Preconizava então que a Ordem dos Advogados proibisse o exercício da advocacia aos trabalhadores por conta de outrem e que os advogados se associassem para prática partilhada e especializada da profissão.
Não obstante aquele vaticínio, uma parte muito substancial dos advogados continuam até hoje em prática individual e generalista, enquanto uma parte substancial do volume de negócios tem vindo a pertencer a sociedades de advogados. (Generalistas são ainda a maior parte dos juízes).
O generalismo tem a vantagem de permitir a proximidade com as questões pessoais, familiares e de pequena empresa, na busca de soluções conjugadas e adaptadas à vida dos particulares. As sociedades têm a vantagem da subdivisão interna das tarefas, congregando não só várias especialidades, como principalmente diferentes níveis de responsabilidade e de capacidade técnica.
A arma do advogado generalista é a visão ampla dos interesses em causa, se alicerçada no rigor técnico. A sociedade perfilha visões mais economicistas, burocráticas e automáticas (designadamente em sede de honorários), mas, supondo o rigor no topo, não pode assegurar rigor de execução pelas bases.
Nos últimos 15 anos a lei tem vindo a facilitar a correcção dos erros processuais dos mandatários, sobretudo daqueles que põem em crise a expectativa de ganho de causa, a coberto de uma pretensão de verdade. Este caminho legislativo tem propiciado a proliferação de advogados menos competentes, mormente daqueles que as sociedades seleccionam a muito baixo custo para executar serviços básicos: os riscos de falhanço ganham uma hipótese de emenda. Simultaneamente, a lei tem vindo a impor aos advogados em prática liberal um regime fiscal semelhante ao das sociedades (salvo se suportarem os altos custos do regime de contabilidade não organizada). Agrava-se pois a liberalidade e crescem as suspeitas de manobra por parte dos interesses das grandes sociedades.
Na província, talvez para se facilitar aquele caminho, o crescente gigantismo das Distritais tem dado uma abébia burocrática a pequenos grupos de advogados, que parecem compensar "os sacrifícios da abnegação" em prol do colectivo com a projecção da imagem pessoal no mercado.
Nas eleições de hoje para a Ordem dos Advogados (e já desde 1974), está em causa o modo como as grandes sociedades vão continuar a sua progressão no controlo da advocacia em Portugal. Um processo mais acelerado, com eliminação dos liberais, ou mais mitigado, com conservação da advocacia individual, mais ou menos influenciada pela burocracia de província.
Alguns exemplos: os inadmissíveis atrasos nos laudos de honorários (cerca de ano e meio) afectam os liberais, enquanto as sociedades seguem tabelas e contratos na maioria dos casos; o poder disciplinar nunca afecta as sociedades, e tolhe o exercício liberal ainda que por simples lapso; as baixas remunerações dos tarefeiros das sociedades não são fiscalizadas; o mérito, em especial quando da conquista jurisprudencial de casos concretos, nunca é tomado em conta pela Ordem dos Advogados; o demérito apenas importa em caso de queixa, quantas vezes injusta, do cliente; a mão disciplinar e fiscalizadora da Ordem paira de um modo corporativo (do Estado Novo) e ultrajante para a classe.
Aquele espectro não afecta apenas os advogados. Todos tememos cair na necessidade de ter de escolher um advogado, um tiro no escuro perigoso, mais perigoso ainda se apenas o podermos fazer de acordo com a condição económica de cada um, de cima abaixo na hierarquia de uma sociedade ou no balcão da segurança social. Deve temer-se também que um processo se alongue em incidentes custosos, decididos ao acaso por juízes influenciáveis, desde que um dia as sociedades se lembraram de “matar Alberto dos Reis” e os juízes se deixaram convencer de que assim ganhavam poder de decisão (ganharam poder de confusão, aquele que, segundo a boa teoria, conduz à concentração, isto é, ao poder stricto sensu).
domingo, 7 de novembro de 2010
Estado da Justiça: um caso de livre convicção
Num julgamento, a testemunha hesita e responde confusamente às perguntas da advogada.
A juíza interrompe: "Tudo o que a Sr.ª sabe foi o autor que lhe disse?" A testemunha confirma e a advogada continua a inquirição.
A testemunha mostra-se novamente confusa na descrição de um terreno e a juíza torna a interromper: "como é que sabe a configuração dos terrenos?" Responde a Sr.ª: "disse-me o autor".
A inquirição prossegue. No final, satisfeitas as dúvidas dos advogados, a juíza chama a testemunha, mostra-lhe a planta do terreno, descreve as construções e pergunta à testemunha: "de que lado está a casinha?"
A testemunha esclarece que a casinha está do lado do réu e adita pormenores que o comprometem. A juíza: "como sabe?" E a testemunha: "porque tenho conhecimento".
"Ah", diz a juíza, "a Sr.ª pode ir à sua vida".
Quinze dias depois dá por provada a versão da testemunha, aliás idónea e convincente.
Moral da história: assista a julgamentos, vai ver que se diverte.
A juíza interrompe: "Tudo o que a Sr.ª sabe foi o autor que lhe disse?" A testemunha confirma e a advogada continua a inquirição.
A testemunha mostra-se novamente confusa na descrição de um terreno e a juíza torna a interromper: "como é que sabe a configuração dos terrenos?" Responde a Sr.ª: "disse-me o autor".
A inquirição prossegue. No final, satisfeitas as dúvidas dos advogados, a juíza chama a testemunha, mostra-lhe a planta do terreno, descreve as construções e pergunta à testemunha: "de que lado está a casinha?"
A testemunha esclarece que a casinha está do lado do réu e adita pormenores que o comprometem. A juíza: "como sabe?" E a testemunha: "porque tenho conhecimento".
"Ah", diz a juíza, "a Sr.ª pode ir à sua vida".
Quinze dias depois dá por provada a versão da testemunha, aliás idónea e convincente.
Moral da história: assista a julgamentos, vai ver que se diverte.
domingo, 17 de outubro de 2010
Salazar e a emigração para França (1957-1968)
“O Estado Novo em Questão”, livro organizado por Nuno Domingos e Victor Pereira (edições 70, 2010), reúne bons ensaios sobre o salazarismo, numa perspectiva limpa de antigos modelos ideológicos, muito bem escritos e bem documentados.
Sobre a emigração para França – aquela operação clandestina que levou para os bidons villes franceses um milhão de portugueses pobres – constata que, ao contrário do que se pensava anteriormente, Salazar não controlou pessoalmente a política de emigração, verificando-se uma espécie de “status quo tácito” entre o presidente do conselho e o presidente da junta de emigração (p. 58).
Notamos nós porém que aquele aspecto, se pode surpreender os que acreditavam na omnisciência do ditador ou os que se inclinam a apontar alguma fraqueza, representa um verdadeiro mecanismo do poder absoluto.
Foi a teocracia papal que instalou a técnica de delegação de poderes do soberano para o núncio, que decide sem necessidade de ordem expressa. A técnica chama-se vivae voce oraculo (Paolo Prodi, Uma História da Justiça, p. 314). Mesmo nos governos democráticos se assiste a tal mecanismo, sobretudo para a tomada de medidas inconvenientes para a imagem do poder. O representante actua na conformidade com o espírito do sistema ou com a “legalidade”.
Ora, o que interessa esclarecer no caso de Salazar é por que é que a emigração se fazia clandestinamente. Não poderiam ser fechadas as fronteiras? Como foram legalizados em França os sens papiers? Aqui, parece-nos que as explicações adiantadas no estudo supra referenciado – cuidados com as forças agrárias locais que pretendiam conservar mão-de-obra barata – são insuficientes.
A agricultura estava em declínio (por razões complexas que explicaremos noutro lugar), dispensava braços e inclusive agricultores. Era necessário agir paulatinamente para que não se instalassem rupturas e radicalismos. Assim, o que se fez foi assegurar um lento definhar do meio rural – que ainda continua.
Portugal estava em guerra colonial e tinha gente rural em excesso que não conseguia empregar. Se a conservasse no território nacional ou se a remetesse para as colónias, sofreria inevitavelmente uma crise social e política. A França precisava de braços, mas não podia celebrar um acordo oficial com um país fascista em guerra em matéria tão sensível. O que então fizeram, um e outro, foi fingir que não viam e colaborar tacitamente.
Os actos de governo de tal processo são, como se infere, muito simples. Salazar até podia estar relativamente senil e desactualizado (ob.cit. p.58). Uma espécie de papa.
Gostaríamos muito, permita-se a confissão, de poder colaborar com tão eméritos autores. A crítica é positiva.
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sexta-feira, 17 de setembro de 2010
Rever o laxismo dos políticos
O discurso político português apresenta-se tão pobre e repetitivo que suscita medidas de revisão e aprofundamento. Cremos que o debate, qualquer debate, pressupõe o conhecimento da denotação das palavras e das referências implícitas nas frases. Poucos termos colhem franca difusão da esquerda à direita como “laxismo”. Não há cidadão que, apontando a displicência da administração, não a acuse de laxista. E não haverá político que não se socorra do termo para exigir ou impor disciplina, para verberar contra alguma desordem. Em França e no Brasil não é muito diferente. Parece um pouco ridículo, vejamos porquê.
O laxismo ganhou o sentido de “tendência para fugir ao dever”, incúria, ou falta de respeito pelas normas morais depois de ter sido proibido pela Igreja Católica no final do século XVII. Tal extensão de sentido atingiu plena alforria no calor da luta que os déspotas europeus travaram contra os jesuítas, para lhes retirarem o controlo do ensino e a influência sobre o direito e o poder. O Marquês de Pombal expulsou-os em 1759, seguido poucos anos depois pelos reis de França e Espanha. O papa Clemente XIV acabou por ilegalizar os jesuítas em 1773. Segundo Paolo Prodi (Uma História da Justiça, Ed. Estampa), não é bem certo que os jesuítas fossem dominados pelo laxismo, sendo obsoletas tais classificações (p. 372).
Repare como hoje em dia associamos os jesuítas a autoridade pura e dura e laxismo a desprezo pelas leis e regras morais. Uma contradição que (para rimar) chama a atenção! É preciso chegar à denotação original e esquecer o sentido pejorativo que o poder (que nunca se esquece do poder das palavras) lhe acrescentou.
A partir do século XVI, o absolutismo começou a dominar o Estado e as técnicas de governo passaram a invadir cada vez mais a esfera privada. Simultaneamente, o direito, a moral social, os valores económicos começaram a separar-se da crença divina. Os textos sagrados foram progressivamente reservados à vida espiritual, desaparecia a consciência colectiva e ressurgia a consciência individual, a relação directa do indivíduo com a intermediação de um projecto de salvação – o que será um dos temas principais da Reforma luterana e calvinista, como da Contra-Reforma. O direito positivo, que advém directamente da lei escrita e esta do poder do Estado, afirmava-se enquanto direito nacional, o que o relativizava quando comparado Estado a Estado. Ora, o relativismo das normas (por exemplo, o que pode ser crime num Estado, pode ser consentido noutro) estava contra o projecto de uma cristandade única, ainda alimentado pelas igrejas. Por outro lado, os Estados impunham cada vez maior controlo sobre as consciências individuais, chamando a si a autoridade dos padres das igrejas, formando o que se conhece hoje como igrejas nacionais, católicas ou protestantes.
Naquele quadro, em que a profusão de situações de vida se vai multiplicando, bem como as leis e as doutrinas, nasce a tendência para buscar a solução do caso concreto por aplicação directa de princípios morais formulados a partir da interpretação dos textos sagrados, princípios esses que deveriam guiar a conduta dos homens ao longo da vida. A casuística dominará o pensamento jurídico até ao século XIX. Porém, é sujeita a diferentes entendimentos: os rigoristas defendiam normas gerais aplicáveis sem atender às particularidades de cada caso, nem mediadas pelas circunstâncias sociais; os laxistas reservavam as questões de consciência individual para a intimidade da relação com Deus e propunham o probabilismo, num certo sentido, uma “ética minimalista”, pela qual a norma não podia ser aplicada na sua dureza, se não correspondesse a um certo grau de culpa, a qual deveria ser apreciada caso a caso em conformidade com pareceres autorizados. Estas correntes tiveram numerosas variantes (em Portugal, quase todos os teóricos minoritários foram perseguidos e muitos foram mortos. As suas vidas foram relatadas em processos falsos com o propósito de os denegrir – ainda hoje há quem cite tais processos como verdades indiscutíveis sem se aperceberem do crime que cometem contra a memória daquelas vítimas).
Como encontrar o princípio moral mais adequado para julgar um homem que praticou uma acção punida num Estado com a morte, com o degredo noutro e consentida noutro ainda? Deve ou não distinguir-se aquele que comete um crime com intenção esclarecida daquele que comete crime idêntico por erro ou desmazelo? É possível construir um sistema moral único que regule todos os homens? A moral serve apenas para fundar as punições ou deve regular o comportamento dos homens de acordo com o Bem? São estas as questões fulcrais que atravessam aquelas polémicas e que actualmente exigem reponderação.
Evidentemente, os Estados nação, como o papado, não contemporizam com interpretações que diminuam e reexaminem o poder das suas leis e das suas autoridades. Perseguem os tolerantes. A igreja, de igual modo, perseguiu os laxistas, pois a moral que então defendia assentava numa “teologia papal” e em normas positivas que exigiam obediência a todos os crentes, em especial aos padres. “A ordem moral afasta-se definitivamente da ordem jurídica” (ob.cit., p. 376). Nasce o positivismo.
Laxismo não significa desregramento moral, mas busca continuada da moral. Logo, não é amoral, nem se confunde com a falta de restrições morais ou com permissividade. Dentro do casuísmo, difere do rigorismo por não assentar em dogmas e admitir que o sistema de normas possa evoluir, recebendo novos princípios e valores produzidos não pelo autoridade do soberano, mas pelo esforço de interpretação. No sentido político, é pois um sinónimo de tolerância
Tem piada que os políticos tragam a acusação de laxista na ponta da língua, pondo-se a defender o rigor do Estado, a aplicação firme das suas punições e que o povo, tantas vezes castigado, os aplauda, enquanto as leis e até os princípios enformadores do Estado se atropelam em alterações contraditórias, mudando ao sabor das correntes – e são tantas!
Viver na deriva e não dar por ela…
O laxismo ganhou o sentido de “tendência para fugir ao dever”, incúria, ou falta de respeito pelas normas morais depois de ter sido proibido pela Igreja Católica no final do século XVII. Tal extensão de sentido atingiu plena alforria no calor da luta que os déspotas europeus travaram contra os jesuítas, para lhes retirarem o controlo do ensino e a influência sobre o direito e o poder. O Marquês de Pombal expulsou-os em 1759, seguido poucos anos depois pelos reis de França e Espanha. O papa Clemente XIV acabou por ilegalizar os jesuítas em 1773. Segundo Paolo Prodi (Uma História da Justiça, Ed. Estampa), não é bem certo que os jesuítas fossem dominados pelo laxismo, sendo obsoletas tais classificações (p. 372).
Repare como hoje em dia associamos os jesuítas a autoridade pura e dura e laxismo a desprezo pelas leis e regras morais. Uma contradição que (para rimar) chama a atenção! É preciso chegar à denotação original e esquecer o sentido pejorativo que o poder (que nunca se esquece do poder das palavras) lhe acrescentou.
A partir do século XVI, o absolutismo começou a dominar o Estado e as técnicas de governo passaram a invadir cada vez mais a esfera privada. Simultaneamente, o direito, a moral social, os valores económicos começaram a separar-se da crença divina. Os textos sagrados foram progressivamente reservados à vida espiritual, desaparecia a consciência colectiva e ressurgia a consciência individual, a relação directa do indivíduo com a intermediação de um projecto de salvação – o que será um dos temas principais da Reforma luterana e calvinista, como da Contra-Reforma. O direito positivo, que advém directamente da lei escrita e esta do poder do Estado, afirmava-se enquanto direito nacional, o que o relativizava quando comparado Estado a Estado. Ora, o relativismo das normas (por exemplo, o que pode ser crime num Estado, pode ser consentido noutro) estava contra o projecto de uma cristandade única, ainda alimentado pelas igrejas. Por outro lado, os Estados impunham cada vez maior controlo sobre as consciências individuais, chamando a si a autoridade dos padres das igrejas, formando o que se conhece hoje como igrejas nacionais, católicas ou protestantes.
Naquele quadro, em que a profusão de situações de vida se vai multiplicando, bem como as leis e as doutrinas, nasce a tendência para buscar a solução do caso concreto por aplicação directa de princípios morais formulados a partir da interpretação dos textos sagrados, princípios esses que deveriam guiar a conduta dos homens ao longo da vida. A casuística dominará o pensamento jurídico até ao século XIX. Porém, é sujeita a diferentes entendimentos: os rigoristas defendiam normas gerais aplicáveis sem atender às particularidades de cada caso, nem mediadas pelas circunstâncias sociais; os laxistas reservavam as questões de consciência individual para a intimidade da relação com Deus e propunham o probabilismo, num certo sentido, uma “ética minimalista”, pela qual a norma não podia ser aplicada na sua dureza, se não correspondesse a um certo grau de culpa, a qual deveria ser apreciada caso a caso em conformidade com pareceres autorizados. Estas correntes tiveram numerosas variantes (em Portugal, quase todos os teóricos minoritários foram perseguidos e muitos foram mortos. As suas vidas foram relatadas em processos falsos com o propósito de os denegrir – ainda hoje há quem cite tais processos como verdades indiscutíveis sem se aperceberem do crime que cometem contra a memória daquelas vítimas).
Como encontrar o princípio moral mais adequado para julgar um homem que praticou uma acção punida num Estado com a morte, com o degredo noutro e consentida noutro ainda? Deve ou não distinguir-se aquele que comete um crime com intenção esclarecida daquele que comete crime idêntico por erro ou desmazelo? É possível construir um sistema moral único que regule todos os homens? A moral serve apenas para fundar as punições ou deve regular o comportamento dos homens de acordo com o Bem? São estas as questões fulcrais que atravessam aquelas polémicas e que actualmente exigem reponderação.
Evidentemente, os Estados nação, como o papado, não contemporizam com interpretações que diminuam e reexaminem o poder das suas leis e das suas autoridades. Perseguem os tolerantes. A igreja, de igual modo, perseguiu os laxistas, pois a moral que então defendia assentava numa “teologia papal” e em normas positivas que exigiam obediência a todos os crentes, em especial aos padres. “A ordem moral afasta-se definitivamente da ordem jurídica” (ob.cit., p. 376). Nasce o positivismo.
Laxismo não significa desregramento moral, mas busca continuada da moral. Logo, não é amoral, nem se confunde com a falta de restrições morais ou com permissividade. Dentro do casuísmo, difere do rigorismo por não assentar em dogmas e admitir que o sistema de normas possa evoluir, recebendo novos princípios e valores produzidos não pelo autoridade do soberano, mas pelo esforço de interpretação. No sentido político, é pois um sinónimo de tolerância
Tem piada que os políticos tragam a acusação de laxista na ponta da língua, pondo-se a defender o rigor do Estado, a aplicação firme das suas punições e que o povo, tantas vezes castigado, os aplauda, enquanto as leis e até os princípios enformadores do Estado se atropelam em alterações contraditórias, mudando ao sabor das correntes – e são tantas!
Viver na deriva e não dar por ela…
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domingo, 12 de setembro de 2010
Fuzeta: I'm working on you
Impressiona tanta maquinaria sobre a Ilha da Fuzeta e tanto transporte de areia.
A maré viva de 6ª feira, 11/09/2010, abriu o que restava do cordão dunar na zona em que as máquinas preparavam a abertura da nova barra.
Duas primeiras fotos mostram o local na 5ª feira, com a barra ainda fechada, do lado da ria e do lado do mar. A terceira foto mostra a barra aberta na 6ª feira. A quarta foto ilustra uma secção da praia.
Enfim, palavras para quê? E como, se não é prestada informação alguma?
A maré viva de 6ª feira, 11/09/2010, abriu o que restava do cordão dunar na zona em que as máquinas preparavam a abertura da nova barra.
Duas primeiras fotos mostram o local na 5ª feira, com a barra ainda fechada, do lado da ria e do lado do mar. A terceira foto mostra a barra aberta na 6ª feira. A quarta foto ilustra uma secção da praia.
Enfim, palavras para quê? E como, se não é prestada informação alguma?
terça-feira, 24 de agosto de 2010
O conformismo na era moderna
Um martelo. O instrumento de Heidegger. A instrumentalidade do martelo é imediatamente tomada enquanto a priori no instante em que o martelo é representado. O reconhecimento implica a aceitação irreflectida de valores que se manifestam de forma complacente em quem reconhece. A utilidade do martelo, a sua essência valorada conforme as possibilidades de acção, domina de modo tal que exclui a dúvida sobre as potencialidades da coisa e dispensa o juízo crítico. O martelo, a porta, o autocarro, a igreja, a televisão, um mundo infindável de significantes carregados de valores.
Os actos de reconhecimento, na trivialidade da lida diária, inspiram o conformismo (Deleuze). As considerações ditadas pelo bom senso (dimensão, balanço e firmeza do martelo) não escapam ao conformismo, sujeitas à instrumentalidade da coisa, à forma dos valores representados, assimilados para permitir o reconhecimento. A história da técnica está pejada de casos de estranhos conformismos que perduraram séculos até que uma pequena inovação, que afinal parecia fácil de adoptar, transforma radicalmente o objecto (o tear, a roda de oleiro, o arado, o fogareiro, etc.). O questionamento é operativo em certas circunstâncias particulares, mas não se dá generalizadamente a todos.
A era moderna é marcada pela abertura ao questionamento, à inovação, ao inconformismo. A governação na era moderna engloba, entre as demais acções clássicas, medidas de controlo da inovação e de difusão dos valores essenciais tendentes a adaptar os indivíduos à inovação ou à conformação. O modelo preferido desta política chama-se máquina ou aparelho, o ente maquínico que permite todas as figurações ideográficas, reais ou fantasmáticas, em permanente devir. A máquina, como o aparelho burocrático, está em constante evolução, crescimento e transmutação.
A indústria tem a função fundamental de produzir instrumentos, imediatamente reconhecidos enquanto tal, mas destituídos de instrumentalidade ou de instrumentalidade mitigada (as calças que descosem, os aditivos alimentares, o telefone que joga, o automóvel que massaja, o robot de cozinha, o convívio virtual). O conformismo manifesta-se quando se toma a produção inútil como um fenómeno de consumo. Os valores de reconhecimento não podem ser questionados em tempo real, e dominam pela profusão, multiplicação e omnipresença.
O indivíduo ponderado e reflectido, que defende os seus e procura agir segundo a razão, é o objecto da governação moderna. E é uma realização dela.
Os actos de reconhecimento, na trivialidade da lida diária, inspiram o conformismo (Deleuze). As considerações ditadas pelo bom senso (dimensão, balanço e firmeza do martelo) não escapam ao conformismo, sujeitas à instrumentalidade da coisa, à forma dos valores representados, assimilados para permitir o reconhecimento. A história da técnica está pejada de casos de estranhos conformismos que perduraram séculos até que uma pequena inovação, que afinal parecia fácil de adoptar, transforma radicalmente o objecto (o tear, a roda de oleiro, o arado, o fogareiro, etc.). O questionamento é operativo em certas circunstâncias particulares, mas não se dá generalizadamente a todos.
A era moderna é marcada pela abertura ao questionamento, à inovação, ao inconformismo. A governação na era moderna engloba, entre as demais acções clássicas, medidas de controlo da inovação e de difusão dos valores essenciais tendentes a adaptar os indivíduos à inovação ou à conformação. O modelo preferido desta política chama-se máquina ou aparelho, o ente maquínico que permite todas as figurações ideográficas, reais ou fantasmáticas, em permanente devir. A máquina, como o aparelho burocrático, está em constante evolução, crescimento e transmutação.
A indústria tem a função fundamental de produzir instrumentos, imediatamente reconhecidos enquanto tal, mas destituídos de instrumentalidade ou de instrumentalidade mitigada (as calças que descosem, os aditivos alimentares, o telefone que joga, o automóvel que massaja, o robot de cozinha, o convívio virtual). O conformismo manifesta-se quando se toma a produção inútil como um fenómeno de consumo. Os valores de reconhecimento não podem ser questionados em tempo real, e dominam pela profusão, multiplicação e omnipresença.
O indivíduo ponderado e reflectido, que defende os seus e procura agir segundo a razão, é o objecto da governação moderna. E é uma realização dela.
O que é o fascismo
Não se resiste a fazer a história dos conceitos universais (o Estado, o poder, as elites, a luta de classes) e seus paradigmas ideológicos (o comunismo, o fascismo, o capitalismo). Foucault desmontou o historicismo dos universais e desenvolveu uma chave interpretativa, a governamentalidade. Mas a tentação de verificar a correspondência ideológica dos regimes políticos com os seus avatares persiste – e não deixa de ter algum interesse. O fascismo conquistou muitos dos Estados europeus após a I Grande Guerra, da Suécia à Roménia, da Itália a Portugal. Assumiu diferentes modalidades e idiossincrasias de Estado para Estado.
O conceito foi empregue em plúrimos sentidos, confundindo-se com a ultra-direita, com o populismo e com a exploração capitalista. É justamente considerado uma dos termos mais polissémicos da política. Diferentes autores e diferentes escolas de pensamento elaboraram profundíssimas análises, quase sempre polémicas e contraditórias, dos diversos “fascismos”. Alguns consideram a Alemanha nazi, caracterizada por uma economia de guerra e por movimentos de massas que destruiram as estruturas tradicionais, um totalitarismo, outros um fascismo. Se não se considerar a ideologia de base, os termos são convertíveis de acordo com a corrente de opinião que se adopte.
Totalitarismo ou fascismo excedem os conceitos de ditadura (que se refere ao bloqueio do parlamento pelo Governo) e de Estado autoritário (que designa o modo de imposição da política do Governo, por oposição a Estado democrático). Não há ditadura que não seja autoritária, mas estes elementos são insuficientes para os caracterizar.
Franco Savarino (1) apresenta uma boa síntese dos estudos mais recentes sobre o tema e esforça-se por indicar os itens essenciais do fascismo. Em primeiro lugar, contrariamente ao que pretenderam os fascistas italianos (2), o fascismo não dispõe de um esquema doutrinário estandardizado, como o comunismo, nem pode ser visto como uma teoria política tradicional. Em segundo lugar, caracteriza-se pela adaptabilidade, ductilidade e capacidade sintética, mostrando-se capaz de fazer alianças e de conjugar estratégias com as forças dominantes nas sociedades em que se implantou. Em terceiro lugar, não se confunde com meros governos de direita, classistas, totalitários ou de fachada. Por último, identifica-se, apesar das diferentes formas que tomou, como “um movimento revolucionário de massas, principalmente nacionalista, dotado de una “cosmovisão” e uma ideologia própria, independente, situada entre a esquerda e a direita do espectro político, com a ambição de solucionar a crise da modernidade e com uma proposta de palingenesia político-cultural” (p. 13). Carisma do chefe, organização em pirâmide, elitismo, nacionalismo e idealismo metafísico, foram outros dos elementos do fascismo.
Mas se daquele modo identificamos uma ideologia, não conhecemos do seu desígnio último (acrescentamos nós) que foi a conquista do Estado, através do controlo dos mecanismos tecnocráticos modernos de que os governos passaram a beneficiar, designadamente do aparelho económico e policial. Foi precisamente a necessidade desse controlo que determinou as sucessivas alianças tácticas que teceu com os diversos poderes sociais, da Igreja à escola, dos grandes agrários à família burguesa culta e isenta. E daí resultou que o movimento se confundiu com o próprio Estado, como se fosse a vanguarda da grei, em comunhão plena com o interesse público, que afinal delimitava e continha.
O fascismo não pretendia destruir as tradições, os valores dominantes na sociedade (como a propriedade, a individualidade, a família), mas instalou-se nesses valores, fê-los seus, chamou a si a ética antiga, que não separava a consciência individual da vida social, e imiscuiu-se em todos os aspectos da vida pública e privada. É pois radicalmente anti-liberal, como o é anti-socialista. Reúne pontos em comum com o totalitarismo, podendo considerar-se uma das suas variantes, mas não institui um sistema absolutamente novo, revolucionário, totalmente dominador do privado e do indivíduo, como se verificou no estalinismo.
O governo fascista é conservador, assente no equilíbrio do sector externo, do nível das reservas e da taxa de inflação. A questão das contas públicas constitui o cerne da acção governativa. Todas as políticas de fomento lhe estão subordinadas. A população é tratada como um dado de segundo plano, de modo ostensivo designadamente quando se proclamava a humildade, as sãs virtudes e a tenacidade perante as adversidades. Neste plano, é um governo anti-popular, elitista e reservado à elite.
Nem sempre esta elite do poder se organiza em partido político. Nem sempre se apoia num movimento de massas. Mas, em todos os casos, o governo fascista resiste tenazmente, e até com brutalidade excessiva, a todas as eventuais hipóteses de poder ser derrubado, de ceder o lugar a outros políticos, inclusive correligionários, ou de permitir mudanças sociais expressivas. Reprime por antecipação, tenta moldar as consiências, afastar os insubmissos e castigar os adversários. Está aqui, portanto, a demonstração de que o fascismo não se confunde com o Estado, mas é um aparelho de captura do Estado, da sua governação – e que serve grupos políticos, porventura heterogéneos, interessados em exercer tal dominação.
NOTAS:
(1) La Ideología del Fascismo entre Pasado y Presente, http://www.paginasprodigy.com/savarino/fascismo2005.pdf)
(2) Baldi-Papini, um fascista italiano que estudou Portugal, defendia que “ o fascismo é um sistema de pensamento antes de ser um sistema de governo” (citado em António Costa Pinto, As elites políticas e a consolidação do salazarismo: o Nacional Sindicalismo e a União Nacional, in Análise Social, vol. xxvii (116-117), 1992 (2.°-3.°), 575-613
O conceito foi empregue em plúrimos sentidos, confundindo-se com a ultra-direita, com o populismo e com a exploração capitalista. É justamente considerado uma dos termos mais polissémicos da política. Diferentes autores e diferentes escolas de pensamento elaboraram profundíssimas análises, quase sempre polémicas e contraditórias, dos diversos “fascismos”. Alguns consideram a Alemanha nazi, caracterizada por uma economia de guerra e por movimentos de massas que destruiram as estruturas tradicionais, um totalitarismo, outros um fascismo. Se não se considerar a ideologia de base, os termos são convertíveis de acordo com a corrente de opinião que se adopte.
Totalitarismo ou fascismo excedem os conceitos de ditadura (que se refere ao bloqueio do parlamento pelo Governo) e de Estado autoritário (que designa o modo de imposição da política do Governo, por oposição a Estado democrático). Não há ditadura que não seja autoritária, mas estes elementos são insuficientes para os caracterizar.
Franco Savarino (1) apresenta uma boa síntese dos estudos mais recentes sobre o tema e esforça-se por indicar os itens essenciais do fascismo. Em primeiro lugar, contrariamente ao que pretenderam os fascistas italianos (2), o fascismo não dispõe de um esquema doutrinário estandardizado, como o comunismo, nem pode ser visto como uma teoria política tradicional. Em segundo lugar, caracteriza-se pela adaptabilidade, ductilidade e capacidade sintética, mostrando-se capaz de fazer alianças e de conjugar estratégias com as forças dominantes nas sociedades em que se implantou. Em terceiro lugar, não se confunde com meros governos de direita, classistas, totalitários ou de fachada. Por último, identifica-se, apesar das diferentes formas que tomou, como “um movimento revolucionário de massas, principalmente nacionalista, dotado de una “cosmovisão” e uma ideologia própria, independente, situada entre a esquerda e a direita do espectro político, com a ambição de solucionar a crise da modernidade e com uma proposta de palingenesia político-cultural” (p. 13). Carisma do chefe, organização em pirâmide, elitismo, nacionalismo e idealismo metafísico, foram outros dos elementos do fascismo.
Mas se daquele modo identificamos uma ideologia, não conhecemos do seu desígnio último (acrescentamos nós) que foi a conquista do Estado, através do controlo dos mecanismos tecnocráticos modernos de que os governos passaram a beneficiar, designadamente do aparelho económico e policial. Foi precisamente a necessidade desse controlo que determinou as sucessivas alianças tácticas que teceu com os diversos poderes sociais, da Igreja à escola, dos grandes agrários à família burguesa culta e isenta. E daí resultou que o movimento se confundiu com o próprio Estado, como se fosse a vanguarda da grei, em comunhão plena com o interesse público, que afinal delimitava e continha.
O fascismo não pretendia destruir as tradições, os valores dominantes na sociedade (como a propriedade, a individualidade, a família), mas instalou-se nesses valores, fê-los seus, chamou a si a ética antiga, que não separava a consciência individual da vida social, e imiscuiu-se em todos os aspectos da vida pública e privada. É pois radicalmente anti-liberal, como o é anti-socialista. Reúne pontos em comum com o totalitarismo, podendo considerar-se uma das suas variantes, mas não institui um sistema absolutamente novo, revolucionário, totalmente dominador do privado e do indivíduo, como se verificou no estalinismo.
O governo fascista é conservador, assente no equilíbrio do sector externo, do nível das reservas e da taxa de inflação. A questão das contas públicas constitui o cerne da acção governativa. Todas as políticas de fomento lhe estão subordinadas. A população é tratada como um dado de segundo plano, de modo ostensivo designadamente quando se proclamava a humildade, as sãs virtudes e a tenacidade perante as adversidades. Neste plano, é um governo anti-popular, elitista e reservado à elite.
Nem sempre esta elite do poder se organiza em partido político. Nem sempre se apoia num movimento de massas. Mas, em todos os casos, o governo fascista resiste tenazmente, e até com brutalidade excessiva, a todas as eventuais hipóteses de poder ser derrubado, de ceder o lugar a outros políticos, inclusive correligionários, ou de permitir mudanças sociais expressivas. Reprime por antecipação, tenta moldar as consiências, afastar os insubmissos e castigar os adversários. Está aqui, portanto, a demonstração de que o fascismo não se confunde com o Estado, mas é um aparelho de captura do Estado, da sua governação – e que serve grupos políticos, porventura heterogéneos, interessados em exercer tal dominação.
NOTAS:
(1) La Ideología del Fascismo entre Pasado y Presente, http://www.paginasprodigy.com/savarino/fascismo2005.pdf)
(2) Baldi-Papini, um fascista italiano que estudou Portugal, defendia que “ o fascismo é um sistema de pensamento antes de ser um sistema de governo” (citado em António Costa Pinto, As elites políticas e a consolidação do salazarismo: o Nacional Sindicalismo e a União Nacional, in Análise Social, vol. xxvii (116-117), 1992 (2.°-3.°), 575-613
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
O castelo da melancia
Corta-se horizontalmente o topo e a base de uma melancia, expondo a polpa vermelha. Espeta-se uma faca quatro vezes no centro do topo, fazendo uma quadrícula. Talha-se a melancia sem tocar na área da quadrícula. Comem-se as talhadas reservando o centro, a que se dá o nome de castelo, a parte mais doce da melancia. O castelo reparte-se a final entre os comensais.
A melancia actual, como a maioria da fruta, é um produto modificado pelo homem. Perdeu mesocarpo e ganhou enorme capacidade de retenção de água (creio que superior aos normais 91%), com o que beneficia o agricultor na celeridade e o vendedor no peso, mas prejudica a formação do rendilhado criativo do castelo. A produção carece de enormes quantidades de água, que não abunda onde o sol aperta. A rega é feita, as mais das vezes, com água de má qualidade, proveniente de subaproveitamentos agrícolas, carregando detritos e elevadas concentrações de químicos e metais pesados. Algumas melancias transportam o cheiro da água com que foram criadas. Estes problemas são comuns a todas as culturas de verão e serão mais graves, pelo acréscimo de químicos, na meloa e nalgumas variedades de melão.
A boa melancia, quase um achado, perde pouca água quando aberta, rendilha com facilidade e tem textura firme que dá prazer mastigar. Estas qualidades são hoje absorvidas pela trivialidade: verde por fora, vermelha por dentro, doce e aquosa.
Antigamente fazia-se um “galo” – uma extracção quadrangular na lateral da melancia – para prova da qualidade do fruto. Os vendedores de hoje não aceitam tal sorte. Expõem metades e quartos de melancia sobre as bancas, cobertos de celofane. Deve ter-se cuidado com os sulfitos que alguns podem deitar sobre os frutos abertos para os manterem apetecíveis, mais os sulfitos do próprio celofane, e ainda com eventuais contaminações por bactérias e fungos. O melhor será comprá-las inteiras ou abertas na hora.
Enfim, se a melancia não fizer castelo, não se espante. Qualquer dia nem sequer haverá fruta, apenas produtos naturais ou assim assim.
A melancia actual, como a maioria da fruta, é um produto modificado pelo homem. Perdeu mesocarpo e ganhou enorme capacidade de retenção de água (creio que superior aos normais 91%), com o que beneficia o agricultor na celeridade e o vendedor no peso, mas prejudica a formação do rendilhado criativo do castelo. A produção carece de enormes quantidades de água, que não abunda onde o sol aperta. A rega é feita, as mais das vezes, com água de má qualidade, proveniente de subaproveitamentos agrícolas, carregando detritos e elevadas concentrações de químicos e metais pesados. Algumas melancias transportam o cheiro da água com que foram criadas. Estes problemas são comuns a todas as culturas de verão e serão mais graves, pelo acréscimo de químicos, na meloa e nalgumas variedades de melão.
A boa melancia, quase um achado, perde pouca água quando aberta, rendilha com facilidade e tem textura firme que dá prazer mastigar. Estas qualidades são hoje absorvidas pela trivialidade: verde por fora, vermelha por dentro, doce e aquosa.
Antigamente fazia-se um “galo” – uma extracção quadrangular na lateral da melancia – para prova da qualidade do fruto. Os vendedores de hoje não aceitam tal sorte. Expõem metades e quartos de melancia sobre as bancas, cobertos de celofane. Deve ter-se cuidado com os sulfitos que alguns podem deitar sobre os frutos abertos para os manterem apetecíveis, mais os sulfitos do próprio celofane, e ainda com eventuais contaminações por bactérias e fungos. O melhor será comprá-las inteiras ou abertas na hora.
Enfim, se a melancia não fizer castelo, não se espante. Qualquer dia nem sequer haverá fruta, apenas produtos naturais ou assim assim.
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
Contribuição para acabar com a República
No Estado contemporâneo tudo é economia; a governamentalidade, o bom governo, sustenta-se no racionalismo económico, na optimização dos recursos. O justo reporta-se à equidade na distribuição da riqueza, mas é suplantado pelo critério da legitimidade dos ganhos e da acumulação. A coesão social, o interesse colectivo, assenta no ideal de enriquecimento individual e de melhoria do bem-estar geral.
O Estado actual, no modelo ocidental do pós-guerra, não é pois republicano. A República, no sentido clássico, é a sociedade baseada na ética, em que o cidadão encontra a máxima realização pessoal pela plena participação no colectivo. Aí, as leis, como a economia, estão subordinadas a princípios éticos e morais que configuram o bem colectivo. Este ideal formou-se a partir dos séculos XIV e XV, quando a política deixou de ser “uma função externa dirigida para a tutela da sociedade do “mal” que a agride, para assumir uma função interna que tende a formar e regulamentar a pessoa, o indivíduo” ( Paolo Prodi, Uma História da Justiça, Ed. Estampa, p. 173)
Enquanto no Estado actual a educação visa propiciar agentes económicos independentes e altamente produtivos, na República a educação formaria cidadãos livres orientados pela virtude. No primeiro, os cidadãos dependem das agruras ou do sucesso do mercado; no segundo, o Estado deve assegurar a liberdade dos indivíduos, libertando-os da opressão, de modo a não prejudicar a sua plena integração social.
O ideal republicano morreu na I Grande Guerra, onde milhares de jovens europeus, imbuídos do espírito da pátria republicana, se entregaram voluntariamente às ordens de generais obtusos e cruéis, verdadeiros precursores dos fascismos que se lhe seguiram (lembrar por exemplo Guillaume Apollinaire, o autor de “onze mil vergas”), cuja escola militar de imbecilidade grosseira deu larga margem de manobra aos exércitos de Hitler. Das cinzas da II Grande Guerra, brotou o neoliberalismo, o Estado mitigado pelos interesses económicos. O ideal subsequente é puramente niilista: a busca da espiritualidade no vazio meditativo, na experiência transcendente (eloquentemente figurado em O Fio da Navalha, de Somerset Maugham); ou o hedonismo consumista, incapaz de se relacionar com o plano superior da realidade (muito representado no cinema de Hollywood).
A I República portuguesa de 1910 tem sido tratada com panos quentes por muita da nossa historiografia. Teria um projecto de modernização e de democratização, oposto à “ditadura” franquista e ao rotativismo dos partidos monárquicos. Porém, se a monarquia excluía dos censos eleitorais cerca de 95% da população (os analfabetos, os não proprietários e as mulheres), as sucessivas reformas da República, não incluíram mais de 11%. Segundo Rui Ramos, seguramente o maior historiador português da contemporaneidade: “O Estado Novo tem muito mais a ver com a República de 1910 e a admiração da gente do PRP pelas ditaduras de “salvação nacional”, do que com o liberalismo da monarquia constitucional” (in "Oliveira Martins e a ética republicana, p. 168, http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_18/18_09_%20RRamos.pdf, texto fundamental de Rui Ramos, pouco conhecido). Na recente e premiada História de Portugal, Rui Ramos torna a explicar (como na História de Mattoso) que, apesar de minoritários, os republicanos, sobretudo do PRP, reservaram para si os cargos do Estado, não obstante as disputas acérrimas que travavam. Acrescentamos nós: Afonso Costa, tal como Salazar, apostava no equilíbrio orçamental, o que, na época, constituía um traço dos governos conservadores e, posteriormente, totalitários. Não foi à toa que idolatraram o Marquês de Pombal, o déspota violentíssimo, patrocinando o governo da elite iluminada.
O colonialismo foi um dos estandartes da I República, que aliás arvorou contra a monarquia, aquando da questão do Mapa Cor-de-Rosa e aquando do Ultimato. Uma ideia de império ultramarino que casava com um nacionalismo ideológico, apregoado nas comemorações camonianas e na celebração do Marquês de Pombal. Está bem expresso na construção do Panteão Nacional, reservado aos heróis da Pátria. E foi materializado na participação de Portugal na I Grande Guerra, exclusivamente justificada pela necessidade de preservar as colónias das ameaças de ocupação pelas potências beligerantes. O Estado Novo colheu aí, sem originalidade, os pressupostos e as restrições da política que aplicou às colónias. O modo aviltante como a República tratou os soldados de La Lys e a repressão absurda e brutal que abateu sobre os operários, com base numa GNR deliberadamente formada por beluários, ultrapassou a violência do fascismo português, mesmo nas suas fases mais duras. Deve ainda acrescentar-se que, sob o salazarismo, os republicanos, tendo à cabeça António Sérgio, não defenderam mais do que uma tecnocracia nacionalista, tendo pugnado por planos de controlo da população que, se aplicados, teriam tido efeitos desastrosos (como o projecto de “colonização do Alentejo” com deslocação forçada de camponeses do Norte). Aquele tipo de república de princípio de século XX, afinal uma técnica de conquista do poder, manchou na época toda a Europa e não houve país que não tivesse sofrido penosamente com ele.
Efectivamente, nada temos a comemorar da I República. As celebrações do centenário, promovidas por gente que acha que “a República instaurou a igualdade e a cidadania plena” (falácias toscas de comissionistas tout court, pois a monarquia constitucional já as assegurava nos moldes constitucionais que hoje conhecemos) são estranhas, muito estranhas. Falta de sentido crítico, promoção de um ideal pátrio esgotado (tal como o hino), engajamento político ao sistema neoliberal actual, invocação de uma ética republicana vazia de sentido, enfim, contradições…
O temor que os republicanos clássicos evidenciavam do capitalismo e do controlo do Estado pelos interesses económicos, tornou-se hoje a base da operatividade da política. O domínio público é assustadoramente concessionado à gestão privada e os bens colectivos são comercializados na óptica do utilizador-pagador (matéria que abordaremos num próximo artigo). A comunicação social que, na lógica republicana, deveria ilustrar e preparar os cidadãos para a participação pública, veicula o medo dos desastres e do agravamento da crise, numa linguagem conotativa que impede a percepção da realidade. Os assuntos elevados do Estado são, com laivos de “sentido de Estado”, retirados da “praça pública”, ou seja escondidos dos cidadãos (a crise da banca, a real situação das contas do Estado, do rating, dos submarinos, da imensidade de questões que nos afectam, incluindo a eventual falência de clubes de futebol, não pertencem ao conhecimento do povo). As questões políticas de fundo são subordinadas ao segredo da economia.
Estaremos muito longe da sociedade ficcionada no Robocop (o filme), em que todo o Estado estava privatizado e toda a gestão pública dependia do critério da maximização do lucro. Também não se descortinam alternativas sólidas ao constitucionalismo e à cartilha dos direitos do homem, embora sejam hoje largamente insuficientes e tenham perdido o fundo ético. Mas urge pensar a Europa, à luz dos princípios democráticos que o neoliberalismo absorveu, o que parece implicar, como ponto de partida, o enterramento da república do século XX (não nos referimos ao regime político, à organicidade do governo e à partilha de poderes). As novas tecnocracias e as redes, diríamos até, os rizomas, que entrelaçam o indivíduo no social e no político podem prescindir da privatização da gestão do bem público e podem alicerçar-se numa ética a fundar.
O Estado actual, no modelo ocidental do pós-guerra, não é pois republicano. A República, no sentido clássico, é a sociedade baseada na ética, em que o cidadão encontra a máxima realização pessoal pela plena participação no colectivo. Aí, as leis, como a economia, estão subordinadas a princípios éticos e morais que configuram o bem colectivo. Este ideal formou-se a partir dos séculos XIV e XV, quando a política deixou de ser “uma função externa dirigida para a tutela da sociedade do “mal” que a agride, para assumir uma função interna que tende a formar e regulamentar a pessoa, o indivíduo” ( Paolo Prodi, Uma História da Justiça, Ed. Estampa, p. 173)
Enquanto no Estado actual a educação visa propiciar agentes económicos independentes e altamente produtivos, na República a educação formaria cidadãos livres orientados pela virtude. No primeiro, os cidadãos dependem das agruras ou do sucesso do mercado; no segundo, o Estado deve assegurar a liberdade dos indivíduos, libertando-os da opressão, de modo a não prejudicar a sua plena integração social.
O ideal republicano morreu na I Grande Guerra, onde milhares de jovens europeus, imbuídos do espírito da pátria republicana, se entregaram voluntariamente às ordens de generais obtusos e cruéis, verdadeiros precursores dos fascismos que se lhe seguiram (lembrar por exemplo Guillaume Apollinaire, o autor de “onze mil vergas”), cuja escola militar de imbecilidade grosseira deu larga margem de manobra aos exércitos de Hitler. Das cinzas da II Grande Guerra, brotou o neoliberalismo, o Estado mitigado pelos interesses económicos. O ideal subsequente é puramente niilista: a busca da espiritualidade no vazio meditativo, na experiência transcendente (eloquentemente figurado em O Fio da Navalha, de Somerset Maugham); ou o hedonismo consumista, incapaz de se relacionar com o plano superior da realidade (muito representado no cinema de Hollywood).
A I República portuguesa de 1910 tem sido tratada com panos quentes por muita da nossa historiografia. Teria um projecto de modernização e de democratização, oposto à “ditadura” franquista e ao rotativismo dos partidos monárquicos. Porém, se a monarquia excluía dos censos eleitorais cerca de 95% da população (os analfabetos, os não proprietários e as mulheres), as sucessivas reformas da República, não incluíram mais de 11%. Segundo Rui Ramos, seguramente o maior historiador português da contemporaneidade: “O Estado Novo tem muito mais a ver com a República de 1910 e a admiração da gente do PRP pelas ditaduras de “salvação nacional”, do que com o liberalismo da monarquia constitucional” (in "Oliveira Martins e a ética republicana, p. 168, http://www.penelope.ics.ul.pt/indices/penelope_18/18_09_%20RRamos.pdf, texto fundamental de Rui Ramos, pouco conhecido). Na recente e premiada História de Portugal, Rui Ramos torna a explicar (como na História de Mattoso) que, apesar de minoritários, os republicanos, sobretudo do PRP, reservaram para si os cargos do Estado, não obstante as disputas acérrimas que travavam. Acrescentamos nós: Afonso Costa, tal como Salazar, apostava no equilíbrio orçamental, o que, na época, constituía um traço dos governos conservadores e, posteriormente, totalitários. Não foi à toa que idolatraram o Marquês de Pombal, o déspota violentíssimo, patrocinando o governo da elite iluminada.
O colonialismo foi um dos estandartes da I República, que aliás arvorou contra a monarquia, aquando da questão do Mapa Cor-de-Rosa e aquando do Ultimato. Uma ideia de império ultramarino que casava com um nacionalismo ideológico, apregoado nas comemorações camonianas e na celebração do Marquês de Pombal. Está bem expresso na construção do Panteão Nacional, reservado aos heróis da Pátria. E foi materializado na participação de Portugal na I Grande Guerra, exclusivamente justificada pela necessidade de preservar as colónias das ameaças de ocupação pelas potências beligerantes. O Estado Novo colheu aí, sem originalidade, os pressupostos e as restrições da política que aplicou às colónias. O modo aviltante como a República tratou os soldados de La Lys e a repressão absurda e brutal que abateu sobre os operários, com base numa GNR deliberadamente formada por beluários, ultrapassou a violência do fascismo português, mesmo nas suas fases mais duras. Deve ainda acrescentar-se que, sob o salazarismo, os republicanos, tendo à cabeça António Sérgio, não defenderam mais do que uma tecnocracia nacionalista, tendo pugnado por planos de controlo da população que, se aplicados, teriam tido efeitos desastrosos (como o projecto de “colonização do Alentejo” com deslocação forçada de camponeses do Norte). Aquele tipo de república de princípio de século XX, afinal uma técnica de conquista do poder, manchou na época toda a Europa e não houve país que não tivesse sofrido penosamente com ele.
Efectivamente, nada temos a comemorar da I República. As celebrações do centenário, promovidas por gente que acha que “a República instaurou a igualdade e a cidadania plena” (falácias toscas de comissionistas tout court, pois a monarquia constitucional já as assegurava nos moldes constitucionais que hoje conhecemos) são estranhas, muito estranhas. Falta de sentido crítico, promoção de um ideal pátrio esgotado (tal como o hino), engajamento político ao sistema neoliberal actual, invocação de uma ética republicana vazia de sentido, enfim, contradições…
O temor que os republicanos clássicos evidenciavam do capitalismo e do controlo do Estado pelos interesses económicos, tornou-se hoje a base da operatividade da política. O domínio público é assustadoramente concessionado à gestão privada e os bens colectivos são comercializados na óptica do utilizador-pagador (matéria que abordaremos num próximo artigo). A comunicação social que, na lógica republicana, deveria ilustrar e preparar os cidadãos para a participação pública, veicula o medo dos desastres e do agravamento da crise, numa linguagem conotativa que impede a percepção da realidade. Os assuntos elevados do Estado são, com laivos de “sentido de Estado”, retirados da “praça pública”, ou seja escondidos dos cidadãos (a crise da banca, a real situação das contas do Estado, do rating, dos submarinos, da imensidade de questões que nos afectam, incluindo a eventual falência de clubes de futebol, não pertencem ao conhecimento do povo). As questões políticas de fundo são subordinadas ao segredo da economia.
Estaremos muito longe da sociedade ficcionada no Robocop (o filme), em que todo o Estado estava privatizado e toda a gestão pública dependia do critério da maximização do lucro. Também não se descortinam alternativas sólidas ao constitucionalismo e à cartilha dos direitos do homem, embora sejam hoje largamente insuficientes e tenham perdido o fundo ético. Mas urge pensar a Europa, à luz dos princípios democráticos que o neoliberalismo absorveu, o que parece implicar, como ponto de partida, o enterramento da república do século XX (não nos referimos ao regime político, à organicidade do governo e à partilha de poderes). As novas tecnocracias e as redes, diríamos até, os rizomas, que entrelaçam o indivíduo no social e no político podem prescindir da privatização da gestão do bem público e podem alicerçar-se numa ética a fundar.
domingo, 8 de agosto de 2010
Mulheres na Justiça
“Mulheres em Atenas”, a tese de doutoramento, doutíssima aliás, da professora doutora Ana Lúcia Curado (Sá da Costa Editora, 2008), percorre as fontes escritas gregas que sobreviveram até os nossos dias reportadas à situação social, familiar e política das mulheres. Parece assumir um cariz marcadamente exegético. Não segue a antropologia, pelo que fica um pouco limitada ao teor dos textos. É omissa, por exemplo, sobre as questões da vida sexual, íntima, da reprodução e da saúde. Também não actualiza as obras de Foulcaut e outros sobre a sexualidade antiga. Constitui porém um importante manancial do direito, dos valores e do léxico da civilização mãe. Talvez se perca um pouco na discussão de casos, salvo no interessantíssimo “Contra Neera”, a mulher sedutora por excelência. Mas lê-se como tremoços, apesar da linguagem erudita, num estilo que parece tributário da grande, genial, superlativa Maria Helena da Rocha Pereira (se ainda não a leu, leia tudo o que encontrar com a assinatura dela), que prefacia Mulheres em Atenas.
Todavia encontramos um inesperado interesse nesta obra, pois a autora escuda a sua feminilidade nos rigores clássicos, enquanto expressa valores opinativos sobre a retórica judicial grega e actualiza a condição humana, socorrendo-se de Kafka e Lawrence, entre outros. Nalgumas passagens, não é fácil perceber se as considerações foram extraídas de Atenas ou se correspondem ao entendimento universal da autora. Supondo que “num discurso de índole judicial os elementos referenciados não são lançados ao acaso”, admite que visem “baralhar os factos em causa e o júri que os há-de julgar” (p. 419). As peças da acusação e da defesa “estão ao serviço de interesses privados”, pelo que as descrições podem estar afectadas de “exagero hiperbólico” (p. 457). A intérprete deve escrutinar o discurso em função do pedido formulado pelo orador, desmontando a argumentação, limando os excessos, sobrelevando as omissões (pp. 283, 341, 350) e os entinemas (p. 288, interessante conceito retórico). Busca a verdade, segundo um interesse maior, exterior ao litígio tal como as partes o apresentam. O julgamento das provas não se prende à comprovação das alegações, mas é elevado ao serviço dessa verdade superior a que só a intérprete tem acesso. A opinião final da intérprete é relativizada de acordo com a exiguidade das fontes e com a incerteza parcial dos factos.
Tergiversamos, sem pretender diminuir o notável mérito da autora, da esfera classicista e da análise retórica para aquele aspecto, que parece tão feminino, da faculdade de inferir com segurança a partir de meros indícios, inclusive em matérias para as quais as fontes de informação não estão direccionadas. A sociedade do nosso tempo organiza-se em torno de um método de inferências auto-justificantes que ganham expressão através de actos de poder. Que há de mais feminino do que aqueles generais à escovinha em permanente reunião numa enorme sala penumbrosa fazendo-se gestores dos céus do Iraque? Mas descendo à terra, não terá sido um golpe de génio prover os tribunais de mulheres juízes, formando-as aí desde jovens, enquanto meio de suprir as deficiências da investigação criminal e de aproximar os litígios da verdade última que é o puro consumo? Inclusive o consumo de informação estatística e esse consumo grosso das mulheres que é a classificação de serviço!
Derrida fez uma série de conferências sobre o fazer direito instantâneo das sentenças judiciais, quase se ajoelhou perante tal mistério. Na verdade, a sentença condenatória “é um puro acto instantâneo ou um atributo incorporal” que transforma o acusado em condenado (Deleuze, Capitalismo e Esquizofrenia 2, p. 114). A sentença, cumpridas as formalidades, nunca é arbitrária pois beneficia desse poder de fazer o justo, de dizer a verdade ou a verdade possível (a verdade é o que a sentença diz). Uma das formalidades desse dizer consiste na qualificação dos interesses: o interesse das partes não é o que eles alegam expressamente, mas o que resulta da interpretação do juiz. Também os factos que invocam têm de ser esquadrinhados em função da descoberta do fim último dos interesses, e realinhados de acordo com o interesse superior que é, simplesmente, a expressão da sentença. Os nórdicos não escondem o efeito de exclusão da sentença condenatória, tornam-no até o cerne da discussão, e não se enfeitam de vestes pesadas. A tradição românica é mais folclórica, mais expressiva, com muitos exórdios ao justo.
Um tipo normal, lendo kafka e Lawrence, sentiria náuseas dessas inferências judiciais, abominaria os juízos destrapaceados sobre o íntimo dos outros, abominaria supor “o que ele realmente quis foi enganar-me”, e fugiria desse mundo escuro, de vielas e trincheiras, onde o eterno feminino faz o direito e limpa a terra do seu esterco, a bem ou a mal. O golpe de génio que alterou as regras do jogo à escala mundial e suprimiu os juízes de condição inferior que outrora julgavam as baixezas, bem como dispensou o júri, essa expressão maior da cidadania, tornando a justiça prática, limpa e absorvente, assenta no facto de o feminino não tomar consciência de que não pode lavar as mãos que suja quando julga, quando simula a verdade, instituindo-a mesmo, ainda que acerte, mas ai quando falha! O feminino deixa-se levar pelo gosto da inferência, pelo olhar de espanto daquele que julga ter desmascarado.
O jardim-escola não permite, hoy por hoy, distinguir entre homens e mulheres no exercício da justiça. A regra da inferência fundadora da punição tornou-se comum, as mesmas regras do recreio, certinhas; uma certa desconsideração pelos estranhos, própria dos meninos e meninas.Juiz ou juíza, pelo menos a sentença é (quase) sempre feminina.
Todavia encontramos um inesperado interesse nesta obra, pois a autora escuda a sua feminilidade nos rigores clássicos, enquanto expressa valores opinativos sobre a retórica judicial grega e actualiza a condição humana, socorrendo-se de Kafka e Lawrence, entre outros. Nalgumas passagens, não é fácil perceber se as considerações foram extraídas de Atenas ou se correspondem ao entendimento universal da autora. Supondo que “num discurso de índole judicial os elementos referenciados não são lançados ao acaso”, admite que visem “baralhar os factos em causa e o júri que os há-de julgar” (p. 419). As peças da acusação e da defesa “estão ao serviço de interesses privados”, pelo que as descrições podem estar afectadas de “exagero hiperbólico” (p. 457). A intérprete deve escrutinar o discurso em função do pedido formulado pelo orador, desmontando a argumentação, limando os excessos, sobrelevando as omissões (pp. 283, 341, 350) e os entinemas (p. 288, interessante conceito retórico). Busca a verdade, segundo um interesse maior, exterior ao litígio tal como as partes o apresentam. O julgamento das provas não se prende à comprovação das alegações, mas é elevado ao serviço dessa verdade superior a que só a intérprete tem acesso. A opinião final da intérprete é relativizada de acordo com a exiguidade das fontes e com a incerteza parcial dos factos.
Tergiversamos, sem pretender diminuir o notável mérito da autora, da esfera classicista e da análise retórica para aquele aspecto, que parece tão feminino, da faculdade de inferir com segurança a partir de meros indícios, inclusive em matérias para as quais as fontes de informação não estão direccionadas. A sociedade do nosso tempo organiza-se em torno de um método de inferências auto-justificantes que ganham expressão através de actos de poder. Que há de mais feminino do que aqueles generais à escovinha em permanente reunião numa enorme sala penumbrosa fazendo-se gestores dos céus do Iraque? Mas descendo à terra, não terá sido um golpe de génio prover os tribunais de mulheres juízes, formando-as aí desde jovens, enquanto meio de suprir as deficiências da investigação criminal e de aproximar os litígios da verdade última que é o puro consumo? Inclusive o consumo de informação estatística e esse consumo grosso das mulheres que é a classificação de serviço!
Derrida fez uma série de conferências sobre o fazer direito instantâneo das sentenças judiciais, quase se ajoelhou perante tal mistério. Na verdade, a sentença condenatória “é um puro acto instantâneo ou um atributo incorporal” que transforma o acusado em condenado (Deleuze, Capitalismo e Esquizofrenia 2, p. 114). A sentença, cumpridas as formalidades, nunca é arbitrária pois beneficia desse poder de fazer o justo, de dizer a verdade ou a verdade possível (a verdade é o que a sentença diz). Uma das formalidades desse dizer consiste na qualificação dos interesses: o interesse das partes não é o que eles alegam expressamente, mas o que resulta da interpretação do juiz. Também os factos que invocam têm de ser esquadrinhados em função da descoberta do fim último dos interesses, e realinhados de acordo com o interesse superior que é, simplesmente, a expressão da sentença. Os nórdicos não escondem o efeito de exclusão da sentença condenatória, tornam-no até o cerne da discussão, e não se enfeitam de vestes pesadas. A tradição românica é mais folclórica, mais expressiva, com muitos exórdios ao justo.
Um tipo normal, lendo kafka e Lawrence, sentiria náuseas dessas inferências judiciais, abominaria os juízos destrapaceados sobre o íntimo dos outros, abominaria supor “o que ele realmente quis foi enganar-me”, e fugiria desse mundo escuro, de vielas e trincheiras, onde o eterno feminino faz o direito e limpa a terra do seu esterco, a bem ou a mal. O golpe de génio que alterou as regras do jogo à escala mundial e suprimiu os juízes de condição inferior que outrora julgavam as baixezas, bem como dispensou o júri, essa expressão maior da cidadania, tornando a justiça prática, limpa e absorvente, assenta no facto de o feminino não tomar consciência de que não pode lavar as mãos que suja quando julga, quando simula a verdade, instituindo-a mesmo, ainda que acerte, mas ai quando falha! O feminino deixa-se levar pelo gosto da inferência, pelo olhar de espanto daquele que julga ter desmascarado.
O jardim-escola não permite, hoy por hoy, distinguir entre homens e mulheres no exercício da justiça. A regra da inferência fundadora da punição tornou-se comum, as mesmas regras do recreio, certinhas; uma certa desconsideração pelos estranhos, própria dos meninos e meninas.Juiz ou juíza, pelo menos a sentença é (quase) sempre feminina.
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segunda-feira, 26 de julho de 2010
ALLgarve gera polémica
A expansão da marca ALLgarve está em risco depois de Sebastião Benquisto, chairman da SeaLife&Funny, ter declarado que "não descarto a hipótese de a ALLqaeda vir a adoptar o nosso figurino". As autoridades americanas retiraram de imediato os projectos previstos para ALLabama e ALLaska. Eduardino Lusitano, presidente do Gabinete Organizador da Marca Allgarvia, confessou-se consternado, mas não derrotado. A parceria com a Sea Life&Funny, prestigiada empresa no segmento de marketing, está a ser reponderada. Eduardino Lusitano prefere realçar, para já, o excelente desempenho da SeaLife na adaptação do conceito a ALLmancil e no incremento das negociações com o município de Almada. "A candidatura de ALLmada abre boas perspectivas para o mercado interno", salientou.
Fuzeta: tira-se o chapéu
Espectacular trabalho de reabilitação da Ilha da Fuzeta. A praia da ilha está óptima, muito melhor que a do Ancão. Tira-se o chapéu. E se for levado até ao fim, como parece, far-se-á vénia. A nova barra precisa de molhes de protecção e a Praia dos Tesos de um novo lençol de areia. A ver se a onda não pára. Para já, parabéns aos técnicos e autoridades. Correm riscos bem calculados, e contam connosco.
quarta-feira, 21 de julho de 2010
Sida: o Gel da Serpente
Há coisas muito actuais que fazem lembrar o Ovo da Serpente, o polémico filme de Ingmar Bergman.
A primeira é a estonteante facilidade com que a comunicação social dá eco, ad nauseam, de qualquer notícia que emane de fonte de autoridade sob matéria de interesse relevante. Propagação acéfala, acrítica, imponderada, muitas vezes mera reprodução dos comunicados de imprensa de organismos politicamente activos. Em tais casos, cabe perguntar para que serve a imprensa. E percebe-se que serve para corroborar, directa ou indirectamente, o efeito que alguma entidade pretende produzir, levando ao convencimento do público, tanto através da credibilidade de que ainda desfruta entre os incautos, como talvez mais ainda pelo cansaço da repetição inútil.
Fazendo tábua rasa dos ridículos géis de outrora (espermicidas e bactericidas), surge agora um estudo que anuncia um gel que permite a 54% das mulheres que o usam rigorosamente duas vezes por dia evitar o contágio de HIV em relações com o parceiro habitual. Se o usarem mais de 30 meses seguidos, o gel perde a eficácia. Se o usarem apenas em 80% das relações a percentagem baixa para 29%. A experiência fez-se na África do Sul com um grupo de 450 mulheres casadas cujos maridos se recusam a usar preservativo. Aquele grupo foi comparado com outro de iguais características a que foi ministrado um gel sem efeitos medicinais, mero placebo, e que desconhecia este facto. Neste segundo grupo, a incidência de sida foi de 60 casos, face a 38 casos no grupo com gel anti-viral.
À vista desarmada, parece que 60 para 450, não difere muito de 38 para 450, quando se está perante uma doença mortal: uma relação de 13% para 8%. A diferença pode dever-se simplesmente à maior ou menor promiscuidade dos homens ou ao maior risco assumido por alguns deles, sendo de todo impossível avaliar comportamentos privados em pessoas não sujeitas à experiência (que visou apenas as mulheres).
Mas é chocante admitir que tantas mulheres estiveram enganadas com um placebo, durante tanto tempo, quando bastaria controlar e identificar o grupo para garantir idêntica estatística. É muito chocante constar que 60 mulheres contraíram a doença, crendo que o gel as poderia proteger! É uma experiência macabra, violenta, manipuladora, que despreza o bem precioso da vida. Um sacrifício que ombreia com o médico nazi do Ovo da Serpente.
É ultrajante que o combate à doença não enfrente os preconceitos discriminatórios vigentes em muitas comunidades africanas, e procure adaptar a medicina e a saúde a comportamentos de exploração do trânsito sexual, a menosprezo da dignidade das mulheres, perante o marido relapso e inconsequente. Sabe-se que a incidência da sida é directamente proporcional à falta de liberdade e de auto-determinação sexual, quantas vezes acompanhada de situações de pobreza grave, opressão e violência. Uma sociedade assim não é machista, é paranóide e auto-destrutiva. Um Estado que contemporiza com tais desmandos, que não enceta campanhas, hoje tão banais, de informação e divulgação, de distribuição de preservativos e de perseguição dos contaminadores intencionais é um Estado que tem um óbvio interesse na degradação da sua própria população, que vive do flagelo e encontra nos seus efeitos forças para se impor e quebrar resistências. A África do Sul é um estendal infindável de Apartheids, a que é preciso pôr cobro.
Não. Efectivamente pretende-se atingir um objectivo ainda por esclarecer. Se se somarem as notícias de que, crendo que reduz o risco de contágio de HIV, Bill Gates financia a circuncisão em África, tendo sido já realizadas cerca de 60.000 intervenções, e se se investigarem os boatos de que se propõe desenvolver vacinas que reduzam a fertilidade humana, com o propósito de reduzir a população mundial, temos de achar, sem medo de conspirações, que algo de não revelado se vai fazendo, com o apoio dos governos mundiais. Note-se aliás que África nem sequer é um continente com problemas de sobrepopulação e que tem riquezas naturais imensas sub-exploradas.
Para já, seria tão bom que conseguissemos voltar a ter imprensa!
A primeira é a estonteante facilidade com que a comunicação social dá eco, ad nauseam, de qualquer notícia que emane de fonte de autoridade sob matéria de interesse relevante. Propagação acéfala, acrítica, imponderada, muitas vezes mera reprodução dos comunicados de imprensa de organismos politicamente activos. Em tais casos, cabe perguntar para que serve a imprensa. E percebe-se que serve para corroborar, directa ou indirectamente, o efeito que alguma entidade pretende produzir, levando ao convencimento do público, tanto através da credibilidade de que ainda desfruta entre os incautos, como talvez mais ainda pelo cansaço da repetição inútil.
Fazendo tábua rasa dos ridículos géis de outrora (espermicidas e bactericidas), surge agora um estudo que anuncia um gel que permite a 54% das mulheres que o usam rigorosamente duas vezes por dia evitar o contágio de HIV em relações com o parceiro habitual. Se o usarem mais de 30 meses seguidos, o gel perde a eficácia. Se o usarem apenas em 80% das relações a percentagem baixa para 29%. A experiência fez-se na África do Sul com um grupo de 450 mulheres casadas cujos maridos se recusam a usar preservativo. Aquele grupo foi comparado com outro de iguais características a que foi ministrado um gel sem efeitos medicinais, mero placebo, e que desconhecia este facto. Neste segundo grupo, a incidência de sida foi de 60 casos, face a 38 casos no grupo com gel anti-viral.
À vista desarmada, parece que 60 para 450, não difere muito de 38 para 450, quando se está perante uma doença mortal: uma relação de 13% para 8%. A diferença pode dever-se simplesmente à maior ou menor promiscuidade dos homens ou ao maior risco assumido por alguns deles, sendo de todo impossível avaliar comportamentos privados em pessoas não sujeitas à experiência (que visou apenas as mulheres).
Mas é chocante admitir que tantas mulheres estiveram enganadas com um placebo, durante tanto tempo, quando bastaria controlar e identificar o grupo para garantir idêntica estatística. É muito chocante constar que 60 mulheres contraíram a doença, crendo que o gel as poderia proteger! É uma experiência macabra, violenta, manipuladora, que despreza o bem precioso da vida. Um sacrifício que ombreia com o médico nazi do Ovo da Serpente.
É ultrajante que o combate à doença não enfrente os preconceitos discriminatórios vigentes em muitas comunidades africanas, e procure adaptar a medicina e a saúde a comportamentos de exploração do trânsito sexual, a menosprezo da dignidade das mulheres, perante o marido relapso e inconsequente. Sabe-se que a incidência da sida é directamente proporcional à falta de liberdade e de auto-determinação sexual, quantas vezes acompanhada de situações de pobreza grave, opressão e violência. Uma sociedade assim não é machista, é paranóide e auto-destrutiva. Um Estado que contemporiza com tais desmandos, que não enceta campanhas, hoje tão banais, de informação e divulgação, de distribuição de preservativos e de perseguição dos contaminadores intencionais é um Estado que tem um óbvio interesse na degradação da sua própria população, que vive do flagelo e encontra nos seus efeitos forças para se impor e quebrar resistências. A África do Sul é um estendal infindável de Apartheids, a que é preciso pôr cobro.
Não. Efectivamente pretende-se atingir um objectivo ainda por esclarecer. Se se somarem as notícias de que, crendo que reduz o risco de contágio de HIV, Bill Gates financia a circuncisão em África, tendo sido já realizadas cerca de 60.000 intervenções, e se se investigarem os boatos de que se propõe desenvolver vacinas que reduzam a fertilidade humana, com o propósito de reduzir a população mundial, temos de achar, sem medo de conspirações, que algo de não revelado se vai fazendo, com o apoio dos governos mundiais. Note-se aliás que África nem sequer é um continente com problemas de sobrepopulação e que tem riquezas naturais imensas sub-exploradas.
Para já, seria tão bom que conseguissemos voltar a ter imprensa!
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Faro, o esplendor em estupefação
Não haverá terra mais bafejada pela natureza do que a Ria Formosa. Clima espectacular, praias longas, espelhos de água rica de vida comestível, pacatez, campo de frutos únicos, romãs celestiais e nêsperas cupidianas, figos entumescentes, que brotam de árvores morrendo sem cuidado algum do humano vegetante.
No entanto, conseguiu-se tornar a Campina numa das zonas mais poluídas da Europa por nitratos de origem agrícola (vide inag.pt). Perde-se a actividade agrícola, esquecem-se os primores que fizeram a fortuna do Algarve. Sabe que Eugénio de Almeida, o homem mais rico de Portugal de oitocentos, engrandeceu com o comércio de frutos secos destinado a América? Inesquecíveis amêndoas macias e doces hoje substituídas pelas californianas, dedosas, duronas, indigestas a partir da sétima.
A ria que limita Faro é um paraíso de canais encantatórios, bordejando as margens barrentas da cidadezinha, onde se acumula lixo e animais mortos. Botes anados labutam contra os cabeços da vazante, aguardando a esporádica pescaria no canal grande. Consideram-se privilegiados os que têm embarcação ancorada na marina fotogénica, embora não consigam sair ou entrar acima de meia maré por força da ferrovia centenária.
Os farenses, sempre avant la lettre, acham que é mais fácil arrancar a linha do comboio inteira do que imaginar uma solução para a passagem dos barquitos. Há cinquenta anos que o acham, intemeratos. Os derrotistas, assustados com as intempestivas proibições de circulação na ria e na ilha, acham que já não vale a pena ter barco. Os investidores alimentam, pelo contrário, planos de uma marina contada, coisa que em Portugal consiste nuns passeios largos com palmeiras, bancos de granito, esplanadas, um hotel de apoio, três concessões de restaurantes caros e alguns barcos duns tipos que a gente não conhece. Qual barcos, qual quê! Ao povo bastam os automóveis e a ria fica reservada.
Comparada com aquelas pequenas cidades de Trás-os Montes, tão ufanosas e apirolitadas, Faro assusta de atraso e degradação, ruínas, sujidade e caras trombudas de maus modos e olhar ostensivo. Tenha-se presente que, a seguir a Lisboa, Faro tem o maior indíce de pagamento de IRS por habitante do país. Será terra de gente rica, quiçá.
Quando parece que algo de novo a suplanta, como o bunker do teatro, logo se vão chegando às restrições, às exclusividades, às coisinhas giras, à música de boas intenções que não pára de prometer dias melhores. Até o raio do cartaz que pespegavam na gigantesca parede fronteira do teatro foi substituído por um placard publicitário electrónico que muda tão rapidamente que não se aproveita uma imagem, sequer de publicidade a pneus, um desconchavo que lá põem.
Deve ser uma terra desagradável para a maioria dos que cá vêm trabalhar, pois, logo que os deixam sair dos empregos, preferem meter-se na 125, à compita pelo direito de dominar as rotundas com os carritos adoráveis que conduzem. O exercício de tal direito dá-lhes um gozo tão grande que mantêm um ar paciente enquanto esperam longamente pela vez.
Nestes dias de calor ainda sem férias a praia de Faro enche-se de corpos lindos, garbosos, alegres, um must! Pena a porcaria da areia que de poeirenta se vai emporcalhando dia após dia. A não perder, a ronda de moto quatro que percorre a zona concessionada, por entre crianças brincando, jovens jogando e senhoras a caminho da toalha, com um marinheiro tipo Querelle acoplado num banhista condutor, ambos muito seráficos, compenetrados e incomodativos para os demais.
Um pouco mais longe, é obrigatória a Culatra, a aldeia da ilha de areia, com um povo sepilhado a vento e sol, agora ameaçado de destruição pela especulação imobiliária, que parece que não há quem não queira uma barraca de praia permanente. Se não forem destruídos por aí, são-no pelas regras de controlo: quem tem casa em terra, herdada ou não, perde a da ilha! Regra arbitrária e obviamente injusta, que ignora a comunidade. Lá se desenrascam a dividir famílias, a dizer que esta é só minha, ainda em sufoco, ignorando o dia de amanhã.
Faro, no entanto, resplandece. E não há estupefação que resista a uma ténue aragem de maresia, numa manhã quente mirando o mar, à espera do peixe assado, de que Faro é a verdadeira capital.
No entanto, conseguiu-se tornar a Campina numa das zonas mais poluídas da Europa por nitratos de origem agrícola (vide inag.pt). Perde-se a actividade agrícola, esquecem-se os primores que fizeram a fortuna do Algarve. Sabe que Eugénio de Almeida, o homem mais rico de Portugal de oitocentos, engrandeceu com o comércio de frutos secos destinado a América? Inesquecíveis amêndoas macias e doces hoje substituídas pelas californianas, dedosas, duronas, indigestas a partir da sétima.
A ria que limita Faro é um paraíso de canais encantatórios, bordejando as margens barrentas da cidadezinha, onde se acumula lixo e animais mortos. Botes anados labutam contra os cabeços da vazante, aguardando a esporádica pescaria no canal grande. Consideram-se privilegiados os que têm embarcação ancorada na marina fotogénica, embora não consigam sair ou entrar acima de meia maré por força da ferrovia centenária.
Os farenses, sempre avant la lettre, acham que é mais fácil arrancar a linha do comboio inteira do que imaginar uma solução para a passagem dos barquitos. Há cinquenta anos que o acham, intemeratos. Os derrotistas, assustados com as intempestivas proibições de circulação na ria e na ilha, acham que já não vale a pena ter barco. Os investidores alimentam, pelo contrário, planos de uma marina contada, coisa que em Portugal consiste nuns passeios largos com palmeiras, bancos de granito, esplanadas, um hotel de apoio, três concessões de restaurantes caros e alguns barcos duns tipos que a gente não conhece. Qual barcos, qual quê! Ao povo bastam os automóveis e a ria fica reservada.
Comparada com aquelas pequenas cidades de Trás-os Montes, tão ufanosas e apirolitadas, Faro assusta de atraso e degradação, ruínas, sujidade e caras trombudas de maus modos e olhar ostensivo. Tenha-se presente que, a seguir a Lisboa, Faro tem o maior indíce de pagamento de IRS por habitante do país. Será terra de gente rica, quiçá.
Quando parece que algo de novo a suplanta, como o bunker do teatro, logo se vão chegando às restrições, às exclusividades, às coisinhas giras, à música de boas intenções que não pára de prometer dias melhores. Até o raio do cartaz que pespegavam na gigantesca parede fronteira do teatro foi substituído por um placard publicitário electrónico que muda tão rapidamente que não se aproveita uma imagem, sequer de publicidade a pneus, um desconchavo que lá põem.
Deve ser uma terra desagradável para a maioria dos que cá vêm trabalhar, pois, logo que os deixam sair dos empregos, preferem meter-se na 125, à compita pelo direito de dominar as rotundas com os carritos adoráveis que conduzem. O exercício de tal direito dá-lhes um gozo tão grande que mantêm um ar paciente enquanto esperam longamente pela vez.
Nestes dias de calor ainda sem férias a praia de Faro enche-se de corpos lindos, garbosos, alegres, um must! Pena a porcaria da areia que de poeirenta se vai emporcalhando dia após dia. A não perder, a ronda de moto quatro que percorre a zona concessionada, por entre crianças brincando, jovens jogando e senhoras a caminho da toalha, com um marinheiro tipo Querelle acoplado num banhista condutor, ambos muito seráficos, compenetrados e incomodativos para os demais.
Um pouco mais longe, é obrigatória a Culatra, a aldeia da ilha de areia, com um povo sepilhado a vento e sol, agora ameaçado de destruição pela especulação imobiliária, que parece que não há quem não queira uma barraca de praia permanente. Se não forem destruídos por aí, são-no pelas regras de controlo: quem tem casa em terra, herdada ou não, perde a da ilha! Regra arbitrária e obviamente injusta, que ignora a comunidade. Lá se desenrascam a dividir famílias, a dizer que esta é só minha, ainda em sufoco, ignorando o dia de amanhã.
Faro, no entanto, resplandece. E não há estupefação que resista a uma ténue aragem de maresia, numa manhã quente mirando o mar, à espera do peixe assado, de que Faro é a verdadeira capital.
domingo, 4 de julho de 2010
Para acabar de vez com “Câmara Clara” e outras tretas da RTP
Pouco há de mais triste do que assistir ao anúncio público de que um velho não é virgem e mais triste ainda se é um poeta e o diz na própria pessoa. A virgindade seria sim uma imensa abertura para um mundo novo, uma recriação verdadeira da alma prestes à consumação, como Inês perante Tristão. Agora um velho que esteve em Londres quando novo e faz uns versos, que hoje é uma prosa graficamente sincopada, curta e de segredos escondidos, como um gato de bigodes longos e farfalhudos à espera da deita da dona para se lançar sobre os copos sujos da cozinha, esse velho de queca recordada, babujona, parece-se com um porco de dentes lavadinhos, sem a esponsal de circunstância de tempos idos, idos, idos. Ah! Quem dera a pureza intocável de um basculino estumescido, mãos arrepiadas sobre os lençóis e os olhos fitos no pecado que esvoaça pelas vielas esconsas. Nisso, Virgílio Ferreira continuará imbatível. Um poeta virgem, por fim o milagre. Um poeta é um aldrabão, tudo bem, mas se gabarola, é uma rolha!
Que há de mais triste do que essa conversa de que fui feliz em Londres, que andava descalço e esfomeado, com fartura de gajas. E a cultura, o museu da porra onde as engatava e o livro no jardim, mesmo à chuva, por onde ela passava e se admirava da minha persistência no livro e no seu caminhar e no pão quentinho que me matava a fome no seu quartito ridículo onde me abraçava e mimava. À porta de qualquer liceu três pretos, que podiam ser brancos, discorrem sobre as distintas calosidades de todas as pachachas do mundo com maior profundidade boceira que esse poeta de pés curtos e verve dormente, que não se cala sobre um passado mesquinho de pão e calor.
Que há de mais triste, sendo porventura poeta, que passar a vidita a desditar a melosa de pechisbeque que sim que também ela pode sentir a profundidade inigualável que o levou à viagem insuperável da escrita sobre os corpos pobres das sopeiras de Londres, sobretudo se se calar e der ao trabalho de ouvir os convidados. Sextas-feiras de borracheira supridas por recolhimentos necessários no tal quartito, uma vez ali, outra vez acolá. Ah! Quem me dera o cuartito 22 de La Sonora Matancera!
Há ainda uns tipos a lerem num visor que na sala está onde nós estamos e ainda assim não sabem onde pôr os braços e os movem como autómatos com olhos de borracha e líquido para chorar. Amanhã não perca, perca do Nilo! Mais uma conversa mole dum tipo de dentes perfeitos que consegue articular com os lábios cerrados, um prodígio do monocórdio que fala, obviamente, em todas línguas como um autóctone, uma treta para revolver o sono dos justos.
O pior crime do socratismo psista foi a destruição da RTP 2. Não havia necessidade, que diabo! Tanto filho-família na porra do penico é demais. Acabaram com a televisão cultural, dedicam-se a velhos sobrevivos, esses os ainda televisionáveis, que os poetas enterrados não dão entrevistas, uns merdas intoleráveis que, entre bares e festinhas de charme pútrido, se lançam aos milhares de euros que vão saindo do público erário, quais estrelinhas do jardim de infância, nas festas de Natal, ah! Que saudades! E tantos são os que não as escondem.
Alguma vez, algum critério sequer. Nã! O pivot mais sofrido não leva menos de 12 mil euros, com roupa e carro, e os directores alçam-se por aí acima, ganham quase tanto como eu, quem julgam que são. Ao menos parem com os sequeteches de vampiros e de hospitais, alarguem-se um pouco, vão para Londres, poetizem-se, deiem-se ao amor da escrita (enfim, cuidado para não ultrapassarem os lugares disponíveis nas prateleiras, à conta de heresias sem castigo, de que bem precisavam). Apetece dizer, se velhos, Bukowski, que é como quem diz: fora choco!
Que há de mais triste do que essa conversa de que fui feliz em Londres, que andava descalço e esfomeado, com fartura de gajas. E a cultura, o museu da porra onde as engatava e o livro no jardim, mesmo à chuva, por onde ela passava e se admirava da minha persistência no livro e no seu caminhar e no pão quentinho que me matava a fome no seu quartito ridículo onde me abraçava e mimava. À porta de qualquer liceu três pretos, que podiam ser brancos, discorrem sobre as distintas calosidades de todas as pachachas do mundo com maior profundidade boceira que esse poeta de pés curtos e verve dormente, que não se cala sobre um passado mesquinho de pão e calor.
Que há de mais triste, sendo porventura poeta, que passar a vidita a desditar a melosa de pechisbeque que sim que também ela pode sentir a profundidade inigualável que o levou à viagem insuperável da escrita sobre os corpos pobres das sopeiras de Londres, sobretudo se se calar e der ao trabalho de ouvir os convidados. Sextas-feiras de borracheira supridas por recolhimentos necessários no tal quartito, uma vez ali, outra vez acolá. Ah! Quem me dera o cuartito 22 de La Sonora Matancera!
Há ainda uns tipos a lerem num visor que na sala está onde nós estamos e ainda assim não sabem onde pôr os braços e os movem como autómatos com olhos de borracha e líquido para chorar. Amanhã não perca, perca do Nilo! Mais uma conversa mole dum tipo de dentes perfeitos que consegue articular com os lábios cerrados, um prodígio do monocórdio que fala, obviamente, em todas línguas como um autóctone, uma treta para revolver o sono dos justos.
O pior crime do socratismo psista foi a destruição da RTP 2. Não havia necessidade, que diabo! Tanto filho-família na porra do penico é demais. Acabaram com a televisão cultural, dedicam-se a velhos sobrevivos, esses os ainda televisionáveis, que os poetas enterrados não dão entrevistas, uns merdas intoleráveis que, entre bares e festinhas de charme pútrido, se lançam aos milhares de euros que vão saindo do público erário, quais estrelinhas do jardim de infância, nas festas de Natal, ah! Que saudades! E tantos são os que não as escondem.
Alguma vez, algum critério sequer. Nã! O pivot mais sofrido não leva menos de 12 mil euros, com roupa e carro, e os directores alçam-se por aí acima, ganham quase tanto como eu, quem julgam que são. Ao menos parem com os sequeteches de vampiros e de hospitais, alarguem-se um pouco, vão para Londres, poetizem-se, deiem-se ao amor da escrita (enfim, cuidado para não ultrapassarem os lugares disponíveis nas prateleiras, à conta de heresias sem castigo, de que bem precisavam). Apetece dizer, se velhos, Bukowski, que é como quem diz: fora choco!
sábado, 19 de junho de 2010
A derrelicção de Saramago
Bem repetiu que a morte esgotava derradeiramente a vida. Acreditava na derrelicção. No entanto, assenta-lhe bem a sentença de Kierkegaard: “num belo dia a morte chega – e, de repente, o homem torna-se imortal”. A sua obra literária conseguiu saltar a fronteira do portugalismo e conviverá longamente com os grandes do mundo. Não pode dizer-se que por mero acaso. Saramago buscou um caminho novo para o homem ocidental: liberto da religião, senhor do seu destino, mas comprometido com o seu semelhante, segundo uma ética igualitária. Abalançou-se a pensar originalmente a problemática da bíblia – um luxo dos artistas consagrados, inclusive de cineastas como Godard e Scorcese. Não se coibiu de empregar a sua escrita encantatória, prolixa, urdida, nessa tarefa mais adequada à filosofia que à literatura.
Fez-se herege. Em boa verdade, não provocou polémica alguma, que no Ocidente a religião está razoavelmente domesticada. Esteve longe dos riscos que afectam Salman Rushdie e pôde ascender aos altares profanos do Nobel e das academias. Incorreu em heresia porque ignorou Bento Espinosa, o génio que retirou carácter divino ao Pentateuco, separou a filosofia da teologia e fundou uma ética de libertação. Escamoteou Goethe e o seu Fausto, o homem que tomou nas mãos o próprio destino, guiado apenas pela ciência e pelo temor, fundando o homem contemporâneo. Teorizou sobre Caim, falhando o drama do Abraão de Kierkegaard. Afinal, soçobrou na fé, na paixão existencialista. Fez-se, por isso, grande, num mundo de descrentes temerosos. É justamente enaltecido pelos poderosos, ele, que protestou contra a fome e a opressão.
Saramago atingiu o auge com “Levantados do Chão”, um romance extraordinário, com estrutura arrojada e escrita soberba, que ficciona um purgatório existencial onde os oprimidos forjam as próprias almas e, com elas, alcançam a liberdade. Não pode tomar-se como testemunho da realidade dos rurais alentejanos, que aparece muito distorcida em vista do fim literário, mas pode ler-se aí o início da saga que marcará as suas obras seguintes.
O tema apresenta-se mais concretizado no “Memorial do Convento” que, num cenário mafrense, repleto de questões liberais de oitocentos (igualdade, liberdade, fraternidade) encena uma conversão religiosa (que acaba falhada) de tipo existencialista, “baseada não na aceitação de Deus, mas na liberdade absoluta da vontade de rejeitar o mal” e de conferir um significado próprio à vida. Até parece que transporta para Portugal o romance “Sartor Resartus” de Thomas Carlyle, de 1833, não só no tema, mas também no emprego do realismo mágico, na heroína (Blimunda no Memorial e Blumine no Sartor) de olhos lindos e de poderes extra-sensoriais.
Saramago apela ao sentimento, faz chorar, comove. É um opressor. A comiseração impede a libertação. Acudam aos pobres e necessitados, diz ele, tal como um padre. Dois mil anos de pedidos de ajuda, toneladas infindáveis de literatura – e nada!
É cedo para comparações, mas não se retire ainda da mesinha de cabeceira o Camilo de “Memórias do Cárcere” ou o Pessoa do “Livro do Desassossego”. Saramago, no entanto, merece uma feliz despedida: Sit tibi terra levis.
Fez-se herege. Em boa verdade, não provocou polémica alguma, que no Ocidente a religião está razoavelmente domesticada. Esteve longe dos riscos que afectam Salman Rushdie e pôde ascender aos altares profanos do Nobel e das academias. Incorreu em heresia porque ignorou Bento Espinosa, o génio que retirou carácter divino ao Pentateuco, separou a filosofia da teologia e fundou uma ética de libertação. Escamoteou Goethe e o seu Fausto, o homem que tomou nas mãos o próprio destino, guiado apenas pela ciência e pelo temor, fundando o homem contemporâneo. Teorizou sobre Caim, falhando o drama do Abraão de Kierkegaard. Afinal, soçobrou na fé, na paixão existencialista. Fez-se, por isso, grande, num mundo de descrentes temerosos. É justamente enaltecido pelos poderosos, ele, que protestou contra a fome e a opressão.
Saramago atingiu o auge com “Levantados do Chão”, um romance extraordinário, com estrutura arrojada e escrita soberba, que ficciona um purgatório existencial onde os oprimidos forjam as próprias almas e, com elas, alcançam a liberdade. Não pode tomar-se como testemunho da realidade dos rurais alentejanos, que aparece muito distorcida em vista do fim literário, mas pode ler-se aí o início da saga que marcará as suas obras seguintes.
O tema apresenta-se mais concretizado no “Memorial do Convento” que, num cenário mafrense, repleto de questões liberais de oitocentos (igualdade, liberdade, fraternidade) encena uma conversão religiosa (que acaba falhada) de tipo existencialista, “baseada não na aceitação de Deus, mas na liberdade absoluta da vontade de rejeitar o mal” e de conferir um significado próprio à vida. Até parece que transporta para Portugal o romance “Sartor Resartus” de Thomas Carlyle, de 1833, não só no tema, mas também no emprego do realismo mágico, na heroína (Blimunda no Memorial e Blumine no Sartor) de olhos lindos e de poderes extra-sensoriais.
Saramago apela ao sentimento, faz chorar, comove. É um opressor. A comiseração impede a libertação. Acudam aos pobres e necessitados, diz ele, tal como um padre. Dois mil anos de pedidos de ajuda, toneladas infindáveis de literatura – e nada!
É cedo para comparações, mas não se retire ainda da mesinha de cabeceira o Camilo de “Memórias do Cárcere” ou o Pessoa do “Livro do Desassossego”. Saramago, no entanto, merece uma feliz despedida: Sit tibi terra levis.
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segunda-feira, 24 de maio de 2010
Um Mourinho que é futebol e um Queiroz que não é Eça
O futebol é das raras disciplinas técnicas que ainda vive de segredos bem guardados. Enquanto as ciências, as tecnologias e as artes estão protegidas por direitos de autor, propriedade industrial e royalties, no futebol, como no direito ou na gastronomia, o saber tem de refugiar-se dos olhares cobiçosos. Não se encontram manuais úteis nas livrarias e os cursos de treinadores estão ao nível da formação profissional do IEFP. Por se desconhecer as suas artes, se admira tanto os que vencem, como se fossem prestidigitadores. E também por isso se lhes atribui capacidades mágicas de sedução (Mourinho que seduz os jogadores e outros imaginários), quando afinal os seduzidos somos nós, num jogo estranho em que o rude adepto se projecta no ídolo, qual menina perante os Beatles.
Basta rememorar o fantástico jogo do passado sábado entre o Inter e o Bayern para perceber que não fazem qualquer sentido as frases que os comentadores futebolísticos repetem jogo após jogo: a posse de bola não dá domínio do jogo; a equipa que mais ataca não é a que mais merece vencer; os tentos falhados não são quase golos; os cantos não se ganham, mas resultam de lances de ataque perdidos; os espaços não se ocupam, como soldados num teatro de guerra, pois joga-se a quatro dimensões, numa combinação de movimento, corpos extensos e tempo; que não há ânimo que resista ao desnorte táctico e que, pelo contrário, a disciplina, a segurança das informações disponíveis e a pujança física potenciam o ânimo.
Não deve ser difícil descobrir jovens promessas ou craques nascentes. As qualidades dos atletas são visíveis a olho nu, daí chamar-se "olheiros" aos que desempenham tal tarefa. Os testes médicos permitem avaliar as capacidades de progressão e resistência, e os exames psicológicos, as capacidades de disciplina e inteligência. Se se observar tantos jogos de um jogador, pode-se saber se é promissor. Mas tem-se apenas um diamante em bruto. Para que evolua, é preciso um treinador que, sabendo previamente o que pretende pôr em jogo, o conduza a enquadrar-se nesse jogo, num trabalho específico. E tal tarefa não se revela a todos. É exclusiva dos grande treinadores (que sabem, por exemplo, que a um jogador que ganha uma disputa difícil nem sempre é exigível que esteja simultaneamente a ler o jogo para o lance seguinte, pelo que precisa de um jogador de apoio, que por sua vez se socorre dos outros num trabalho em rede, e que o funcionamento dessa rede tem de estar devidamente medido e calculado, com objectivos precisos em cada ponto).
Carlos Queiroz deixou a televisão filmar, há dias, o processo de preparação e selecção dos jogadores nacionais. Fez uma base de dados em que registou as jogadas dos seleccionáveis nos diversos campeonatos (tantas jogadas à esquerda, tantos remates para o ar, quedas, fintas, etc.). No final, obteve um somatório de informações que terão servido para formar a actual equipa de Portugal.
O esquema ilude. Baseia-se num taylorismo dificilmente concretizável. Como as tarefas a desempenhar não são rígidas, nem pré-determinadas e os jogos observados não são os da selecção, a base de dados não se torna operativa sem recurso a modelos matemáticos altamente complexos. Qualquer pessoa que tenha de processar grande quantidade de informação produzida de modo aleatório tem de recorrer à intuição, ou tem de desenvolver algoritmos pesados, que têm de incorporar todas as técnicas e artes envolvidas. Trata-se de uma dificuldade que as ciências sociais ainda não resolveram e, por isso, se ficam as mais das vezes pela estatística.
Vendo agora o jogo Portugal - Cabo Verde, acho que Queiroz não tem intuição nem matemática, e que lhe falta transmitir aos jogadores qualquer coisa para fazer dentro do campo. Podia telefonar ao Mourinho...
Basta rememorar o fantástico jogo do passado sábado entre o Inter e o Bayern para perceber que não fazem qualquer sentido as frases que os comentadores futebolísticos repetem jogo após jogo: a posse de bola não dá domínio do jogo; a equipa que mais ataca não é a que mais merece vencer; os tentos falhados não são quase golos; os cantos não se ganham, mas resultam de lances de ataque perdidos; os espaços não se ocupam, como soldados num teatro de guerra, pois joga-se a quatro dimensões, numa combinação de movimento, corpos extensos e tempo; que não há ânimo que resista ao desnorte táctico e que, pelo contrário, a disciplina, a segurança das informações disponíveis e a pujança física potenciam o ânimo.
Não deve ser difícil descobrir jovens promessas ou craques nascentes. As qualidades dos atletas são visíveis a olho nu, daí chamar-se "olheiros" aos que desempenham tal tarefa. Os testes médicos permitem avaliar as capacidades de progressão e resistência, e os exames psicológicos, as capacidades de disciplina e inteligência. Se se observar tantos jogos de um jogador, pode-se saber se é promissor. Mas tem-se apenas um diamante em bruto. Para que evolua, é preciso um treinador que, sabendo previamente o que pretende pôr em jogo, o conduza a enquadrar-se nesse jogo, num trabalho específico. E tal tarefa não se revela a todos. É exclusiva dos grande treinadores (que sabem, por exemplo, que a um jogador que ganha uma disputa difícil nem sempre é exigível que esteja simultaneamente a ler o jogo para o lance seguinte, pelo que precisa de um jogador de apoio, que por sua vez se socorre dos outros num trabalho em rede, e que o funcionamento dessa rede tem de estar devidamente medido e calculado, com objectivos precisos em cada ponto).
Carlos Queiroz deixou a televisão filmar, há dias, o processo de preparação e selecção dos jogadores nacionais. Fez uma base de dados em que registou as jogadas dos seleccionáveis nos diversos campeonatos (tantas jogadas à esquerda, tantos remates para o ar, quedas, fintas, etc.). No final, obteve um somatório de informações que terão servido para formar a actual equipa de Portugal.
O esquema ilude. Baseia-se num taylorismo dificilmente concretizável. Como as tarefas a desempenhar não são rígidas, nem pré-determinadas e os jogos observados não são os da selecção, a base de dados não se torna operativa sem recurso a modelos matemáticos altamente complexos. Qualquer pessoa que tenha de processar grande quantidade de informação produzida de modo aleatório tem de recorrer à intuição, ou tem de desenvolver algoritmos pesados, que têm de incorporar todas as técnicas e artes envolvidas. Trata-se de uma dificuldade que as ciências sociais ainda não resolveram e, por isso, se ficam as mais das vezes pela estatística.
Vendo agora o jogo Portugal - Cabo Verde, acho que Queiroz não tem intuição nem matemática, e que lhe falta transmitir aos jogadores qualquer coisa para fazer dentro do campo. Podia telefonar ao Mourinho...
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José Mourinho
quarta-feira, 12 de maio de 2010
O problema dos juízes
Alguns jovens parecem conseguir abarcar todo o saber numa área de conhecimento. Não se percebe como o conseguem. No entanto, tornam-se lúcidos ou translúcidos perante a escola. Absorvem e sintetizam. Na universidade, aprendi com eles mais do que com os professores. Alumiaram as minhas dúvidas e segui as parcas palavras que captei. Se o leitor não se apercebeu de nenhum, saiba que são raros. Atirados para o mundo burocrático, perdem-se nas agruras armadilhadas que servem os velhos e os oportunistas. São ainda mais raros os que singram ou que se tornam conhecidos.
Um princípio de mérito aconselharia que lhes fosse aberta a porta dos lugares mais distintos da sociedade. Todavia, a experiência mostra que nem sempre se cumpre uma cabal realização do seu génio. Ora, numa sociedade livre e aberta, deve acreditar-se que os melhores conseguem sustentar-se por si bastantemente.
Perante tal dilema, parece que não se deve exigir dos jovens uma responsabilidade comparável à dos velhos. A carreira é um contra-senso do mérito e a burocracia é uma convulsão do génio.
Por outro lado, não se conhece processo de selecção algum que evite que os oportunistas tomem o lugar dos seres geniais. Precisamente, a selecção tem de ser feita por quem é meramente banal, sério, velho (pensemos na incompetência fundamental do júri do concurso das pontes suspensas).
Concluindo: os lugares de destaque devem ser assumidos pelos mais velhos, quando dependem de uma carreira, isto é, de um caminho submetido a escrutínio. Não deve haver juízes jovens.
O escrutínio é duplo ou triplo: de satisfação do direito, de satisfação jurisprudencial e de satisfação socio-económica. Batalha-se pelo ganho de causa e dessa batalha faz-se o direito e, quantas vezes, a lei. Ora, quem batalha não pode escrutinar os juízes. Não pode morder a cauda. E as influências que muitos trazem para a batalha não podem chegar à independência dos decisores. Os advogados e os políticos têm de ficar de fora dos sistemas de controlo de qualidade das decisões dos juízes. O melhor argumento que pode colher-se no exterior neste mesmo sentido é a cavalgação que os advogados da Ordem dos Advogados e da Assembleia da República têm vindo a fazer para sindicar e controlar os juízes.
Por último, o trabalho do juiz é o pensamento, uma busca quase sempre inconsequente da razão. A decisão do juiz, por ser necessariamente conjuntural, tende a estar errada. Daí a evolução da jurisprudência (examine-se a que foi proferida a propósito do Código da Estrada desde os anos 40 e perceber-se-á quão serôdios foram os de ontem aos olhos de hoje, e os de hoje serão para os de amanhã). Tal exercício de intelectualidade não se compadece com prolixismos produtivistas ou com horários laborais. Um juiz não trabalha, elabora, raciocina, historicisa-se.
Assim, propomos que, em vista de uma sociedade justa, não se faça carreira da judicatura, que os juízes sejam escolhidos de entre os mais velhos, que não sejam sindicados pelos advogados ou pelos políticos e que não estejam submetidos a horário de trabalho, nem a critérios de produtividade estrita.
Um princípio de mérito aconselharia que lhes fosse aberta a porta dos lugares mais distintos da sociedade. Todavia, a experiência mostra que nem sempre se cumpre uma cabal realização do seu génio. Ora, numa sociedade livre e aberta, deve acreditar-se que os melhores conseguem sustentar-se por si bastantemente.
Perante tal dilema, parece que não se deve exigir dos jovens uma responsabilidade comparável à dos velhos. A carreira é um contra-senso do mérito e a burocracia é uma convulsão do génio.
Por outro lado, não se conhece processo de selecção algum que evite que os oportunistas tomem o lugar dos seres geniais. Precisamente, a selecção tem de ser feita por quem é meramente banal, sério, velho (pensemos na incompetência fundamental do júri do concurso das pontes suspensas).
Concluindo: os lugares de destaque devem ser assumidos pelos mais velhos, quando dependem de uma carreira, isto é, de um caminho submetido a escrutínio. Não deve haver juízes jovens.
O escrutínio é duplo ou triplo: de satisfação do direito, de satisfação jurisprudencial e de satisfação socio-económica. Batalha-se pelo ganho de causa e dessa batalha faz-se o direito e, quantas vezes, a lei. Ora, quem batalha não pode escrutinar os juízes. Não pode morder a cauda. E as influências que muitos trazem para a batalha não podem chegar à independência dos decisores. Os advogados e os políticos têm de ficar de fora dos sistemas de controlo de qualidade das decisões dos juízes. O melhor argumento que pode colher-se no exterior neste mesmo sentido é a cavalgação que os advogados da Ordem dos Advogados e da Assembleia da República têm vindo a fazer para sindicar e controlar os juízes.
Por último, o trabalho do juiz é o pensamento, uma busca quase sempre inconsequente da razão. A decisão do juiz, por ser necessariamente conjuntural, tende a estar errada. Daí a evolução da jurisprudência (examine-se a que foi proferida a propósito do Código da Estrada desde os anos 40 e perceber-se-á quão serôdios foram os de ontem aos olhos de hoje, e os de hoje serão para os de amanhã). Tal exercício de intelectualidade não se compadece com prolixismos produtivistas ou com horários laborais. Um juiz não trabalha, elabora, raciocina, historicisa-se.
Assim, propomos que, em vista de uma sociedade justa, não se faça carreira da judicatura, que os juízes sejam escolhidos de entre os mais velhos, que não sejam sindicados pelos advogados ou pelos políticos e que não estejam submetidos a horário de trabalho, nem a critérios de produtividade estrita.
Teste qualitativo
Leia atentamente a seguinte frase colhida do manifesto de candidatura do Dr. Fragoso Marques a Bastonário da Ordem dos Advogados:
“A defesa dos Valores nunca nos impedirá de alterar tudo quanto careça de alteração.”
Num teste americano, indique qual das seguintes asserções melhor traduz o sentido da frase que acabou de ler:
1. Os valores podem carecer de alteração.
2. Deve alterar-se tudo o que não respeita os valores.
3. A defesa dos valores não prejudica a criação de outros valores.
4. Deve impedir-se as alterações dos valores.
Elabore um pequeno texto explicativo do conceito de “valores”.
Envie o seu trabalho para um e-mail à sua escolha e aguarde o resultado.
“A defesa dos Valores nunca nos impedirá de alterar tudo quanto careça de alteração.”
Num teste americano, indique qual das seguintes asserções melhor traduz o sentido da frase que acabou de ler:
1. Os valores podem carecer de alteração.
2. Deve alterar-se tudo o que não respeita os valores.
3. A defesa dos valores não prejudica a criação de outros valores.
4. Deve impedir-se as alterações dos valores.
Elabore um pequeno texto explicativo do conceito de “valores”.
Envie o seu trabalho para um e-mail à sua escolha e aguarde o resultado.
Direitos adquiridos e tolerância de ponto
Um burguês culto, bem instalado na vida, artista e comentador, que não tem patrão, nem horário de trabalho, insurge-se contra o Governo por ter permitido a dispensa de serviço dos funcionários públicos, nos dias coincidentes com a visita do Papa a Portugal. Não se percebe qual o fundamento daquela preocupação. Desgosta-se da perda de produção, quando se sabe que os funcionários prestam serviços de regulação e assistência que não são fonte de produção propriamente dita? Perfilha-se um moralismo laborista, um rigor patronal, quando se sabe que a tolerância de ponto foi um instrumento do salazarismo? Teme-se pelos prejuízos que os particulares podem sofrer por inoperância dos serviços, quando o Estado e uma boa parte da sociedade reclamam a presença do mundo inteiro frente às missas campais do Papa? Protesta-se contra a desigualdade entre trabalhadores públicos e privados, quando o Estado exorta as empresas a facilitar as comemorações Papais? Não.
O comentador protestante dá-nos uma pista das suas razões, a par de brados contra supostas pontes de fim-de-semana, quando convoca em apoio da sua tese os protestos das centrais sindicais. Os trabalhadores querem trabalhar mas o Governo dispensa-os. Afaga-lhes a vida numa época de crise. Para o Papa, pede festa, quando se adivinham restrições, aumento da precariedade, baixa de remunerações e de impostos. Os sindicatos, pelos vistos, estarão dispostos a manter o grau de exigência, desde que não haja perda de direitos. Os funcionários, por seu turno, preferem aproveitar para já a falta paga ao trabalho, embora possam prestar serviço efectivo, seguindo o conselho dos sindicatos (como o próprio nome indica trata-se de uma tolerância de ponto e não de um encerramento do local de trabalho, que pode funcionar mediante a comparência de um mínimo de pessoal). Aproveitam a benesse, a contrapartida antecipada pelas restrições que aí vêm.
As razões do comentador percebem-se agora: quer ter razão mais tarde, quando disser: olhem como avisei, folgaram quando deviam trabalhar e aqui têm as consequências. É um puro oportunista reaça. Mas é um populista, pois deixa entrever (inconscientemente prepara) a resposta dos funcionários num cenário de crise: “fomos enganados! A nossa excelsa capacidade foi desaproveitada, o Estado é perdulário. Revoltemo-nos para salvarmos o que resta!”. Ou seja, salvo o exagero inconsequente da revolta, o regresso ao moralismo da disciplina, da produtividade, do mérito, da desigualdade, da hierarquização. Um funcionalismo ressurgido do caos, como fez o salazarismo.
Os funcionários estão hoje naquela contingência. O contínuo agravamento das condições económicas, com perda efectiva de rendimentos, desemprego e precariedade laboral, não se compagina com um estatuto de direitos quase perpétuos, boas remunerações, sistema de saúde de luxo e reformas celestiais. O Estado não pode manter dentro de si próprio uma classe privilegiada de funcionários, quando não consegue realizar um mínimo de justiça social. Os desequilíbrios futuros seriam astronómicos: reformados nababos versus velhos indigentes.
A fonte da desigualdade afigura-se aqui bem mais visível do que entre capitalistas e proletários. Os funcionários distinguem-se dos restantes cidadãos apenas pelos direitos que o Estado lhes confere. O direito enquanto fonte de desigualdade, como Marx apontou para a protecção do Estado ao direito de propriedade sobre o capital. Ora, um Estado democrático não carece de um funcionalismo fiel. Podem revoltar-se, fazer greve, manifestar-se, protestar. O Estado precisa, pelo contrário, de moral, de legitimação popular.
Aqui temos o populismo a clamar por justiça e a arraia-miúda a reclamar tratamento igualitário ao dos funcionários. Chegou a hora de apertarem o cinto. Não vale invocar que os direitos foram adquiridos (que só os tornam transitórios, por oposição a universais ou de origem divina). Será melhor táctica a ancestral subserviência, afagar o leão, submergir, à espera da recuperação económica ou de um regime que precise de funcionários fiéis.
O comentador protestante dá-nos uma pista das suas razões, a par de brados contra supostas pontes de fim-de-semana, quando convoca em apoio da sua tese os protestos das centrais sindicais. Os trabalhadores querem trabalhar mas o Governo dispensa-os. Afaga-lhes a vida numa época de crise. Para o Papa, pede festa, quando se adivinham restrições, aumento da precariedade, baixa de remunerações e de impostos. Os sindicatos, pelos vistos, estarão dispostos a manter o grau de exigência, desde que não haja perda de direitos. Os funcionários, por seu turno, preferem aproveitar para já a falta paga ao trabalho, embora possam prestar serviço efectivo, seguindo o conselho dos sindicatos (como o próprio nome indica trata-se de uma tolerância de ponto e não de um encerramento do local de trabalho, que pode funcionar mediante a comparência de um mínimo de pessoal). Aproveitam a benesse, a contrapartida antecipada pelas restrições que aí vêm.
As razões do comentador percebem-se agora: quer ter razão mais tarde, quando disser: olhem como avisei, folgaram quando deviam trabalhar e aqui têm as consequências. É um puro oportunista reaça. Mas é um populista, pois deixa entrever (inconscientemente prepara) a resposta dos funcionários num cenário de crise: “fomos enganados! A nossa excelsa capacidade foi desaproveitada, o Estado é perdulário. Revoltemo-nos para salvarmos o que resta!”. Ou seja, salvo o exagero inconsequente da revolta, o regresso ao moralismo da disciplina, da produtividade, do mérito, da desigualdade, da hierarquização. Um funcionalismo ressurgido do caos, como fez o salazarismo.
Os funcionários estão hoje naquela contingência. O contínuo agravamento das condições económicas, com perda efectiva de rendimentos, desemprego e precariedade laboral, não se compagina com um estatuto de direitos quase perpétuos, boas remunerações, sistema de saúde de luxo e reformas celestiais. O Estado não pode manter dentro de si próprio uma classe privilegiada de funcionários, quando não consegue realizar um mínimo de justiça social. Os desequilíbrios futuros seriam astronómicos: reformados nababos versus velhos indigentes.
A fonte da desigualdade afigura-se aqui bem mais visível do que entre capitalistas e proletários. Os funcionários distinguem-se dos restantes cidadãos apenas pelos direitos que o Estado lhes confere. O direito enquanto fonte de desigualdade, como Marx apontou para a protecção do Estado ao direito de propriedade sobre o capital. Ora, um Estado democrático não carece de um funcionalismo fiel. Podem revoltar-se, fazer greve, manifestar-se, protestar. O Estado precisa, pelo contrário, de moral, de legitimação popular.
Aqui temos o populismo a clamar por justiça e a arraia-miúda a reclamar tratamento igualitário ao dos funcionários. Chegou a hora de apertarem o cinto. Não vale invocar que os direitos foram adquiridos (que só os tornam transitórios, por oposição a universais ou de origem divina). Será melhor táctica a ancestral subserviência, afagar o leão, submergir, à espera da recuperação económica ou de um regime que precise de funcionários fiéis.
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sexta-feira, 16 de abril de 2010
Cavaco, o educador monárquico
Cavaco baralha a política com a economia a ponto de não ser possível destrinçá-las. A corrente dominante sujeita os respiros ao mercado. Quem diz respiros, pode acrescentar também os suspiros, tesões, aspirações, evolucroções, torções, razões e explicações. Mercado é um eufemismo para as susceptibilidades das enormes massas monetárias que se passeiam pelo mundo, entregues às apostas de plebeus aspirantes a ricos. Quando enriquecem, vão para gurus ou são simplesmente consumidos pela volúpia numa praia tropical, onde séculos de piratas esconderam tesouros para todo o sempre. O plebeísmo é uma fonte inesgotável de serviçais. Mas como compreender a nuvem de fluxos contabilísticos intraduzíveis que andam pelos mares como caravelas fantasma, a atacar tudo quanto mexa, a transpor todas as fortalezas de desejo que o mundo continua a erguer incansavelmente? O mercado: a bolsa?, a banca? Claro que não! Mercado são os quatrilhões imensos de capital artificial, acumulação de mais-valias subentendidas em dois séculos e três grandes guerras. O fel voraz do nada. A entropia. Dívida e desperdício. A consumação de um terço da capacidade de trabalho mundial. Os restantes dois terços, por tradicionalismos, numa parte considerável do mundo, ou por batalha constante, na parte ocidentalizada, persistem em escapar à voracidade totalitária dessa nuvem sem fito nem destino, que intoxica quanto toca. Assim é também em Portugal: talvez três quartos escapem ao dever do trabalho submisso. Os agricultores precisam de um terço do ano para atingirem o máximo de rendimento. E as empresas de turismo. E as empresas de viagens, de ensino, de saúde, de vestuário e calçado, de marketing. E os canalizadores, sapadores, garimpeiros, emigras e calceteiros. Viva o sol! Uma minoria de trabalhadores permanentes dá ganhos a uma infinidade de tansos. Que melhor pode haver? O Estado a inventar procedimentos e voltinhas de papelada para criar emprego interno, para fiscalizar o emprego interno e para sujeitar todos os outros a qualquer novidade arrasadora. ASAE precisa-se! Lá produção, qual quê! Estatísticas e mais projecções. Se não assapassem pelas IPs e usassem o autocarro, que seria do nosso consumo de combustível? Da nossa indústria eólica? E se os acidentes rareassem que seria do nosso PIB? E do nosso comércio automóvel? E se a água da rede fosse confiável, arrasaríamos o florescente sector das águas engarrafadas! Terra maravilhosa de lancis, rotundas e viadutos, abençoada sejas! Aqui os poetas a cantaram, qual fonte futurista imorredoira. Camões, Pessoa, nossos, absolutamente únicos e inimitáveis. Enquanto se mantiverem numa sombra das nossas recordações, não haverá nuvem que nos submeta.
Mas Cavaco, esse economista retro, fazedor de fortunas alheias, qual Salazar hodierno, sai pespegando a bandeira pátria contra os ventos iracundos da nuvem financeira, alçando os valores pátrios nos dentes refilados, sobre os quais se semicerram os típicos lábios portugueses, inclinados sobre o fechado, a balbuciar cortesias que saem sem jeito, a travar a digestão. Ah! Portuga, esse arroto que não soa distingue-te do mundo inteiro. Por ti e pelos teus correligionários de viagem, uma distinção emérita: a voz de Portugal no mundo. Onde ir então, na pobreza intelectual que por aí grassa, que melhor destino que a República Checa. Essa terra de fachos, capital dos carteiristas e das putas de luxo, que para se alcandorar ao mundo se descartou da parte pobre, a Eslováquia. Uns toscos que se acham lavados por se lavarem, que o grande Kafka reduziu à mais absoluta escuridão para todo o sempre. Uma gente infeliz sem nação, um país sem nome, Checa, tirado que lhe seja o cognome de opressor, República. Uma terra a jeitos de Hitler e de Estaline, que em 1968 a aleivosia soviética salvou da vergonha fascistoide, para onde tende a descambar assim que lhe tiram a bota de cima. No entanto, não se lhe conhece grande fractura social: maioritariamente proletários, educados pelo mínimo urbano, armados em iguais uns dos outros, com uma elite de milionários, estatista e vingativa, reduzida. É isto que lhes permite conter o défice: se não houver dinheiro cortam o transporte, depois o fiambre, depois o aquecimento, depois o sapatito, depois o livrito e vão cortando por aí fora, sem défice algum, até que se transformem no caralho dum gulag!
Se Cavaco queria dizer algo ao portuga, disse-o pela boca gorda do primeiro-ministro checo, o big boss daquele regime, quando se pôs a reclamar dos défices das maravilhosas terras do Sul. Grécia, a divina luz, ameaçada pela espúria nuvem. Portugal o rosto do Ocidente, anunciado por Pessoa. Portuga, lembra-te: tudo menos bofes!
Viva Portugal, Viva o rei!
Mas Cavaco, esse economista retro, fazedor de fortunas alheias, qual Salazar hodierno, sai pespegando a bandeira pátria contra os ventos iracundos da nuvem financeira, alçando os valores pátrios nos dentes refilados, sobre os quais se semicerram os típicos lábios portugueses, inclinados sobre o fechado, a balbuciar cortesias que saem sem jeito, a travar a digestão. Ah! Portuga, esse arroto que não soa distingue-te do mundo inteiro. Por ti e pelos teus correligionários de viagem, uma distinção emérita: a voz de Portugal no mundo. Onde ir então, na pobreza intelectual que por aí grassa, que melhor destino que a República Checa. Essa terra de fachos, capital dos carteiristas e das putas de luxo, que para se alcandorar ao mundo se descartou da parte pobre, a Eslováquia. Uns toscos que se acham lavados por se lavarem, que o grande Kafka reduziu à mais absoluta escuridão para todo o sempre. Uma gente infeliz sem nação, um país sem nome, Checa, tirado que lhe seja o cognome de opressor, República. Uma terra a jeitos de Hitler e de Estaline, que em 1968 a aleivosia soviética salvou da vergonha fascistoide, para onde tende a descambar assim que lhe tiram a bota de cima. No entanto, não se lhe conhece grande fractura social: maioritariamente proletários, educados pelo mínimo urbano, armados em iguais uns dos outros, com uma elite de milionários, estatista e vingativa, reduzida. É isto que lhes permite conter o défice: se não houver dinheiro cortam o transporte, depois o fiambre, depois o aquecimento, depois o sapatito, depois o livrito e vão cortando por aí fora, sem défice algum, até que se transformem no caralho dum gulag!
Se Cavaco queria dizer algo ao portuga, disse-o pela boca gorda do primeiro-ministro checo, o big boss daquele regime, quando se pôs a reclamar dos défices das maravilhosas terras do Sul. Grécia, a divina luz, ameaçada pela espúria nuvem. Portugal o rosto do Ocidente, anunciado por Pessoa. Portuga, lembra-te: tudo menos bofes!
Viva Portugal, Viva o rei!
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terça-feira, 30 de março de 2010
Um conselho a Paulo Portas
Paulo Portas conquistou um polémico lugar na direita partidária, mérito que lhe deve ser reconhecido. Nota-se porém que, quando o espectro eleitoral parece mais propício ao CDS, Paulo Portas perde um pouco o auto-controlo e assume um excesso de protagonismo muitas vezes inconsequente.
Repetidamente, batalha a autoridade na educação e acaba por perder popularidade. Deve-lhe custar a compreender que, tal como ele fez com Manuel Monteiro, não há poder que não lhe ofereça esse cavalinho com rodinhas: vai de um lado ao outro do palco e sai precisamente antes das eleições. Aliás Paulo Portas exibe uma confrangedora falta de conhecimentos sobre a matéria, fazendo razia sobre os princípios liberais ou sobre os valores cristãos indiciados no próprio nome do seu partido. Dizer que os alunos devem estudar para entrarem com boas oportunidades no mercado de trabalho, fica bem na mentalidade rural, como antes se dizia ao aluno repetente que devia passar o ano para poder "tirar a carta". Na sociedade democrática, tais exortações, quando generalizadas a todas as crianças e jovens, violam as regras básicas do utilitarismo ou de qualquer outra corrente que se escolha. É como dizer aos pais que devem ter filhos para os destinar ao mercado de trabalho. Soa a qualquer coisa de Estalinista. E centra a vida no mercado, desvirtuando o humanismo e a razão de ser desse mercado, segundo os liberais.
O que falta dizer além daqueles chavões antigos, Paulo Portas não sabe. Por isso, aqui vai um conselho: tire o cavalinho da chuva; devolva-o a quem o empurrou para si.
Repetidamente, batalha a autoridade na educação e acaba por perder popularidade. Deve-lhe custar a compreender que, tal como ele fez com Manuel Monteiro, não há poder que não lhe ofereça esse cavalinho com rodinhas: vai de um lado ao outro do palco e sai precisamente antes das eleições. Aliás Paulo Portas exibe uma confrangedora falta de conhecimentos sobre a matéria, fazendo razia sobre os princípios liberais ou sobre os valores cristãos indiciados no próprio nome do seu partido. Dizer que os alunos devem estudar para entrarem com boas oportunidades no mercado de trabalho, fica bem na mentalidade rural, como antes se dizia ao aluno repetente que devia passar o ano para poder "tirar a carta". Na sociedade democrática, tais exortações, quando generalizadas a todas as crianças e jovens, violam as regras básicas do utilitarismo ou de qualquer outra corrente que se escolha. É como dizer aos pais que devem ter filhos para os destinar ao mercado de trabalho. Soa a qualquer coisa de Estalinista. E centra a vida no mercado, desvirtuando o humanismo e a razão de ser desse mercado, segundo os liberais.
O que falta dizer além daqueles chavões antigos, Paulo Portas não sabe. Por isso, aqui vai um conselho: tire o cavalinho da chuva; devolva-o a quem o empurrou para si.
domingo, 28 de março de 2010
Fuzeta e a praia de Moncarapacho
Tendo o mar destruído uma parte da ilha da Fuzeta, precisamente onde se ajuntavam as barracas de praia, abrem-se uma série de questões fundamentais para o futuro daquela antiquíssima terra de pescadores.
Uma das primeiras conclusões que pode desde já tirar-se é a de que, opine o povo o que quiser, discuta este grupo contra aquele, proponha algum serioso uma solução, nada disso terá qualquer influência no que for decidido e executado pelas autoridades públicas, ou seja, pelo Estado. Por três razões: 1) desapareceu o povo corajoso que exigia a barra e o porto ao fascismo, desapareceram os homens de mar de palavra grave e segura, falta o amor à terra e o respeito pelos antepassados; 2) abunda a dolência subsidiada, o falatório maledicente, a pura ignorância, a subserviência aos distribuidores do ridículo bodo que lhes vai cabendo; 3) e o Estado, que se escuda nos técnicos e depois na “falta de verbas”, não ouvirá o povo, antes continuará com vãs promessas. A Fuzeta degrada-se a olhos vistos, de ano para ano. Uma povoação feita por gente brava e intrépida está entregue a montanheiros e a boçais de garganta alçada como um punho fechado. Uma tristeza!
A mais evidente demonstração do que acima afirmamos manifesta-se no facto de, volvidos 36 anos de democracia e se calhar por causa dela, continuar a Fuzeta dividida em duas freguesias, uma da Fuzeta propriamente e outra nas extremas do território de Moncarapacho. Será a única povoação do Sul em que tal problema assume uma gravidade crucial: a Fuzeta não tem centro de saúde, escola C+S, depósito de água, salinas ou vinhas, está tudo em Moncarapacho. Torna difícil o planeamento e a justa distribuição de recursos pelo Estado. Mas distribuem-se também os votos: como a população da Fuzeta tem tendência a votar maioritariamente PS, a que cai na freguesia de Moncarapacho vota lá, pela maior parte, e assim o PS tende a ganhar nas duas freguesias. Estará aqui uma das causas da actual situação.
Uma das primeiras conclusões que pode desde já tirar-se é a de que, opine o povo o que quiser, discuta este grupo contra aquele, proponha algum serioso uma solução, nada disso terá qualquer influência no que for decidido e executado pelas autoridades públicas, ou seja, pelo Estado. Por três razões: 1) desapareceu o povo corajoso que exigia a barra e o porto ao fascismo, desapareceram os homens de mar de palavra grave e segura, falta o amor à terra e o respeito pelos antepassados; 2) abunda a dolência subsidiada, o falatório maledicente, a pura ignorância, a subserviência aos distribuidores do ridículo bodo que lhes vai cabendo; 3) e o Estado, que se escuda nos técnicos e depois na “falta de verbas”, não ouvirá o povo, antes continuará com vãs promessas. A Fuzeta degrada-se a olhos vistos, de ano para ano. Uma povoação feita por gente brava e intrépida está entregue a montanheiros e a boçais de garganta alçada como um punho fechado. Uma tristeza!
A mais evidente demonstração do que acima afirmamos manifesta-se no facto de, volvidos 36 anos de democracia e se calhar por causa dela, continuar a Fuzeta dividida em duas freguesias, uma da Fuzeta propriamente e outra nas extremas do território de Moncarapacho. Será a única povoação do Sul em que tal problema assume uma gravidade crucial: a Fuzeta não tem centro de saúde, escola C+S, depósito de água, salinas ou vinhas, está tudo em Moncarapacho. Torna difícil o planeamento e a justa distribuição de recursos pelo Estado. Mas distribuem-se também os votos: como a população da Fuzeta tem tendência a votar maioritariamente PS, a que cai na freguesia de Moncarapacho vota lá, pela maior parte, e assim o PS tende a ganhar nas duas freguesias. Estará aqui uma das causas da actual situação.
Vem agora o pensante observar que o mar abriu a ilha onde há 50 anos havia uma barra. E acha-se tudo muito natural. Pois é mesmo esse o problema. Na Ria Formosa as barras abrem-se onde a natureza quer. É na sua proximidade que devem fixar-se os pescadores, os portos, o turismo. Ao longo de milénios foram surgindo povoamentos nesses locais e foram desaparecendo quando as barras fechavam ou as passagens assoreavam. O caso mais conhecido é o da cidade romana de Balsa, frente à actual Luz de Tavira. Mas também se conhece o de Tavira, que foi capital do Algarve e um dos principais portos de Portugal e perdeu o cargo para Faro, pelo assoreamento e deslocação da barra. A barra do farol está onde está porque foram construídos molhes de protecção, logo no século XVIII, por várias vezes reforçados e reconstruídos. Este pormenor manteve Faro capital do Algarve, numa época em que dispunha do único porto com canal navegável para embarcações de grande calado e o transporte se fazia por barco (com o declínio do comércio marítimo, Faro mantém-se capital apenas por beneplácito do Estado). A actual barra de Tavira foi construída pelo homem. Em Cacela Velha, há alguns anos, o cordão dunar também foi destruído pelo mar e reposto pelo homem.
Portanto, se quereis manter a Fuzeta consolidada, o acesso ao mar, o porto de pequenas embarcações e o turismo, não há solução que não passe por interferir no processo natural da ria, fechar, abrir ou consolidar barras. Estas obras têm de assumir um carácter duradouro, que garanta a estabilidade da economia local.
Outro aspecto fundamental é o da protecção da natureza riquíssima e belíssima que circunda a Fuzeta. Tem de ser protegida dos abusos, seja do excesso de turistas, seja do excesso de obra, em especial a que tem caído sobre o entorno marítimo. Será errado massificar o acesso à praia num curto cordão de duna, como também o será distribuir-se veraneantes por todos os lençóis de areia. Quanto mais perto do mar estiver o porto do recreio e mais perto da ilha estiver o transporte de passageiros, menos poluição se gera. Quando se debate se deve manter-se a barra que o mar agora abriu, não pode esquecer-se uma questão essencial: hoje a Fuzeta não pode subsistir sem turismo e este sem acesso marítimo à ilha. Enfim, quanto a soluções, leia-se o segundo parágrafo deste texto.
Qualquer solução alternativa à localização tradicional da praia da ilha, coloca-a na área da freguesia de Moncarapacho, pelo menos em parte. Têm pois aqui os moncarapachenses o seu momento de glória, eles que tanto lutaram pelo reconhecimento da praia do outro lado da ponta das pedras, pobrezinhos, vão poder ufanar-se da praia de Moncarapacho. Talvez assim a Fuzeta acorde.
É preciso delimitar uma nova área da freguesia, da torre redonda à EN125, com excepção de Bias, e da EN125 até o limite do concelho de Tavira. Simultaneamente, é preciso abrir à discussão pública o planeamento do território, o que pode ou não urbanizar-se, a actividade piscatória, a localização do porto de recreio, as áreas públicas de lazer, um novo parque de campismo e infra-estruturas turísticas. É neste quadro que se joga o problema da barra.
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terça-feira, 23 de março de 2010
Para uma reciclagem da Quercus
A necessidade de reciclagem do lixo doméstico é hoje uma consequência da sociedade de consumo e da comercialização desregulada de produtos industriais. As técnicas que promove são meras panaceias para um mal gigantesco. Não se trata de uma adaptação entre um utensílio e o desperdício que gera, mas de uma nova actividade comercial que nasce do facto de grande parte do utensílio constituir, logo de início, um desperdício. Se os bens de consumo pudessem voltar a ser vendidos a granel, dispensar-se-iam inúmeras toneladas de plástico e de papel. E são vendidas em pequenas embalagens individuais apenas para corresponder a um padrão de custo aparentemente atractivo para o consumidor. A empresa que vende água ou bolachas acaba por vender também a embalagem, auferindo aí um lucro referenciado ao aumento do volume de negócios. Trata-se pois de engenharia em benefício do sector financeiro. É uma questão de estratégia em sentido estrito.
O que a actual campanha de reciclagem tem de original consiste no facto de remeter para o consumidor o custo do tratamento do desperdício, eufemisticamente chamado de resíduo. Além de suportar com o seu próprio trabalho a separação e depósito do lixo, tem ainda de perder parte do orçamento público que lhe poderia ser destinado, pois é desviado para subsidiar a indústria de reprocessamento. Esta última representa o último grito de modernidade da parceria público/privado, mas é também um peso pesado, na realidade improdutivo (improdutivo no sentido da boa utilização dos recursos e também no sentido de produção industrial, que só gera riqueza quando gera bem-estar efectivo, sendo irrelevante (mera massa monetária) todo o processo de fabrico que a ele não conduza).
Colocada assim a questão, compreende-se a luta dos ambientalistas nas últimas décadas. Não se trata de propor um regresso às origens, mas de orientar a produção e o consumo num sentido amigo da natureza, que parece tão fácil como as associações entre fungos e árvores ou entre peixes limpadores e peixes carnívoros.
Quando se promove a reciclagem desligada daquele cuidado no consumo e na produção, promove-se efectivamente o desregramento da indústria, a sua dependência dos grupos financeiros e a estratégia de aumento de custos para o consumidor, além de se desrespeitar a natureza.
É aqui que a campanha da Quercus na televisão (noticiários matinais da RTP1; é a segunda vez que a ela voltamos neste blog) se afigura muito estranha, duvidosa mesmo, se se considerar a natureza de associação ambientalista que propagandeia. Reveste já uma gravidade que excede em muito a baboseira de sugerir às famílias que adoptem a tarifa bi-horária da EDP para pouparem na despesa da electricidade na lavagem da roupa, roubando o sono à vizinhança e o descanso à dona de casa, enquanto consomem exactamente a mesma energia.
A Quercus chegou agora ao ponto de publicitar umas cápsulas de alumínio comercializadas pela Nestlé destinadas a fazer café expresso com uma maquineta específica, apesar de o mercado facultar inúmeros processos de beber café em casa sem embalagens inúteis nem maquinetas abstrusas. Não se percebe como pode promover a compra de embalagens de alumínio, que é isso que efectivamente faz quando se põe ao lado do balcão de vendas da Nestlé e difunde a mesma notícia em dois dias diferentes, apenas para aconselhar os consumidores daquele produto a guardarem as cápsulas após a utilização e transportá-las de novo para o posto de venda onde aí serão supostamente encaminhadas para a reciclagem. Se isto não é publicidade à Nestlé, não sei o que é, olé.
Mas a questão ainda não se queda neste ponto. O contacto directo do alumínio com alimentos destinados ao consumo ou com o corpo humano tem sido posto em dúvida por alguns estudos que, bem ou mal, o ligam ao alzheimer e a outras doenças do sistema nervoso ou mesmo ao cancro. Por outro lado, a extracção e o processamento industrial do alumínio são altamente poluentes, tanto que se fica praticamente pelo terceiro mundo, ali para os lados do Egipto e outros.
A promoção da reciclagem do alumínio de umas cápsulas irrisórias, quando comparadas com a quantidade necessária para fazer uma porta, e há tantas portas velhas a pedir reciclagem, cheira a esturro.
É preciso relançar o debate da reciclagem, desde a origem, no problema do excesso de embalagem, mas para tanto parece que é preciso reciclar primeiramente a Quercus. Ou mesmo, se necessário, retirar-lhe o estatuto de associação ambientalista.
O que a actual campanha de reciclagem tem de original consiste no facto de remeter para o consumidor o custo do tratamento do desperdício, eufemisticamente chamado de resíduo. Além de suportar com o seu próprio trabalho a separação e depósito do lixo, tem ainda de perder parte do orçamento público que lhe poderia ser destinado, pois é desviado para subsidiar a indústria de reprocessamento. Esta última representa o último grito de modernidade da parceria público/privado, mas é também um peso pesado, na realidade improdutivo (improdutivo no sentido da boa utilização dos recursos e também no sentido de produção industrial, que só gera riqueza quando gera bem-estar efectivo, sendo irrelevante (mera massa monetária) todo o processo de fabrico que a ele não conduza).
Colocada assim a questão, compreende-se a luta dos ambientalistas nas últimas décadas. Não se trata de propor um regresso às origens, mas de orientar a produção e o consumo num sentido amigo da natureza, que parece tão fácil como as associações entre fungos e árvores ou entre peixes limpadores e peixes carnívoros.
Quando se promove a reciclagem desligada daquele cuidado no consumo e na produção, promove-se efectivamente o desregramento da indústria, a sua dependência dos grupos financeiros e a estratégia de aumento de custos para o consumidor, além de se desrespeitar a natureza.
É aqui que a campanha da Quercus na televisão (noticiários matinais da RTP1; é a segunda vez que a ela voltamos neste blog) se afigura muito estranha, duvidosa mesmo, se se considerar a natureza de associação ambientalista que propagandeia. Reveste já uma gravidade que excede em muito a baboseira de sugerir às famílias que adoptem a tarifa bi-horária da EDP para pouparem na despesa da electricidade na lavagem da roupa, roubando o sono à vizinhança e o descanso à dona de casa, enquanto consomem exactamente a mesma energia.
A Quercus chegou agora ao ponto de publicitar umas cápsulas de alumínio comercializadas pela Nestlé destinadas a fazer café expresso com uma maquineta específica, apesar de o mercado facultar inúmeros processos de beber café em casa sem embalagens inúteis nem maquinetas abstrusas. Não se percebe como pode promover a compra de embalagens de alumínio, que é isso que efectivamente faz quando se põe ao lado do balcão de vendas da Nestlé e difunde a mesma notícia em dois dias diferentes, apenas para aconselhar os consumidores daquele produto a guardarem as cápsulas após a utilização e transportá-las de novo para o posto de venda onde aí serão supostamente encaminhadas para a reciclagem. Se isto não é publicidade à Nestlé, não sei o que é, olé.
Mas a questão ainda não se queda neste ponto. O contacto directo do alumínio com alimentos destinados ao consumo ou com o corpo humano tem sido posto em dúvida por alguns estudos que, bem ou mal, o ligam ao alzheimer e a outras doenças do sistema nervoso ou mesmo ao cancro. Por outro lado, a extracção e o processamento industrial do alumínio são altamente poluentes, tanto que se fica praticamente pelo terceiro mundo, ali para os lados do Egipto e outros.
A promoção da reciclagem do alumínio de umas cápsulas irrisórias, quando comparadas com a quantidade necessária para fazer uma porta, e há tantas portas velhas a pedir reciclagem, cheira a esturro.
É preciso relançar o debate da reciclagem, desde a origem, no problema do excesso de embalagem, mas para tanto parece que é preciso reciclar primeiramente a Quercus. Ou mesmo, se necessário, retirar-lhe o estatuto de associação ambientalista.
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